Creuza Oliveira: a primeira trabalhadora doméstica a receber título de Doutora Honoris Causa no Brasil

 

Sobrevivente de trabalho infantil, Creuza trabalha para libertar outras meninas que se encontram na mesma situação. Foto por Comunicación/Fenatrad. Usada sob permissão.

Este texto foi escrito por Afroféminas e publicado originalmente em 12 de dezembro de 2023. A versão editada é republicada aqui sob acordo de compartilhamento de conteúdo.

Em 24 de novembro de 2024, Creuza Oliveira, líder histórica do movimento das trabalhadoras domésticas brasileiras e latino-americanas, obteve o reconhecimento máximo por sua vasta trajetória de lutas e conquistas ao receber o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), tornando-se a primeira líder e representante de sua categoria a receber a honraria.

Em depoimento, a Federação Internacional dos Trabalhadores Domésticos, organização global que trabalha pelo avanço dos direitos dos trabalhadores da classe, categoria com 76 milhões de pessoas, das quais 76% são mulheres, declarou que o título concedido a Creuza marca um antes e um depois do próprio movimento.

A Federação afirma que:

Oliveira le demuestra al mundo entero que las trabajadoras del hogar ya no son sólo objeto de estudio para el ámbito académico, sino también productoras de conocimiento. El trabajo doméstico a menudo se caracteriza por condiciones de trabajo inseguras y abusivas, salarios bajos (o inexistentes), jornadas extremadamente largas, ausencia de días de descanso o vacaciones, y falta de beneficios y protección social.

Oliveira mostra ao mundo que trabalhadores domésticos não são mais apenas um objeto de estudo para o campo acadêmico, mas que são também produtoras de conhecimento. Trabalho doméstico é caracterizado em geral por condições trabalhistas perigosas e abusivas, salários baixos (ou inexistentes), jornadas de trabalho extensivas, ausência de dias de descanso ou férias e falta de benefícios e proteção social.

Cerimônia de recebimento do título de Doutora Honoris Causa à Creuza Oliveira, em 2023. Imagem usada sob permissão.

Em seu discurso na entrega do título, Creuza Oliveira explicou que:

el ámbito académico siempre estuvo lejos del pueblo y de las clases menos favorecidas. Fue recién a partir de la Ley de Cuotas (2012) que los hijos e hijas de las trabajadoras del hogar y de la población indígena y negra pudieron acceder a la universidad en Brasil. Este título les abrirá las puertas a más personas. Es una victoria muy importante para nuestra lucha y nuestra historia.

O campo acadêmico sempre esteve isolado do povo e das classes menos favorecidas. Foi apenas após a Lei de Cotas (2012) que os filhos e filhas de trabalhadores domésticos e da população negra e indígena puderam ter acesso à educação superior no Brasil. Este título abrirá portas para mais pessoas. É uma vitória importantíssima para a nossa luta e história.

A professora Elisabete Pinto, representante do Instituto de Psicologia (IPS) da UFBA e coordenadora da iniciativa, deixa claro a razão pela qual esse diploma constitui um marco para o movimento das trabalhadoras domésticas:

Creuza Oliveira es una intelectual orgánica que logró organizar a las mujeres negras de todo Brasil en torno a la cuestión laboral. Pocos doctores consiguen que el conocimiento que producen en la universidad tenga un impacto social y pueda transformar vidas. Creuza tiene un doctorado porque ha logrado conquistar los derechos humanos de las trabajadoras domésticas, y la UFBA entiende la importancia de su lucha.

Creuza de Oliveira é uma intelectual orgânica que conseguiu organizar as mulheres negras de todo Brasil em torno da questão laboral. Poucos doutores conseguem que o conhecimento produzido por eles na academia tenha um impacto social e possa transformar vidas. Creuza é doutora porque teve êxito em conquistar os direitos humanos das trabalhadoras domésticas. A UFBA compreende a sua importância na luta.

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A deputada Olívia Santana (PCdoB-BA) destacou:

Creuza es una referencia práctica en la construcción de conocimientos sobre las trabajadoras domésticas, denunciando la súper explotación de esta fuerza laboral, rompiendo los límites del cuartito del fondo de las grandes estancias coloniales, proyectando su voz hacia la organización y la lucha de las mujeres negras, la defensa de las trabajadoras domésticas y la conquista de derechos laborales.

