Cidadãos das democracias ainda podem confiar na lei? Um debate do Global Voices Insights

Imagem cedida por Ameya Nagarajan

A legislatura — e o processo legislativo — é um dos três pilares da democracia, estabelecido na própria essência do sistema político. Tanto o sistema jurídico quanto o processo de legislação existem para proteger os cidadãos de uma democracia. Ainda assim, em nossa pesquisa no Unfreedom Monitor, vimos repetidamente como estados autoritários, bem como estados supostamente democráticos, usam leis que visam proteger os cidadãos para policiar as ações, palavras e a própria presença das pessoas nos espaços digitais e restringir a liberdade de expressão. Em um episódio do Global Voices Insights, chamado “Cidadãos das democracias ainda podem confiar na lei?”, os participantes do painel Laís Martins, Veszna Wessenauer e Alok Prasanna Kumar debateram a consequência de governos que aprovam leis para regularmentar espaços digitais.

O relatório Freedom House de 2022 mostra que a liberdade global diminuiu pelo 10º ano seguido, com autoridades em diversos países elaborando leis voltadas para as indústrias e empresas de tecnologia com a intenção de reprimir a liberdade de expressão e coletar dados privados dos cidadãos. A tecnologia e a liberdade ficam mais entrelaçadas a cada dia: as últimas eleições no Brasil (2018) e na Índia (2019) foram apelidadas de “eleições do WhatsApp” com os países travando batalhas de amor e ódio com as redes sociais.

Martins explica que, no Brasil, em 2018, todos os candidatos usaram as redes sociais com maestria, especialmente Bolsonaro, que utilizou as redes sociais e a desinformação em sua campanha. Isso se intensificou rapidamente até um comportamento inautêntico coordenado e ataques a jornalistas e membros da oposição. Os parlamentares apresentaram um projeto de lei para tentar combater essa prática.

Em 2020, a Lei da Desinformação ou Lei das Fake News começou a tramitar no Congresso do Brasil sob a perspectiva da esquerda, como forma de combater as notícias falsas. Conforme o processo de debate avançava, várias sugestões foram incorporadas a partir do meio acadêmico, da sociedade civil etc., à medida que tomavam conhecimento do impacto que isso poderia ter sobre a liberdade de expressão. O PL acabou se tornando um projeto gigantesco de regulamentação das plataformas, as principais envolvidas, que inicialmente estavam muito comprometidas com o projeto de lei, e começaram a recuar alegando que havia se transformado em algo que tentaria mudar o funcionamento da internet.

Martins aponta que o principal problema com o PL é que criminaliza conteúdos e não comportamentos, porque abre caminho para que aqueles que detêm o poder escolham o que é conteúdo “ruim” a qualquer momento e processem criminalmente as pessoas. Além disso, exigiria que as plataformas verificassem o conteúdo, o que é mais um problema já que é necessário um entendimento do contexto do país para dizer se o conteúdo é problemático de alguma maneira, e vimos no Brasil e na Índia como isso pode não sair como o esperado.

Alok comenta que em um país com estado de direito fraco, como a Índia, onde “a polícia e o judiciário nem sempre seguem a lei, mas sim as instruções dos superiores”, sequer é necessário analisar o conteúdo; você pode intimidar a pessoa que é “responsável” e fazer com que se cale. A Lei de Tecnologia da Informação de 2000 na Índia possui duas seções que frequentemente são usadas para isso.

O artigo 66A da lei, apresentado em 2009, que ele chama de “artigo zumbi”, criminaliza qualquer pessoa que enviar mensagem ofensiva ou ameaçadora por meio de qualquer mídia, o que é uma tentativa de se concentrar no conteúdo. E, porque não há nenhum objetivo em entender a “ameaça” ou “ofensa”, torna crime tudo o que é inaceitável. O artigo foi discutido e, em 2015, a Suprema Corte o anulou por violar a liberdade de expressão. Mas, durante sete anos após essa decisão, que é mais tempo do que ficou em vigor, pessoas ainda são processadas sob esse “artigo zumbi”.

O artigo 69A, permite que o governo bloqueie links específicos na internet. O que é injusto é o processo pelo qual é bloqueado, uma vez que não exige transparência da razão pela qual o conteúdo é eliminado. Recentemente, o governo indiano retirou do ar canais de YouTube na íntegra, alguns cobriam eventos locais que a imprensa convencional ignora, sem dar nenhuma informação sobre as causas de tais medidas. O artigo 69A se encaixa em um conjunto maior de leis na Índia que Alok chama de “leis sem lei”, pois são usadas para os caprichos do governo: as consequências nos indivíduos são pesadas e não há espaço para explicações ou correções.

Na Hungria, uma lei específica feita para o bem, mas que abre espaço para abusos é a Lei de Proteção à Criança de 2021, aprovada supostamente para proteger crianças de pedófilos. Como a lei limita quem tem permissão para falar com as crianças sobre sexualidade, ela é usada para atacar a comunidade LGBTQ+. Wessenauer diz, “Essa medida é aplicada por meio da proibição de qualquer tipo de conteúdo relacionado à comunidade LGBTQ+ que seja feito para menores de 18 anos”, fazendo um paralelo com a investigação da Arábia Saudita sobre um desenho animado da Netflix com duas garotas se beijando e um episódio similar na Hungria.

Embora sejam três diferentes contextos, há paralelos muito interessantes. Martins ressalta que no Brasil também há muito controle sobre quem pode falar com as crianças sobre sexualidade Para Alok, o interessante é como o governo continua escolhendo novos inimigos: muçulmanos, “o Ocidente”, pessoas LGBTQ+, imigrantes… Tudo o que for mais conveniente para sua campanha atual.

