O que colocou o Brasil de volta ao Mapa da Fome da ONU depois de oito anos fora

No Brasil, os índices de fome têm piorado Imagem: Luís Gustavo Moreira Carmo / Global Voices

No Brasil, os índices de fome têm aumentado | Imagem: Luís Gustavo Moreira Carmo / Global Voices

Apesar de ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo, o Brasil acaba de voltar ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), após oito anos fora dele.

O levantamento considera como falta de alimentos quando uma média superior a 2,5% da população enfrenta a falta crônica de alimentos — no Brasil, com 214 milhões de habitantes, a taxa estimada é de 4,1%.

Divulgado no início de julho, o relatório aponta que entre 702 e 828 milhões de pessoas passaram fome ao redor do mundo em 2021.

No Brasil, a discussão sobre insegurança alimentar e fome se intensificou com a pandemia da COVID-19, mas já vinha se agravando nos últimos anos: entre 2019 e 2021, mais de 15 milhões de brasileiros foram afetados, segundo a ONU.

A fome em números

Mais de 61 milhões de brasileiros vivem em situação de algum tipo de insegurança alimentar, de acordo com o levantamento recente do braço da organização voltado para a Alimentação e a Agricultura (FAO) — 15,4 milhões enfrentam insegurança alimentar grave, como destaca o portal G1.

O relatório nacional “Olhe para a fome“, elaborado pela Rede Penssan em parceria com a Oxfam Brasil e outras organizações, que coletou dados entre novembro de 2021 e abril de 2022, também aponta situação preocupante: o país enfrenta um retrocesso que relembra a situação da década de 1990, em que a fome tomava conta dos noticiários.

Em 2022, de acordo com os resultados obtidos por esse estudo, 15,5% (33,1 milhões de pessoas) da população enfrenta insegurança alimentar grave.

Gráfico da fome no Brasil | Imagem: Reprodução

Gráfico com índices sobre a fome e seus níveis no Brasil | Imagem: Reprodução do relatório “Olhe para a fome”

2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, que baseou o “Olhe para a fome”, foi lançado no início de junho e mostrou que 58,7% da população brasileira convive com algum grau de insegurança alimentar.

Segundo o estudo da Penssan, ela ocorre quando a disponibilidade de comida não é regular e está dividida em três níveis: leve (incerteza quanto ao acesso num futuro próximo), moderada (quantidade insuficiente de alimentos) e grave (privação do consumo e fome).

Ainda de acordo com o relatório, mulheres e pessoas negras sofrem mais.

Ossos e relatos

Durante a pandemia, com a crise econômica, os supermercados brasileiros, com a estratégia de baratear custos e incentivar a compra, passaram a vender até mesmo ossadas e carcaças de animais, o que não era comum no país.

O Procon do estado de Santa Catarina — órgão de defesa e proteção dos consumidores — emitiu uma recomendação para que os restos continuassem sendo doados a pessoas em situação de vulnerabilidade, e não vendidos. A venda representa infração ao Código de Defesa do Consumidor, apontou o órgão.

Em Belo Horizonte, Minas Gerais, também no segundo semestre de 2021, pessoas foram vistas cercando o lixo de um supermercado atrás de alimentos. O coletor de lixo Leandro dos Santos Jesus disse então ao portal G1

Dói ver né? A gente chega a selecionar lá dentro o que dá para deixar eles pegarem. A situação está difícil para todo mundo e a gente tem que entender a situação.

As cenas se repetem em outras regiões do país: em Fortaleza, no Ceará, como mostra o relato de Sandra Maria de Freitas à BBC News Brasil:

Meus pés ardem como pimenta. Os calos inflamam, eu raspo com uma lâmina e sigo a vida. Acordo às 4 horas da manhã todos os dias, pego o meu carrinho de mão e venho esperar o caminhão do lixo nesse mesmo ponto, perto da Comunidade dos Trilhos, onde moro.

Retrocesso

Em 2014, a notícia de que o Brasil havia saído do Mapa da Fome da ONU foi manchete nacional.