Creuza é uma referência prática na construção de conhecimentos sobre as trabalhadoras domésticas, denunciando a superexploração dessa força de trabalho, rompendo os limites do quartinho dos fundos da casa grande, projetando sua voz para a organização e luta das mulheres negras, trabalhadoras domésticas, para a conquista de direitos trabalhistas.

Uma vida de luta, ativismo político e compromisso social

Creuza Oliveira nasceu em 1957 na cidade de Santo Amaro, no recôncavo baiano, em uma família de trabalhadores rurais muito pobres. Com apenas 10 anos, começou a trabalhar como doméstica para contribuir com a renda familiar.

Aos 12, sem ter onde morar devido à morte dos pais, foi forçada a trabalhar vivendo com os empregadores. Por nove anos, serviu aos patrões sem remuneração: apenas em troca de roupas, alimentação e habitação, prática comum no Brasil até então.

Com muito esforço, Creuza iniciou o ensino fundamental aos 16 anos e conseguiu concluir o ensino médio aos 30, estudando à noite. Foi apenas aos 21 que passou a receber um salário, no entanto, era tão baixo que não permitia seu próprio sustento ou moradia. Ela teve que esperar mais 10 anos para receber seu primeiro salário mínimo, apenas após a mudança na Constituição em 1988, que reconheceria como um direito trabalhista.

Na década de 1980, ao tomar conhecimento de um grupo de trabalhadoras domésticas que se reunia periodicamente em uma escola em Salvador, não hesitou em juntar-se a elas. Aos poucos, tornou-se líder do movimento das trabalhadoras domésticas da Bahia, constituído majoritariamente por mulheres negras e pobres.

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Em 1986, Creuza fundou a Associação das Empregadas Domésticas da Bahia. Naquela época, as domésticas ainda não eram reconhecidas como classe trabalhadora e, portanto, não tinham o direito à criação de um sindicato. Foi apenas em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, que a categoria pôde ser sindicalizada. Quatro anos depois, a ativista ajudou a fundar o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia, no qual presidiu por onze anos, sem abandonar o trabalho como doméstica. Além disso, a sindicalista foi uma das fundadoras do Condomínio 27 de abril, em Salvador, núcleo habitacional criado exclusivamente para abrigar trabalhadoras domésticas.

O trabalho excepcional de Creuza à frente do sindicato da Bahia a levou a ocupar a presidência da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) por 14 anos. Em junho de 2011, Creuza foi parte oficial da delegação brasileira presente na Conferência Internacional do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, e participou ativamente da elaboração da Convenção 189.

Em 2013, contribuiu para a Emenda Constitucional n.º 72, conhecida por “PEC das Domésticas“, que regulamentou direitos antes não reconhecidos aos trabalhadores e trabalhadoras domésticas: salário mínimo fixado por lei, descanso semanal e férias remuneradas, licença-maternidade, aposentadoria, entre outros benefícios garantidos pelo INSS.

Segundo Creuza:

La lucha de las trabajadoras domésticas en Brasil está relacionada con cuestiones de raza, género y clase.

Nuestra categoría siempre fue menospreciada, maltratada y violentada por estar ser conformada por mujeres negras. Nosotras contribuimos al desarrollo económico y ejercemos un rol fundamental en la independencia de la mujer blanca de clase media, porque cuidamos de sus hijos y sus hogares para que ellas puedan estudiar y ser parte del mercado laboral.

A luta das domésticas está relacionada a questões de raça, gênero e classe.

Nossa categoria foi menosprezada, maltratada e violentada por ser formada por mulheres negras. Nós contribuímos para o desenvolvimento econômico e exercemos um papel fundamental na independência da mulher branca de classe média, porque cuidamos dos seus lares e filhos para que possam estudar e atuar no mercado de trabalho.

O título de Doutora Honoris Causa vem para coroar uma longa lista de homenagens e títulos que Creuza Oliveira recebeu ao longo de sua trajetória sindical, entre eles: o Prêmio Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, por sua luta contra o trabalho infantil (2003), e pela luta por igualdade racial (2011); o Prêmio Mulheres que Fazem a Diferença, da Revista Cláudia, na categoria Trabalho Social (2003); Ordem do Mérito do Trabalho no grau de Cavaleira, concedido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2005), e indicação ao Prêmio 1.000 Mulheres para o Nobel da Paz (2005), entre outros.

Creuza recebeu também diversas propostas para ocupar cargos políticos estaduais e federais: em 2008 e 2012, foi eleita vereadora da cidade de Salvador pelo Partido dos Trabalhadores (PT); e em 2014, candidatou-se à deputada federal pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).

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