Brasil: Artistas de rua narram dificuldades para trabalhar em meio à crise climática

Truques e Trambiques na Mostra de Teatro Rua Lino Rojas em SP | Foto: Pedro Salvador/Divulgação/Usada com permissão

Esse texto, escrito por Natasha Meneguelli, foi publicado originalmente no site do Nonada Jornalismo, em 3 de abril de 2024. Ele é republicado aqui em acordo de parceria com o Global Voices e com edições.

A grafiteira Mina Ribeirinha, que vive em Belém, no estado do Pará, já recebeu recomendações médica para se afastar do trabalho por causa das tintas, mas também da chuva e do sol. Assim como outros artistas de rua, ela também teve a rotina afetada pelas condições do clima.

“Temos presenciado ondas de calor cada vez mais intensas, e mortes, inclusive de jovens”, afirma Daniel Bitencourt, pesquisador do Fundacentro (Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho).

As ondas de calor são caracterizadas por um aumento de temperatura acima da média por mais de 5 dias. Segundo estudo do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), divulgado em novembro de 2023, nos últimos 30 anos, a média brasileira de dias com esse fenômeno passou de sete para 53 dias ao ano. E pode piorar.

Bitencourt, que pesquisa os impactos das condições atmosféricas no trabalho a céu aberto, conta que em cidades do Centro Oeste e do Norte do Brasil, muitas atividades já estão inviáveis. Ele explica que os centros urbanos não foram pensados para a mitigação e adaptação climática, ou seja, não possuem estratégias efetivas de diminuição dos gases de efeito estufa e de medidas que mitiguem suas consequências.

“A gente fala em São Paulo porque é uma grande metrópole, mas qualquer capital e cidade de tamanho médio tem as chamadas ilhas de calor”, lembra ele.

As ilhas de calor ocorrem em áreas urbanizadas muito densas, quando há pouco espaço entre as edificações, além de arborização insuficiente, armazenando calor pela baixa capacidade reflexiva do concreto e do asfalto e intensificando as temperaturas.

O aquecimento global chegou a um novo patamar em 2023, com a temperatura global chegando a 1,48°C acima da média. Segundo o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), a queima de petróleo, carvão mineral e gás natural precisa cair 43% até 2030, e ser eliminada até 2050. A meta é essencial para que a temperatura global fique dentro do limite de 1,5°C acima da média, índice considerado seguro para a vida na Terra.

Estresse térmico

Mina não é a única a sentir as implicações das altas temperaturas. O casal Agatha Pereira dos Santos e Val Santos trabalha junto como dupla de ”palhafros” (palhaços com inspiração afro), além do teatro de rua e da música, há mais de 10 anos em São Paulo e outros estados do Brasil.

“Nestes meses (com ondas de calor), a temperatura estava bem alta, e isso acabou nos afetando muito. Costumamos trabalhar de manhã, mas nessa época de calor extremo estávamos trabalhando mais à noite”, conta Agatha.

Além do ajuste no ritmo e nos horários de trabalho, os dois congelam uma garrafa de água de dois litros, carregada em uma bolsa térmica durante o dia. “Quando não está congelada a gente tem que arrumar dinheiro para comprar”, diz Val.

Ligia Corrêa Facciolla, a Abelha Palhaça, mora em São Paulo, onde trabalha tanto em locais fechados quanto em parques e ruas, e às vezes nem a água ajuda. “Num sol de mais de 30ºC, mesmo com todo o protetor solar do mundo, com toda a água, ainda parece que está seco”.

Os relatos dos artistas ilustram o estresse térmico: quando o corpo tem que lidar com uma temperatura tão extrema que atrapalha a regulação térmica, por calor ou frio.

Bitencourt explica que, no caso das ondas de calor, tanto a temperatura quanto a umidade ficam elevadas, o que aumenta o desconforto. “Isto acontece por conta do suor, que controla a temperatura e retira a energia e calor do corpo. Quando a umidade está muito alta, esta evaporação não acontece com a mesma eficiência”.

Um estudo publicado pela revista Nature,  em março deste ano, mostra que o calor extremo também pode impactar a média da perda global do Produto Interno Bruto (PIB), com projeção entre US$ 3,75 trilhões e US$ 24,7 trilhões, devido a perda de saúde e produtividade.