Ao Correio Braziliense, o correspondente da FAO no Brasil, o braço da ONU para a Alimentação e a Agricultura, Rafael Zavala, disse que os números são preocupantes:

Existem quatro causas principais da fome: conflitos armados, choques climáticos, choques econômicos e choques sanitários. Atualmente estamos vivendo o que a FAO chama de “tempestade perfeita” para a segurança alimentar, pois estes quatro fatores estão acontecendo ao mesmo tempo em alguns lugares do mundo.

Entre 2004 e 2013, políticas públicas de erradicação da pobreza e da miséria foram criadas e reduziram a fome para menos da metade do índice inicial: de 9,5% para 4,2%, segundo o relatório “Olhe para a fome”.

Em 2010, um ranking elaborado pela ONG Active Aid mostrava o Brasil como líder entre os países em desenvolvimento com as políticas mais eficientes no combate à fome.

A destituição de algumas destas políticas pode ter impactado o cenário atual. Para o estudo da Oxfam, Rede Penssan e outros, “a má gestão pública da pandemia no Brasil é um fator agravante desse cenário pré-existente”:

Está evidente que a reativação da economia é insuficiente para o combate à fome. É preciso ir além, garantindo os direitos — entre eles a alimentação adequada, a preservação ambiental e a promoção do bem estar — de forma equânime a toda a população brasileira.

À Folha de São Paulo, o economista e fundador do “Instituto Fome Zero” — que apoia políticas de combate à fome —, Walter Belik, comentou que os motivos que levaram à crise da fome estão além do COVID-19 e envolvem crises e altas nos preços:

Não dá para atribuir a fome só à Covid, pois se tivéssemos uma rede de proteção social em funcionamento, não teríamos um quadro tão complicado quanto o que estamos vivendo […] Boa parte da crise de desabastecimento e alta de preços em 2020 tem a ver com a ideia de que o Brasil não precisa de estoques reguladores de alimentos, o que é absurdo não só do ponto de vista de segurança alimentar, mas nacional. O país depender de importações e da variação de preços internacionais é absurdo, diante do quadro de abundância que temos no Brasil.

Durante o governo Bolsonaro, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi extinto assim como o Bolsa Família, programa de distribuição de renda a famílias carentes. Em seu lugar, foi criado o Auxílio Brasil, que distribuía R$ 400 aos beneficiários — com aprovação de um novo projeto, o valor deve ser ampliado, mas apenas até dezembro de 2022.

Benefício social

A historiadora Denise de Sordi, ao podcast Café da Manhã, do jornal Folha de São Paulo, apontou as diferenças na mudança de benefícios:

As condicionalidades do programa Bolsa Família eram condicionalidades no âmbito da saúde e da educação, ou seja: acompanhamento do estado nutricional das crianças, das famílias, acompanhamento das vacinas […] e o acompanhamento em educação: frequência escolar, se as crianças e os jovens estavam na escola […] ou seja, as condicionalidades eram como contra-partidas ao recebimento do benefício.

Para ela, apesar de, em tese, o Auxílio Brasil dar continuidade a essas condicionalidades, no contexto atual os CRAS — Centros de Referência de Assistência Social — estão desarticulados, fazendo com que esse acompanhamento deixe de ser consistente e contínuo.

Ela diz que isso afeta a gestão do atual benefício, colaborando com os índices de desigualdade e fome:

O Auxílio Brasil vai se mostrando um programa desenvolvido e planejado de forma bastante cambaleante quando a gente pensa nos parâmetros de eficiência e atendimento à população que nós tínhamos, por exemplo, com o Bolsa Família.

Restaurantes populares

A procura por refeições baratas aumentou com crises. Famílias recorrem aos restaurantes populares com refeições a R$1 real (cerca de US$ 0,19), equipamentos públicos destinados especialmente a pessoas em situação de vulnerabilidade.

José Carlos da Silva é pedreiro e frequenta a unidade do “Bom Prato” na Zona Leste de São Paulo há mais de um ano. Questionado sobre os motivos que o fazem permanecer ali pelo programa Profissão Repórter, da Rede Globo, exibido em 12 de julho, ele respondeu:

Aqui é onde é que tá salvando a gente, né? Porque, para comer um pedacinho de carne, só aqui mesmo.

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