Quando o Brasil começava a atravessar a pandemia do novo coronavírus, em março de 2020, um discurso do presidente Jair Bolsonaro em rede nacional de televisão ecoou as palavras do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, minimizando a gravidade da doença que atingia o mundo e defendendo afrouxamento das medidas de distanciamento social recomendadas por cientistas.
Para integrantes da US Network for Democracy in Brazil (USNDB), rede formada por brasileiros e norte-americanos baseados nos EUA, ali se consolidava a “cartilha Trump” do enfrentamento à Covid-19 no Brasil, o que resultou em número recorde de mortes, tensões com aliados comerciais na Ásia e na Europa e deslegitimação da ciência. Quando o próprio Trump recuou na postura, Bolsonaro foi identificado pela revista The Atlantic como líder do movimento negacionista do novo coronavírus.
Com a saída de Trump e o início do governo Joe Biden-Kamala Harris, a USNDB viu que a mudança no plano de enfrentamento à pandemia nos EUA poderia influenciar também as ações adotadas pelo Brasil. Foi assim que surgiu a ideia de criar um estudo para informar o novo governo sobre o tema, segundo Juliana Moraes, Diretora Executiva do escritório de Washington da rede. O documento evoluiu para algo mais amplo, com outros temas afetados pela relação do antigo governo com Bolsonaro.
“Nos EUA, os 100 primeiros dias de governo têm muito peso. O tom do governo é dado nesse período, por isso era fundamental que essas recomendações chegassem a Casa Branca neste momento”, explica Juliana.
Composta por mais de 1500 membros e liderada por mais de 150 acadêmicos e ativistas das principais universidades americanas, como Harvard, Columbia, Georgetown e Brown, além de ONGs e entidades socioambientais como a Amazon Watch, a USNDB é uma rede de membros da sociedade civil, brasileiros e americanos, que atuam nos EUA. Criada em 2018, a organização tem como missão informar ao público norte-americano sobre o Brasil e defender avanços sociais, econômicos, políticos e culturais.
Segundo a BBC Brasil, as equipes de dois deputados próximos a Biden, Susan Wild e Raul Grijalava, revisaram o documento. A reportagem do veículo também contatou o governo brasileiro que disse que não iria comentar sobre o documento.
No início de fevereiro, o escritório da USNDB recebeu a notícia que o documento havia chegado a Casa Branca por meio de Juan Gonzalez, nomeado por Joe Biden diretor sênior para o hemisfério ocidental do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. Gonzalez é conselheiro do partido democrata para assuntos de desenvolvimento econômico e diplomacia com países da América Latina. Nos próximos quatro anos, ele irá orientar Biden em temas como cooperação bilateral, Estado de Direito e mudança climática.
Antes do resultado das eleições, no fim de outubro, Gonzales já havia comentado em seu Twitter sobre questões envolvendo o Brasil.
Anybody, in Brazil or elsewhere, who thinks they can advance an ambitious relationship with the United States while ignoring important issues like climate change, democracy, and human rights clearly hasn’t been listening to Joe Biden on the campaign trail. https://t.co/SyIGlFMdpx
— Juan S. Gonzalez (@Cartajuanero) October 22, 2020
“Qualquer pessoa, no Brasil ou em outro lugar, que pense em construir uma aliança forte com os Estados Unidos ignorando questões importantes como mudança climática, democracia e direitos humanos, claramente não tem ouvido Joe Biden na campanha.”
O GV conversou com Juliana Moraes, via telefone e e-mail, sobre a coordenação do dossiê e a importância das relações Brasil-EUA agora:
GV: Como foi a articulação para que o documento chegasse ao gabinete de Biden?
O Washington Brazil Office (WBO), a parte do USNDB que trabalha com advocacy em Washington, capital dos Estados Unidos, tem parcerias com inúmeras ONGs e think-tanks. Por nossa posição apartidária e descentralizada, consolidamos relações importantes dentro e fora do Congresso dos EUA, e foi a partir dessas relações que o documento chegou às mãos de Juan Gonzalez, recém-nomeado por Joe Biden para sua equipe. Gonzales foi grande crítico de Trump e é conselheiro democrata para a América Latina de longa data.
A consolidação de nossas relações no Congresso dos EUA tem suas raízes em 2016. Durante o processo de impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, a Câmara do Congresso dos EUA enviou uma carta assinada por 43 parlamentares ao então Secretário de Estado, John Kerry. Nesta carta, os parlamentares expressaram preocupação com a situação político-constitucional do Brasil. Foi a primeira carta em que o Congresso dos EUA expressava preocupação com o Brasil em mais de 20 anos.