“Eu sinto que às vezes a pressão baixa ao fazer as coisas, porque é muito sol na cabeça. E isso afeta bastante”, conta Amanda Nascimento, atriz, cantora e sanfoneira. “É uma coisa de se preocupar, né? Como é que a gente vai continuar?”.

Bitencourt esclarece que, por serem autônomos, os artistas não se beneficiam integralmente de legislação, como uma Norma Regulatória do Ministério do Trabalho e do Emprego que trata de “Limites de Tolerância para Exposição ao Calor” e traz características de insalubridade relacionadas às altas temperaturas, porque são raras as vezes em que há uma empresa responsável por garantir o conforto térmico destes trabalhadores.

“Como é autônomo, ele mesmo pode determinar as pausas, beber uma água, ir para a sombra quando possível, obedecendo aos sinais do próprio corpo”, complementa o especialista. “No entanto, eles ganham por produção. Ao parar, não tem público. E não tem pagamento”.

Val conta que há sempre uma incerteza sobre a renda garantida com o trabalho na rua, porque mesmo editais possuem prazos e concorrência. “Se a gente não sai para a rua, não paga aluguel, não paga água, não paga nada”.

Filipe Farinha faz acrobacia, pirotecnia e funambulismo, arte circense de caminhar na corda bamba — ele foi o primeiro brasileiro a se equilibrar sobre os cabos do Pão de Açúcar, cartão-postal do Rio de Janeiro. Morador de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, ele diz que, na casa onde vive e recebe artistas, é perceptível que a arrecadação caiu bastante. Além do impacto da pandemia de Covid-19, ele vê as mudanças climáticas também entre as causas.

Filipe diz que é a situação de muitos artistas hoje é como “vender o almoço para pagar a janta”, lembrando que há quem trabalha para conseguir tomar um café ou responder a necessidades imediatas.

Daniel Bitencourt reforça que é preciso ações de adaptação com urgência por parte do poder público. “Nos parques, por exemplo, é preciso ter um espaço mais preparado, que proteja tanto os artistas quanto o público, com uma melhor circulação de ar, ainda que ao ar livre”.

Um estudo publicado pela revista científica da Sociedade Meteorológica Americana, ”Disparidade Norte-Sul no impacto das alterações climáticas em ‘dias ao ar livre’”, países do chamado Sul Global sofrerão uma grande perda nestes dias nos próximos anos. As áreas tropicais tiveram redução de 13%, no período entre 1990-2020 — dias ao ar livre são aqueles em que a temperatura em locais abertos é considerada suportável.

A pesquisa considera como ”amenas” temperaturas entre 10 e 25 Cº, e disponibilizou uma plataforma onde os usuários podem definir dias ao ar livre de acordo com sua temperatura preferida e ver como a média desses dias pode mudar em sua região até o final do século.  

Chuvas fortes são problema

Amanda trabalha como produtora da 16ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, que teve que mudar o local das apresentações do dia 09 de março, devido as condições climáticas.

Originalmente elas aconteceriam ao ar livre, no Território Cultural Okaracy na Comuna da Terra Irmã Alberta, e no Parque Estadual Jaraguá. Com a previsão de chuva forte, terreno lamacento e outros problemas, causando a interrupção de espetáculos devido à tempestade, tiveram de mover para o edifício de uma ocupação no Centro Histórico de São Paulo.

Os artistas explicam que, para a arte de rua, o plano B está sempre presente. Mas, é necessário repensar a disposição do público e a possibilidade de intervenção das pessoas, o que afeta o trabalho artístico.

“[Na rua] é mais mágico, mais prazeroso. A gente entende que perde o potencial quando está nesses espaços, dá até uma agonia. É até uma forma de formação de público, de acesso, é uma luta política”, diz Amanda.

Filipe também teve uma série de eventos cancelados em 2022. “O ano passado foi  complicado essa coisa de chuva, de alagamento”, diz ele.

“Quando chove, é uma correria para cobrir o material com a lona, e a gente fica esperando passar pra voltar a trabalhar, o que pode levar duas, três horas”, diz Mina.

“Às vezes você acaba pagando para trabalhar, porque passa o prazo e tudo”.

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