A versão original deste artigo foi publicada na página Zócalo.
No último mês de março, eu estava dando aulas duas vezes por semana na Universidad Bicentenaria de Aragua, 120 quilômetros a oeste de Caracas, Venezuela. Enquanto os protestos estavam explodindo pelas ruas do país, eu ia para o campus sem saber se estaria ensinando um grupo de cinco a 45 alunos ou — como foi o caso na maior parte do semestre — se teria que adiar a aula sem saber se o país cairia numa anarquia frenética.
Minhas matérias eram “Introdução ao Cinema” e “Oficina de Roteiro”. Nesse contexto, elas podem parecer superficiais, uma fraca tentativa de se agarrar à normalidade em um país caindo aos pedaços, mas achei que a experiência foi uma distração bem-vinda do meu outro emprego, que era reportar os acontecimentos atuais na Venezuela. Falando com meus alunos, percebi que não estava sozinho na busca por esquecer, mesmo que apenas por alguns momentos, da nossa tragédia cotidiana.
A primeira pergunta que fiz aos meus alunos foi que tipo de filme eles assistiam. Menos de uma década nos separava, e não foi difícil ver tendências geracionais parecidas com as de colegas da mesma faixa etária em outros países. Havia os fãs da Marvel e do Harry Potter, usuários do Reddit e Tumblr, espectadores de 13 Reasons Why ou Game of Thrones, e leitores de literatura desde Jane Austen até 50 Tons de Cinza.
Seria fácil desconsiderar isso tudo chamando de puro escapismo: uma breve libertação da inflação, da falta de alimentos, e de um dos maiores índices de criminalidade do mundo. Enquanto a vida normal é uma luta, achar séries e filmes estrangeiros é relativamente fácil e quase grátis, se a conexão de internet permitir. A pirataria é comum na América Latina, mas o que faz a Venezuela se destacar é a crescente dificuldade de acessar mídias legais. Mesmo antes de o país ter sido tomado por uma inflação de quatro dígitos, comprar livros novos ou ir ao cinema regularmente era um pequeno luxo. A maioria dos meus alunos não lê livros de papel ou no Kindle, mas no Wattpad ou em PDFs nos seus telefones e computadores.
Apesar disso, olhando mais profundamente, pode-se perceber ainda outro tipo de libertação envolvida — a que se consegue quando, ao fim, palavras e imagens expressam o que não podemos de outra forma. Navegando pelo Facebook e Twitter, pode-se achar memes comparando a falta de transparência e os abusos do governo Maduro com as intrigas na corte de Westeros em Game of Thrones. Ou justapondo o sobrevivencialismo violento de The Walking Dead com a vida cotidiana daqui: falta de alimentos, infraestrutura falha e um fornecimento de medicamentos muito limitado.
Este ano, o povo acompanhou de perto a morte do policial renegado Óscar Pérez nas redes sociais, inclusive vídeos de si mesmo que publicou no Instagram. Foi uma cena que não estaria fora de contexto em filmes como Jogos Vorazes ou V de Vingança, aos quais jovens venezuelanos fazem referência na comparação com suas próprias situações; às vezes como piada, outras, com mais seriedade.
É irônico, realmente, que acabemos definindo nossas lutas por meio da mídia estrangeira. Quando Hugo Chávez se tornou presidente, em 1999, era visto como um nacionalista, um comandante militar, um homem comum. Mas, acima de tudo, era um llanero, um interiorano, um caubói venezuelano que lideraria não apenas uma revolução social ou econômica, mas também cultural. Era visto por muitos como um retorno às nossas raízes, uma volta à “verdadeira Venezuela” — um país que, incidentalmente, havia sido definido pela regência de valentões cheios de carisma.
Alguns artistas e intelectuais rapidamente se adaptaram a essa nova situação, alguns por afinidade política, outros por dinheiro. Román Chalbaud, indiscutivelmente o artista mais proeminente da Revolução Bolivariana, costumava ser um cineasta conhecido por seus dramas sociais realistas, se não lúgubres. Atualmente, dirige épicos históricos do século XIX estrelando llaneros lendo Karl Marx.
Por quinze anos houve um crescimento acelerado no cinema venezuelano, graças a grandes investimentos e promoções do governo. Esse período conseguiu produzir alguns filmes sensacionais, intelectualmente estimulantes e premiados, junto com o ocasional filme de propaganda, em sua maioria pelas mãos de Chalbaud e sua laia. Ainda assim, meus alunos menosprezam os filmes venezuelanos, vendo-os como “chatices sobre Simón Bolívar” ou “cheios de bandidos e prostitutas”.
O sucesso de “Papita, Maní, Tostón” alguns anos atrás — uma comédia romântica sem graça, barata e cheia de piadinhas, passada no mundo dos fãs de baseball — é prova de que os venezuelanos apreciam, sim, os filmes de seu país, mas, provavelmente, gostam menos daqueles que refletem muito profundamente sobre a situação do país.
