Este artigo foi originalmente publicado no De Wereld Morgen e foi reproduzido na Global Voices sob permissão.
O amanhecer em El Salvador é fresco e úmido. Sempre que eu vou a esse país tropical, quente e vulcânico da América Central, sou acordada às 6h com a voz do rapaz vendedor de pães, dizendo: “El pan, el pan”, enquanto toca a sineta da bicicleta. Até mesmo uma dorminhoca como eu gostava dessa experiência comum da vida cotidiana local. No entanto, durante minha última viagem ao país da minha mãe, minha nostalgia foi substituída por uma sensação familiar de sufocamento.
Soube que este rapaz vigia o bairro a mando das gangues assassinas que vivem no fim da rua. A bicicleta é um disfarce, o pão que compramos todas as manhãs é uma forma de vigilância. Minha afeição se dissipou e as manhãs nunca mais foram as mesmas.
Sempre que eu volto a este país localizado a algumas centenas de quilómetros abaixo do México, o espaço que resta para respirar encolhe. Sendo de uma família salvadorenha e belga, eu vou, às vezes, para El Salvador visitar parentes e trabalhar como jornalista.
Para muitos, os bairros onde meus parentes moram são considerados favelas, propensos à violência e fatalidades, mas para mim significam momentos maravilhosos com uma família carinhosa, brincadeiras com os primos e deliciosas comidas caseiras. Ao longo dos anos, porém, percebi como a ansiedade ia preenchendo a existência dos meus parentes.
Espiral de violência
A vida em El Salvador é de sol, praias e clima tropical, famosa entre os surfistas. É também um país onde as pessoas amam dançar, já que nunca sabem quando poderão dançar novamente. Em El Salvador, é preciso calcular cada movimento fora de casa para se manter vivo. Gangues exercem o controle sobre todos os aspectos da vida com regras sociais invisíveis, porém reais, que as pessoas devem seguir estrategicamente. Salvadorenhos fogem dos círculos viciosos da pobreza e do crime, um legado ainda não resolvido da guerra civil nos anos 1980; dos poderes estatais fracos e indignos de confiança e dos efeitos das mudanças climáticas, que levam à insegurança alimentar e, por consequência, mais pobreza. Dezenas de milhares de salvadorenhos, incluindo membros da minha família, pediram asilo aos Estados Unidos, México, Espanha e Bélgica nos últimos anos.
“Cerca de 20.000 salvadorenhos foram mortos de 2014 a 2017. Isso representa mais mortes violentas do que em vários países que estiveram em guerra durante esses anos, como Líbia, Somália e Ucrânia”, relata a organização independente Crisis Group, sediada em Bruxelas. El Salvador também tem uma das taxas de feminicídio mais altas do mundo.
Aqueles que pedem asilo costumam mencionar as ameaças violentas de gangues, que são grupos sociais organizados de adultos e menores de idade que vivem de extorsões e do tráfico de drogas em pequena escala. Essas gangues surgiram originalmente nos Estados Unidos, durante a guerra civil de El Salvador (nota do editor: centenas de milhares de salvadorenhos fugiram para Los Angeles, escapando dos esquadrões da morte treinados pelos EUA, mas foram deixados à própria sorte e muitos jovens acabaram na vida do crime. No fim dos anos 1990, muitos deles foram deportados para El Salvador). Agora, elas definem suas próprias regras paralelas às do estado.
Por exemplo, eu nunca poderia entrar no bairro da minha família sem que um parente, que vivesse naquele barrio específico, fosse me buscar na entrada. Eu seria vista como uma desconhecida e, portanto, uma ameaça aos membros da gangue. Se entrar de carro, as janelas precisam estar abertas e os faróis apagados. Quem não obedece às regras da gangue é considerado uma afronta e pode ser morto no local. Desde o rico empresário do ramo de transportes até o humilde vendedor, se não pagar a cota mensal de extorsão, também é assassinado.
Extorsão mensal
Certo dia, incomodada, reclamei com uma parente mais velha sobre como era irritante ter que pisar em ovos perto dos adolescentes fumando maconha na rua. “Sim, eles são bichos (crianças)”, ela me respondeu. “Mas já têm sangue nas mãos”.
Em El Salvador, falar sobre conhecidos que foram mortos ou estão desaparecidos é parte da conversa cotidiana. Entre dois goles de café com biscoitos, meu primo explicava, em sua visita dominical à mãe, como seu vizinho, um motorista de táxi, foi encontrado morto porque não pagou a taxa de extorsão.
Adolescentes estão acostumados a temer por sua vida ao subirem no ônibus para ir à escola e muitos já viram corpos ensanguentados cobertos por lençóis brancos na rua. Os jovens evitam usar o carro depois que o sol se põe, às 18h — “O que aconteceria se ele quebrasse em um lugar pouco amigável? Um colega da escola foi agredido e morto assim”.