A questão mais importante aqui, e o outro lado da regulamentação da internet é que isso permite o Estado a se mobilizar e apagar a existência dessas comunidades e suas identidades da cultura popular e do debate: A Índia é para os hindus, e talvez a Hungria seja para os húngaros. O que Wessenauer acha mais perturbador é que eles fazem isso em nome da democracia. “Como se pode argumentar contra uma lei de proteção à criança? Se você a critica, você está do lado dos pedófilos”.

As grandes empresas de tecnologia podem ser uma barreira para a democracia?

Isso nos leva a uma pergunta: “Quais são as partes de uma democracia que deveriam estar funcionando, mas não estão, e que estão contribuindo para que isso aconteça? Como é possível que o artigo 66A continue a ser utilizado sete anos depois que foi derrubado na Índia?”

Para Alok, uma parte é definitivamente o fato de os sistemas policial e judiciário terem perdido o controle. A Polícia na Índia foi criada originalmente como uma força colonial, para manter as pessoas controladas e caladas, e nada mudou — até usam os mesmos uniformes. O sinal: A polícia está aqui para manter a paz… para os governantes. Em uma democracia, o órgão encarregado de responsabilizar a polícia é o judiciário, mas este também perdeu sua finalidade.

Alok dá um exemplo: “Nas primeiras 24 horas de uma detenção na Índia, você tem direito de ser ouvido por um juiz. E a pergunta que tendem a fazer é: “Por quantos dias devo mandá-lo para a cadeia?” e não “Ele deve ser preso? Quando foi que os juízes deixaram de entender que seu trabalho era fazer com que a polícia cumprisse suas obrigações, facilitar a vida dos cidadãos e não das forças policiais? Esse é um sério problema. Eles não têm seriedade com os direitos dos cidadãos ou com o Estado de Direito”.

Há outra força atuando nesse caso: as Big Techs. O que as empresas de tecnologia devem ou podem fazer para apoiar seus usuários que estão sendo alvo do governo?

No Brasil, diz Martins, é evidente que o Projeto de Lei das Fake News não foi aprovada devido à pressão das grandes empresas de tecnologia, tanto pressionando os parlamentares quanto realizando campanhas publicitárias. As empresas sabiam quais aspectos pressionar. “Nossos parlamentares entendem muito pouco sobre redes sociais. Isso significa que as Big Techs podem agir de qualquer forma no Brasil, o que é alarmante para os cidadãos, e é um mercado muito grande, de modo que, ao mesmo tempo, têm pouco incentivo para permitir que a regulamentação seja implementada”.

Alok seria profundamente cético com relação às Big Techs trabalhando para apoiar os cidadãos e pressionando o governo por regulamentação, mas, no caso de fazerem isso, deveria ser público e transparente para inspirar confiança. Houve o Projeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais, que foi um projeto para reduzir o poder das grandes empresas de tecnologia, que, embora tenha tido seus problemas, foi um projeto de cinco anos que se desfez devido às pressões do mercado. “Eles podem não ter um exército hoje, mas como a Índia foi colonizada originalmente por uma empresa, sou cínico e receoso em relação aos esforços das Big Techs para se opor ao governo”.

Na Hungria, Wessenauer nos diz que o governo centralizou e tomou o controle da mídia tradicional e eles agora tentaram implementar o mesmo controle nas redes sociais, usando influenciadores. Isso significa que as empresas precisam aceitar que eles estão em uma posição onde eles são uma ferramenta. Isso é o que faz a transparência muito importante, ela diz. “Mesmo que você acate, você pode dizer abertamente que está acatando sob protesto e tornar públicas as solicitações e as ações.” Isso é o que o Twitter está tentando fazer na Índia, levando o governo ao tribunal.

Não há nenhuma lei sobre isso no Brasil, o que significa que tudo deve passar pelo judiciário, até mesmo algo tão pequeno como encontrar informações sobre uma coisa simples, diz Martins. “Mas é importante ressaltar que as plataformas tendem a se opor às solicitações. Acredito que as plataformas, principalmente depois de Trump, estão bastante cientes do que é feito com suas ferramentas e que eles podem chegar ao ponto de retirar uma conta do ar — por exemplo, se Bolsonaro disser que as eleições foram fraudadas. Mas eles não dirão tão abertamente”.

Quer seja o desafio administrativo de simplesmente descobrir por que algo foi retirado do ar ou a razão política que deixa as pessoas sem informações sobre o que aconteceu com suas manifestações on-line, empresas de tecnologia podem ajudar institucionalizando a transparência pelo menos para os usuários encontrarem o que aconteceu com seus conteúdos.

Às vezes pode parecer um protesto sem fim, mas temos que continuar nos manifestando, levantando nossas vozes, diz Wessenauer. “É um clichê, mas o silêncio foi o que favoreceu os nazistas”. Martins acha difícil encontrar otimismo, embora ela tente não ver as coisas como sendo binárias. “Eu estou preocupada com a democracia no Brasil e, mesmo que a mantenhamos, como podemos seguir em frente? Como jornalista, posso orientar as pessoas sobre o que está em jogo”. Alok, apesar de seu ceticismo em relação às tecnologias, é o mais otimista, dizendo que raramente perguntamos, “O que pode ser construído?”. Nem tudo precisa de vastos recursos; não há problema em começar aos poucos. “Podemos construir instituições e governos melhores? Porque, de fato, a governança é ascendente, não é descendente”. O que precisamos fazer é permanecer alerta, informar e construir melhor.

Assista ao debate na integra YouTube:

 

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