Esse texto, escrito por Lucas Pedretti e editado por Thiago Domenici, foi publicado originalmente no site da Agência Pública no dia 27 de março de 2024. Ele é republicado aqui por um acordo de parceria com o Global Voices, com edições.
Nos primeiros dias de março de 1985, pouco antes de José Sarney assumir a Presidência da República do Brasil, o Serviço Nacional de Informações (SNI) produziu um estudo sigiloso, em que comparava a atuação de agências de inteligência em democracias e em regimes totalitários, sob o título “As informações nos regimes democráticos”.
Na avaliação do órgão, empregar nas democracias “certos métodos” poderia levar a “violações do direito individual e a prática de atos abusivos”. Além disso, o documento diz que as buscas de informações estariam “sujeitas a opinião pública e legislação mais liberais tornando-se difícil estabelecer um limite onde as ‘legítimas aspirações do Estado terminam e começam os direitos de privacidade dos cidadãos’”.
O documento avalia ainda que, justamente na ausência de opinião pública e de partidos políticos de oposição, os Serviços de Informações podiam atuar sem nenhum “embaraço ético” e sem “impedimento legal” nos regimes totalitários. E conclui: “Este é o aspecto básico que diferencia os Serviços de Informações do mundo inteiro”.
Esse é um relatório de um conjunto de documentos inéditos encontrados no acervo do SNI pela Agência Pública, custodiado hoje no Arquivo Nacional, que revelam como o órgão se movimentou politicamente para manter suas atividades de arapongagem mesmo após a saída do último general-ditador da Presidência da República.
O nascimento do “monstro”
Criado imediatamente após o golpe de Estado de 1964, que instaurou 21 anos de ditadura no Brasil, o SNI se tornou rapidamente o centro do complexo aparato repressivo estruturado pelos militares. Instituído pela Lei nº 4.341, de 13 de junho de 1964, o objetivo legalmente previsto para o órgão era “assessorar o Presidente da República” em relação às atividades de informação e contra-informação”. Na prática, os agentes do SNI desempenhavam todo tipo de ação vinculada à repressão política, participando de operações de rua e sessões de tortura.
O idealizador do serviço foi o general Golbery do Couto e Silva, um dos principais articuladores do golpe.
A historiadora Priscila Brandão, autora do livro SNI e Abin: uma leitura dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX, explica que, após sua criação, o órgão se expandiu rapidamente. “O SNI vai, igual a um polvo, se espalhando pelo Estado. Onde ele acha que precisa, ele cria uma agência nova”, explica.
Logo, o serviço tinha braços espalhados nos ministérios civis, nas universidades e nas empresas públicas, além de se articular com os serviços de informações das três Forças Armadas, com o Conselho de Segurança Nacional e com as secretarias de Segurança estaduais.
Esse conjunto de organismos de espionagem e repressão constituía uma rede altamente capilarizada e autônoma de ‘‘arapongagem’’. Com isso, o regime conseguia monitorar intensamente toda e qualquer movimentação vista como uma ameaça à segurança nacional pelos militares. Como a Doutrina de Segurança Nacional, substrato ideológico dos militares, era baseada em uma visão de mundo paranoica e autoritária, isso significou, na prática, que praticamente todos os setores da sociedade foram alvo de algum tipo de espionagem no período (1964-1985).
Um estudo feito por especialistas do Arquivo Nacional de Brasília em 2008 chegou ao número de mais de 300 mil brasileiros fichados durante a ditadura pelo SNI, muitos dos quais foram presos, torturados e assassinados.
Com o fim do regime, em 1985, colocou-se a questão sobre o que fazer com o órgão. O próprio Golbery vaticinou: “Criei um monstro”. A constatação revelava as dificuldades que a democracia teria para desmontar um aparelho tão poderoso, detentor de dados sensíveis sobre todas as lideranças políticas do período.
SNI tentou sobrevida
No documento “Principais abordagens da imprensa sobre o Sistema Nacional de Informações”, o SNI se mostra incomodado com as críticas que se avolumavam na imprensa nacional sobre o seu destino. Sem meias palavras, o órgão registra que “foi criado sob um regime de censura que perdurou até 1977, imunizando-o contra críticas públicas”. Segundo outro trecho, causava “descontentamento muito profundo aos integrantes do SNI a intensa crítica ao órgão que (…)vem sendo externada através da imprensa”.
E o documento aponta o caminho que o SNI planejava então: “mudança da imagem pública”. A escolha dos arapongas, mostra o documento, não era a de passar a atuar nos marcos do estado de direito, mas, encontrar formas de garantir que sua “imagem pública” não fosse atingida.
Na redemocratização, a ideia de que a saída da ditadura deveria ser feita sem rupturas era a dominante. No período, defendeu-se no país uma “reconciliação” marcada pelo “esquecimento” e sem “revanchismo” perante os crimes e atrocidades dos militares.
