Mesmo após lei, pacientes seguem sem acesso a cannabis em rede pública em São Paulo

Medicamento está previsto na legislação paulista, mas ninguém obteve tratamento. Foto: Abrace, usada com autorização

Este texto é de autoria de Livia Alves e foi publicado originalmente em 29 de fevereiro de 2024, no site da Agência Mural . O artigo é reproduzido aqui em acordo de parceria com o Global Voices, com edições.

Desde janeiro de 2023, uma lei no estado de São Paulo passou a permitir a inclusão de medicamentos à base de canabidiol, substância extraída da planta da cannabis, na rede pública do Sistema Único de Saúde (SUS) de forma gratuita.

Porém, um ano depois, nenhum paciente conseguiu ter acesso ao tratamento, pois a licitação para contratar fornecedores ainda está em fase de conclusão, segundo o governo do estado. 

No Brasil para se ter acesso ao tratamento precisa-se da permissão do médico e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Para o plantio da cannabis, além da receita médica confirmando a necessidade do medicamento, é necessário processo judicial, através do qual a Anvisa e a Justiça vão ponderar se é de fato necessário o tratamento para o paciente.

Na época em que a lei foi sancionada, a previsão era de que a distribuição se iniciasse em 45 dias, o que não aconteceu. Apenas no dia 26 de dezembro de 2023 o governo publicou no Diário Oficial do Estado o decreto que regulamenta o fornecimento. O pedido será avaliado pela Secretaria Estadual de Saúde, mas ainda não entrou em prática.

Enquanto isso, nas periferias de São Paulo, moradores que buscam o tratamento relatam driblar diversos obstáculos para conseguir o medicamento.

Érika Leilaine, 25 anos, moradora do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, conta que mais de uma vez tentou buscar o tratamento alternativo para questões psicológicas, mas sem sucesso.

“Não consegui pedir o tratamento com cannabis, tomo remédios para ansiedade e depressão que dão muitos efeitos colaterais. Os médicos, antes de mais nada, dizem que a cannabis pode ser prejudicial, mas acho que eles já dão esse diagnóstico por falta de pesquisas aqui no Brasil.”

No Jardim Ângela , também na zona sul, o barman Wigor Palácio Lindoso, 32 anos, sofre com constantes crises de ansiedade, e teve que buscar soluções por fora do sistema atual para conseguir tratamento com canabidiol.

”Compro com uma amiga que produz em casa [com autorização judicial]. Ela tem licença para produzir, mas é problemático não ter um profissional confiável para passar a dosagem certa e ter que dividir o remédio dela comigo”, conta ele.

Criminalização e acesso

Um dos problemas, segundo relatos ouvidos pela Agência Mural , é a criminalização do uso da planta, mesmo que para fins medicinais. Há pacientes que desejam pedir o tratamento, mas buscam formas alternativas por medo de serem discriminados ou terem problemas com a Justiça.

O médico psiquiatra geral e forense, Wilson da Silva Lessa Júnior, afirma que o canabidiol, não traz risco de dependência como outros remédios usados ​​em tratamentos.

“A não regulamentação do planejamento de cannabis no Brasil é um dos motivos da dificuldade de acesso dos pacientes que precisam”, avalia ele, que também é professor do curso de medicina da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) nas disciplinas de psiquiatria e biomedicina.

Lessa ensina sobre o sistema canabinóide e perspectivas terapêuticas no uso da cannabis sativa e também atua como professor no curso “Uso Terapêutico da Cannabis Sativa” disponibilizado gratuitamente pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) no canal MovReCam (Movimentos pela Regulamentação da Cannabis Medicinal).

O psiquiatra conta ainda que os medicamentos canábicos podem ser prescritos no Brasil e, dependendo do conhecimento que o profissional tenha sobre a medicação, a indicação torna-se uma ferramenta segura.

Lessa ressalta, porém, que são poucos os estudos que comprovam a eficácia do tratamento de ansiedade e depressão com canabinóide.

“Os níveis de evidência de eficácia ainda são baixos. Contudo, começam a aparecer alguns estudos mais robustos e animadores para canabinóides em tratamento de Transtorno de Ansiedade Social e Transtorno de Ansiedade Generalizada”, observa.

Segundo o Ministério da Saúde, em 2022 a Anvisa aprovou mais de 20 produtos de maconha no Brasil sendo nove a base do extrato de Cannabis Sativa e 14 de canabidiol.

Processo legal

Bruno*, 32 anos, que prefere não se identificar por receio de represálias, chegou a pedir seu psiquiatra o remédio devido a crises e hiperatividade, porém, o caminho era muito complicado e não tinha condições financeiras para arcar com um advogado. 

“Tentei, mas a burocracia é imensa”, afirma ele, morador de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. O pessoal tem que entender que legalizar é diferente de liberar”.

Seguindo o mesmo caminho que Lindoso, Bruno passou a se tratar com o óleo de um conhecido que produz de forma caseira. Ele faz a própria dosagem e mantém o acompanhamento psicológico. Os efeitos, diz ele, são calmantes e o ajudam a se manter focado, principalmente na rotina de trabalho. 

“Conheço pessoas que têm dores constantes, que têm problemas [psíquicos] e tomam vários remédios para aliviar e ficar viciados. Não entendo porque as pessoas têm medo de uma planta que só serve pra curar”, conta ele.

Segundo Erik Torquato, 40 anos, advogado da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, atuante no Estado de São Paulo, a Constituição Brasileira estabelece que todos têm direito à saúde e ao uso dos tratamentos, desde que orientados por médicos e consentimento dos pacientes.

“Todas as pessoas têm direito de usar o remédio que melhor for indicado para manutenção da própria saúde, sendo dever do Estado garantir o acesso ao tratamento”, explica.

“Independentemente da classe social, se uma pessoa necessita de extratos de maconha para garantir a manutenção da própria saúde, é dever do Estado garantir o acesso.”

O advogado ainda afirma que, no caso de dificuldade de acesso a medicamentos, o paciente tem possibilidade de entrar com uma ação judicial. No entanto, é um processo longo e difícil que, muitas vezes, leva o paciente a buscar métodos alternativos para conseguir o medicamento.

“Esse é um dos motivos que levaram muitos a recorrerem ao cultivo doméstico da maconha para manutenção de seus tratamentos”.

Segundo o advogado, o “pânico moral” contra a planta e com a palavra “maconha” também tem responsabilidade quanto às dificuldades de acesso aos remédios. 

“Isso fica evidente quando há o uso do seu nome científico para diferenciar a ‘maconha do bem’ da ‘maconha do mal’. Cannabis é sinônimo de saúde, maconha, de coisa ruim, quando na verdade é a mesma planta.”

O que diz o Estado

Procurada, a Secretaria Estadual da Saúde afirma que, mesmo passado mais de um ano desde o anúncio da inclusão do tratamento na rede pública, até o momento nenhum paciente foi atendido devido à não conclusão da licitação.

Em nota enviada à reportagem, o governo diz:

A Secretaria de Estado da Saúde (SES) informa que o processo licitatório de produto derivado de cannabis para fins medicinais foi homologado em 02/02/24 e publicado em Diário Oficial. (…)

Está previsto para o mês de maio o início da dispensação de medicamento à base de canabidiol para os pacientes que tiverem indicação médica com diagnóstico de síndrome de Lennox Gastaut, síndrome de Dravet e esclerose tuberosa. Nas próximas semanas, o protocolo estadual deve ser publicado em Diário Oficial do Estado (DOE) com as diretrizes e orientações de acesso ao medicamento.

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