Nosso trabalho é colaborativo, dentro e fora da USNDB. Dentro, contamos com mais de 150 acadêmicos e líderes de organizações sociais globais, e entre eles estão pessoas que conhecem secretários e conselheiros nomeados pela nova administração. Biden e sua equipe têm demonstrado interesse em manter um diálogo próximo com pesquisadores, cientistas e movimentos sociais.
GV: Como surgiu a ideia de enviar um documento ao governo Biden e por que agora?
Sabíamos que se Joe Biden e Kamala Harris ganhassem as eleições dariam novo foco à gestão da pandemia nos EUA e, por consequência, poderiam influenciar o gerenciamento da crise no Brasil, e pensamos em desenhar um informe que colaborasse com esse tema. O documento evoluiu para algo mais amplo, com outros temas que sofreram grave impacto nos últimos dois anos com a relação entre Bolsonaro e Trump, então presidente norte-americano.
Nos EUA, os 100 primeiros dias de governo têm muito peso. O tom do governo é dado nesse período, por isso era fundamental que essas recomendações chegassem a Casa Branca neste momento. Em 30 páginas, contamos com a participação de especialistas em dez áreas – democracia e estado democrático de direito; direitos indígenas, mudanças climáticas e desmatamento; economia política; base de Alcântara e apoio militar dos EUA; direitos humanos; violência policial; saúde pública; coronavírus; liberdade religiosa e trabalho.
GV: Quais os principais pontos destacados no dossiê?
Os capítulos mais extensos, e eu diria mais complexos, são aqueles que tratam das questões ambientais e de direitos humanos. Não é real que para alcançar bons patamares econômicos seja preciso enfraquecer regulamentações socioambientais. Essa divisão é um desserviço para o Brasil. O documento conecta os dois [temas], e apresenta evidências de que existem caminhos para um desenvolvimento responsável e sustentável no Brasil.
Trouxemos análises, historicamente contextualizadas, sobre aquecimento global e meio ambiente, crescimento econômico sustentável, fortalecimento de instituições e políticas democráticas, direitos dos trabalhadores, bem como a posição pública do atual governo brasileiro em temas como direitos dos povos indígenas, quilombolas, mulheres, comunidades LGBTQIA+, acesso a saúde e gestão da pandemia.
O informe faz recomendações concretas, como rever o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas assinado por Bolsonaro e Trump, que impacta diretamente famílias quilombolas [que vivem na área da base de] Alcântara, no estado do Maranhão; restringir importações de madeira, soja e carne do Brasil advindas de áreas ilegalmente desmatadas, o que ja é previsto pela legislação americana; divulgar documentos confidenciais sobre a ditadura no Brasil e esclarecer a suposta participação dos EUA na operação Lava Jato.
De maneira geral, o informe recomenda que o atual governo dos EUA reveja as políticas externas da gestão de Donald Trump e sua influência no Brasil – o que impactou também outros países latino-americanos numa guinada perigosa à extrema direita.
GV: Ainda que tenha um discurso de liberdade e democracia, os Estados Unidos têm um histórico de intervencionismo na América Latina. Por que o trabalho com o governo americano é importante? Como garantir que a relação entre os países não coloca em risco a soberania do Brasil?
De modo geral, nos EUA, existe um desconhecimento grande sobre o Brasil, sua história, sua diversidade e suas complexidades. Com nossa rede de contatos, dentro e fora do governo, temos a responsabilidade de trazer questões que não são amplamente conhecidas no exterior e temos a oportunidade de apresentar os assuntos de maior peso no Brasil, que afetam o dia a dia da população.
Através do nosso trabalho com o Congresso dos dois países, conseguimos abrir diálogos entre representantes políticos, movimentos sociais e sociedade civil. Aprendemos e exportamos conhecimento. Esse tipo de diálogo aberto e bem informado entre dois países é a base da construção de relações bilaterais mais equitativas. Sem isso, ficamos mais vulneráveis a crises internas e externas, sejam elas econômicas, políticas ou sociais.
*Isabela Carvalho, que coordenou essa entrevista, é parte do Conselho Consultivo do Washington Brazil Office, parte da USNDB responsável pelo trabalho de advocacy da organização.