Ao longo da redemocratização, já sob um governo civil, o SNI atuava para “neutralizar” o que considerava ameaças à sua imagem, o que ganharia ganharia contornos mais intensos durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC).
O lobby na redemocratização
Entre os documentos localizados pela Pública estão relatórios que comprovam como o SNI buscou ativamente parlamentares que integravam a Constituinte para apresentar propostas legislativas a serem incluídas na nova Constituição (1988). Os próprios parlamentares foram espionados pelo SNI na época.
Priscila Brandão explica que, quando os trabalhos da Constituinte estavam na fase das comissões temáticas, o colegiado responsável por discutir temas de inteligência e defesa ficou sob comando do deputado Ricardo Fiúza, parlamentar próximo dos militares. “Nada do que foi proposto fora do interesse deles foi aprovado”, afirma.
Ocorre que havia outra frente de batalha: o colegiado em que seriam discutidos os direitos fundamentais. Foi na Comissão da Soberania e dos Direitos do Homem e da Mulher, na qual se debateu os artigos que deveriam garantir o direito à privacidade, ao sigilo de correspondência, e ao habeas data – instituto que prevê que todo cidadão pode requisitar ao Estado as informações que os entes públicos detêm sobre ele.
Em junho de 1987, o SNI produziu um primeiro relatório semelhante a um estudo interno. Cada um desses artigos era analisado e os agentes apresentavam diferentes sugestões, em ordem de prioridade.
Esse estudo foi seguido pela implementação de uma estratégia de lobby e atuação política da agência para fazer valer seus interesses.
Em agosto do mesmo ano, a Constituinte já se encontrava em uma etapa posterior. Corriam os trabalhos da Comissão de Sistematização, que tinha o objetivo de apresentar o primeiro anteprojeto de texto para a nova Carta Magna. O SNI produziu então um novo relatório, detalhando o lobby organizado pela agência.
Segundo o documento, “durante a fase de apresentação de Emendas ao Anteprojeto da Comissão de Sistematização”, o órgão “promoveu articulações com diversos Senadores e Deputados Federais, com vistas a defender os interesses inerentes às suas atividades”.
O texto detalha que foram apresentadas 101 emendas por 13 constituintes, buscando suprimir ou alterar 12 dispositivos do texto. O documento conclui que “como coroamento, no Substitutivo do Relator, obteve-se resultados satisfatórios em 08 dispositivos”.
Mesmo assim, o SNI seguiu organizado para os momentos seguintes da Constituinte.
Na virada do ano, uma mudança importante ocorreu na Constituinte: o surgimento do bloco suprapartidário intitulado Centrão. A articulação tinha como objetivo barrar o que os parlamentares mais conservadores entendiam como excessos liberalizantes do texto que se desenhava até aquele momento.
Assim como as Forças Armadas, o SNI viu no Centrão um aliado. Entendendo a esquerda como seu principal adversário, a agência passou a se articular diretamente com o grupo. É o que revela um outro relatório, de janeiro de 1988, já após a conformação do Centrão.
Apesar de a nova Constituição trazer algumas das garantias que o SNI queria eliminar, a agência sobreviveu à mudança de regime. “Nós passamos por uma transição política e o poder civil não foi capaz de peitar o poder militar a ponto de extinguir o SNI”, aponta Brandão.
Sua extinção ocorreria apenas em 1990, nos primeiros dias do governo de Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito por voto direto após a ditadura militar.
“Não necessariamente porque o Collor tinha um grande projeto para a atividade de inteligência”, esclarece a historiadora. “Quando Collor era candidato, o então chefe do SNI deu um chá de cadeira de cinco horas nele. Então sua atitude de extinguir o SNI está vinculada a uma vingança pessoal.”
O contexto de criação de um novo órgão de inteligência também não foi marcado por discussões profundas sobre o tema. “A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi criada em 1999 como resultado de um debate congressual muito pobre”, explica Brandão.
Inicialmente, o governo Fernando Henrique Cardoso buscou estabelecer a agência por meio de Medida Provisória. Diante de críticas do Congresso, apresentou um Projeto de Lei em 1997. “Mas haverá pouquíssimos debates para se chegar à redação final da lei”, lembra ela.
O resultado foi uma lei avaliada pela especialista como “muito ruim”, por trabalhar com um conceito “extremamente amplo” sobre o que é a atividade de inteligência, o que abriria caminho para distorções do papel da agência. Além disso, Brandão explica que, até hoje, a doutrina que o órgão segue é influenciada pelos termos da Doutrina de Segurança Nacional legada pela ditadura.
“Então esse é o grande problema. “Tem uma percepção do indivíduo, do cidadão brasileiro como inimigo, como alguém que pode ter os seus direitos desrespeitados.”, afirma a historiadora.