De qualquer forma, a maioria dos filmes venezuelanos são difíceis de encontrar, já que há pouquíssimo mercado para mídia caseira ou streaming aqui, o que significa que cópias piratas não são fáceis de conseguir. Para assistir ao cinema venezuelano, a melhor opção é o YouTube, onde se acha o filme de 1949 La Balandra Isabel — uma das duas produções venezuelanas a ganhar em Cannes— e Papita, Maní, Tostón. Mas quando esses vídeos pixelados forem retirados do ar por conta de infrações aos direitos autorais, a chance de assistir ao filme será perdida, provavelmente, para sempre.
Em uma lista dos 10 filmes venezuelanos mais lucrativos, achamos três comédias, dois filmes de ação, dois históricos, um de terror e dois dramas LGBT. Com exceção desses dois últimos e dos de ação, que invariavelmente focam em crimes e corrupção, mas nunca exploram suas razões, nenhum deles expressa qualquer tipo de discernimento sobre a Venezuela de hoje.
Então fez sentido que, quando pedi aos alunos que desenvolvessem o rascunho de uma história, a maioria deles a colocou nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental. Esses são lugares que eles não conheciam, e suas histórias eram cheias de erros óbvios: um achava que Minnesota era uma cidade; outro, que Manhattan era fora de Nova Iorque; e outro que Roma era um país. As poucas histórias passadas na Venezuela eram de vingança ou transbordando com níveis vergonhosos de nacionalismo.
Esses jovens, nascidos na época em que Hugo Chávez tomou o poder, não conseguiam imaginar histórias de amor, comédia, aventura ou dificuldades pessoais passadas em sua própria sociedade. Apesar da máquina midiática do governo —constituída de vários canais de televisão, dúzias de estações de rádio e vários jornais — e da revolução cultural do Chavismo, gerações mais jovens não veem imagens de si mesmos para além do desespero e da desilusão. Mas, ao mesmo tempo, a oposição nunca conseguiu conceber uma alternativa crível a essa situação.
De muitas formas, a Venezuela vem se redescobrindo. Conforme o país mergulha em sua crise mais profunda na memória recente, questionamos fatos supostamente inalteráveis que um dia definiram a nós e a nossa nação. Por quarenta anos, a Venezuela foi uma democracia bipartidária, próspera por conta da espetacular receita do petróleo. Um dos objetivos dos arquitetos da chamada “Venezuela Saudita” era modernizar o país, ou, pelo menos, fazê-lo parecer moderno. Isso significava criar museus de arte contemporânea, um concurso literário internacional e centros de performance de última geração: a face da Venezuela democrática era inspirada na arquitetura de Niemeyer e instalações artísticas de Carlos Cruz-Diez.
Contudo, na perspectiva de muitas pessoas, especialmente daqueles empobrecidos pela catástrofe econômica dos anos 80, os líderes eram desconectados, elitistas, mais atentos ao que estava acontecendo em Miami ou Bern do que nas áreas rurais ou favelas de Caracas. Não é surpresa que lá a palavra “apátrida” tenha sido um dos insultos mais usados por Chávez contra seus inimigos. A seus olhos, aqueles que estavam contra ele não eram “verdadeiros venezuelanos”. Artistas e intelectuais, enquanto isso, estavam abismados por um homem que armou um golpe contra um governo democrático ter sido eleito presidente. Para eles, a pergunta se tornou: “Onde foi que erramos?”.
Durante a maior parte do governo Chávez, quando se entrava em qualquer livraria, parecia que 90% dos livros escritos e publicados na Venezuela estavam tentando responder a essa pergunta. De jornalistas a professores universitários a ex-ministros, todo tipo de especialista de fim de semana ofereceu seu próprio diagnóstico nacional e prescreveu fórmulas vagas para colocar o país de volta nos trilhos.
Esse não é mais o caso. À medida que o Chavismo foi se solidificando na nova configuração das instituições públicas, aqueles especialistas sumiram lentamente do palco. Isso se deve em parte à tomada silenciosa da mídia pelo governo, mas também reflete a falta de interesse da geração mais jovem em reestruturar um país cheio de falhas, e no qual nunca viveram.
Hoje em dia, as livrarias que não fecharam enchem suas prateleiras com os livros remanescentes, alguns dos quais datando até dos anos 70 (sabia que existem versões em espanhol de Happy Days?). Algumas têm uns poucos livros mais ou menos novos que podem custar facilmente um mês de salário. Mas recentemente, até mesmo o comércio de livros usados, que costumava ser ativo, já que muitas pessoas estavam deixando o país e tentando fazer dinheiro rápido, caiu por conta da alta na inflação.
Ao passo que os venezuelanos se espalham ao redor do mundo, uma nova questão ganha relevância: “O que é a Venezuela?”. É um lugar? Uma memória? Um ideal? Uma ilusão perdida? Essa pergunta persegue as histórias viscerais e emocionadas de Héctor Torres, assim como as canções reflexivas e melancólicas da banda alternativa La Vida Bohème. Para tantos venezuelanos, incluindo os que partiram sem olhar para trás, os que olham para trás de todas as direções, e aqueles de nós que ainda permanecem no país sem saber o que o futuro trará, tal pergunta paira no ar, impossível de ser ignorada.
No momento, não há uma resposta. Mas não posso esperar para ver os livros e filmes que criaremos para responder.