Todo salvadorenho conhece uma pessoa que teve que fugir do país, que foi morta pelas gangues ou que foi assassinada pelo marido. As pessoas que não tiveram um membro da família assassinado são consideradas sortudas. Hoje em dia, as conversas giram em torno do desaparecimento de jovens, que alguns acreditam ter substituído cenas mais flagrantes de homicídio.
Por isso, quando salvadorenhos recebem uma ameaça de morte, eles levam a sério. Primeiro tentam encontrar um refúgio seguro dentro do próprio país, uma tarefa difícil, considerando que El Salvador é apenas um pouco maior do que a Bélgica, mas com metade da população. Quase meio milhão de pessoas foram deslocadas internamente em 2010, em um país em que 94% dos municípios são controlados por gangues. É difícil se esconder de máfias bem organizadas quando, com alguns poucos contatos, é possível localizar qualquer pessoa.
“Repatriados voluntários”
“Eric” (nome fictício, para sua segurança) foi um asilado na Bélgica que retornou para El Salvador em novembro de 2020 no amplamente divulgado voo fretado de “repatriados voluntários”. Quando voltou para El Salvador, ele conseguiu emprego em um restaurante. Agora dorme no trabalho e sai apenas para comprar comida.
“Eu não moro aqui há muito tempo, então não sei para onde ir”, Eric me disse durante uma ligação por WhatsApp em dezembro. “Em alguns encontros [com membros de gangues], eles me revistam da cabeça aos pés e, às vezes me perguntam de onde sou. Eu tenho medo, tenho muito medo de que isso possa me trazer problemas novamente ou que eu saia de casa e não volte mais.”
Eric, de 25 anos, partiu para a Bélgica dois anos atrás, quando as gangues foram até sua casa, roubaram seus pertences e o ameaçaram dizendo que ele seria “um cadáver” se denunciasse qualquer coisa. “Antes disso eu tinha problemas simples, pequenos”, disse. “Roubos ou assaltos no ônibus”, às vezes terminando em tiros. Mas para ele, a ameaça que mudou tudo foi quando as gangues descobriram onde ele morava. Mesmo quando estava na Bélgica, eles continuavam procurando por ele em sua antiga casa, contou.
Eric não se qualificou para o asilo na Bélgica por falta de evidências. Quando o processo do seu pedido de asilo foi recusado, ele dormiu na rua em Bruxelas por alguns meses.
As gangues estão inseridas no tecido social
Ele reivindica que foi impossível conseguir mais provas ou a ajuda das autoridades salvadorenhas. É de conhecimento geral que as gangues não operam só em certos bairros empobrecidos; elas estão inseridas no contexto da sociedade, desde delegacias de polícia à prefeitura, até colegas de classe das crianças e seus pais. Sucessivos governos e partidos políticos têm secretamente feito acordos com elas para obter favores de campanha ou para reduzir artificialmente a taxa de homicídios.
Poucos dias depois que Eric voltou para El Salvador, descobriu que um conhecido seu havia desaparecido. Apenas a moto do rapaz foi encontrada.
Assim como Eric, muitos salvadorenhos buscaram refúgio na Bélgica. Em 2015, 35 salvadorenhos pediram asilo no país; quatro anos depois, 1.365 centro-americanos bateram na porta da Bélgica. Em 2018, a Bélgica reconheceu quase todos os salvadorenhos (95,5%) como refugiados. Em 2020, essa taxa havia caído para 9,5%, de acordo com os últimos números disponibilizados pelo Gabinete de Estatísticas da União Europeia, o Eurostat.
Ao mesmo tempo que a Bélgica reconhece El Salvador como um lugar extremamente perigoso, o gabinete independente que julga quem pode e quem não pode receber o status de refugiado reivindica que a maioria das pessoas que chega atualmente na Bélgica não corre nenhum perigo real em El Salvador e, como resultado, aqueles que buscam asilo se sentem pressionados a voltar para a América Central.
As paredes têm ouvidos
Enquanto isso, em El Salvador, as pessoas continuam falando da violência e dos desaparecimentos em casa com vozes abafadas porque “as paredes têm ouvidos”. Muitas janelas são protegidas com barras de ferro, mas não têm vidros; as paredes são blocos de concreto simples e pessoas — como o jovem vendedor de pães — podem sempre ouvir uma conversa se não for sussurrada.
Eric planeja continuar estudando francês e inglês para quando chegar sua hora de migrar e salvar sua vida outra vez. Já eu, não tenho certeza quando arriscarei voltar a El Salvador para abraçar minha família e sentir o amanhecer fresco e úmido mais uma vez.