Migrantes venezuelanos enfrentam preconceito e burocracia no Norte do Brasil

Marco da fronteira entre Brasil e Venezuela. Foto: Rodrigo Borges Delfim, publicada com permissão.

O jornalista Rodrigo Borges Delfim é editor do site Migramundo, com quem o Global Voices mantérm uma parceria. Sua viagem a Roraima foi parcialmente bancada por uma vaquinha feita pelos seus leitores.

Já são milhares os venezuelanos que vivem em Roraima. O estado do Norte do Brasil ganhou o noticiário internacional ao tornar-se refúgio para quem foge da crise econômica que assola o país vizinho. Enquanto as autoridades roraimenses reclamam da falta de apoio do governo federal para acolher os migrantes, estes relatam preconceito por parte dos brasileiros — e sofrem com a burocracia para regularizar sua documentação no país.

“Não é por brincadeira que estamos aqui. Somos xingados por falar espanhol. Somos discriminados por seremos venezuelanos”, afirma a psicóloga Merlina Ferreira, que há um ano vive em Boa Vista, capital do Estado. Merlina está entre os 30 mil venezuelanos que passaram a residir em Roraima desde o início de 2016, segundo dados do governo estadual.

Entre os migrantes, há indígenas da etnia warao, a segunda maior da Venezuela. Muitos deles buscam seu sustento no comércio de artesanato ou pedindo esmolas nas ruas. Quando conseguem uma quantidade razoável de dinheiro e produtos, retornam aos locais de origem.

A presença em maior número dos venezuelanos tem sido notada tanto em Pacaraima, cidade fronteiriça que é vizinha à venezuelana Santa Elena de Uairén, quanto em Boa Vista, seja nas filas dos serviços públicos ou nas ruas. Muitos migrantes não dispõem de abrigos permanentes e dormem ao relento.

O assunto é um dos mais debatidos pela população local e também é destaque no noticiário nacional, gerando tanto manifestações de solidariedade quanto de preconceito contra os venezuelanos.

Visando entender melhor o problema, o Ministério Público Federal (MPF) levou no mês de março uma delegação com 40 pessoas de diferentes organismos do governo e entidades não governamentais de todo o Brasil a Roraima.

“Temos que ter um olhar humanitário, mas precisamos ir além, porque essas pessoas são sujeitos de direitos. As soluções não podem ser meramente temporárias, temos de pensar em soluções que sejam permanentes”, aponta o Procurador Federal João Akira Omoto, um dos organizadores da missão.

Durante três dias, a missão conversou com migrantes e representantes de diversos órgãos municipais e estaduais. Também foram visitados um abrigo provisório na periferia de Boa Vista e a cidade de Pacaraima, que não dispõe de nenhum abrigo público para os estrangeiros. Ao final, o MPF organizou uma audiência pública em Boa Vista, que reuniu tanto migrantes como autoridades federais, estaduais e municipais.

Migrantes venezuelanos, indígenas e não indígenas, conversam com integrantes da missão organizada pelo Ministério Público Federal. Foto: Rodrigo Borges Delfim, publicada com permissão.

Tanto a prefeitura de Boa Vista quanto o governo de Roraima reclamam que faltam recursos para atender às demandas trazidas pelo aumento da migração venezuelana e afirmam que o assunto é de competência federal. As autoridades também se queixam da ausência de documentos – em geral, os migrantes indígenas não possuem qualquer tipo de documento.

“Eu não consigo cadastrar o imigrante irregular nos serviços de saúde. Sem esse registro, por exemplo, não conseguimos verba para esse atendimento, e assim colocamos em risco o atendimento do restante da população. Não temos condições de assumir o atendimento dessas pessoas aqui”, declara a Procuradora-Geral do Município de Boa Vista, Marcela Medeiros.

“O que estamos fazendo aqui é ajuda humanitária. Não vamos deixar mulheres e crianças nas ruas em situação de vulnerabilidade. E como a temática envolve a questão indígena ela se torna mais profunda. É nisso que queremos que o governo federal nos ajude a resolver”, diz a governadora de Roraima, Suely Campos.

Área externa do abrigo improvisado para migrantes na periferia de Boa Vista. No momento da visita da missão, havia 193 pessoas registradas no local, sendo a maioria (136) indígenas warao. Foto: Rodrigo Borges Delfim, publicada com permissão.

O fluxo migratório tem sido mal recebido pela sociedade local, incomodada com a presença de migrantes em praças públicas, como vendedores ambulantes ou pedindo esmolas.

Autoridades municipais relacionam a chegada dos venezuelanos com o aumento de crimes, como roubos, assaltos e até mesmo homicídios. No entanto, dizem que ainda estão preparando estudos que embasem essas afirmações.

O procurador José Gladston Viana Correia, outro organizador da missão, pediu cautela quanto a estas afirmações dos gestores locais. “Precisamos de dados que demonstrem essas suspeitas”, afirmou.

Akira reforça a observação de Gladston. “A Polícia Federal apurou que não havia registros de criminalidade cometidos por venezuelanos até dezembro de 2016 em Roraima. É necessário que essas informações sejam divulgadas com clareza na sociedade. E o que tem circulado não condiz com os dados registrados”.

Para Gustavo da Frota Simões, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima, dados desencontrados ou mal interpretados divulgados pelas autoridades e pela imprensa ajudam a criar um clima de “invasão” de venezuelanos junto à sociedade.

“Os jornais locais tratam a migração venezuelana com olhos de quem não entende o assunto e com contornos de xenofobia. O migrante ou “o venezuelano” é sempre “o autor do crime”, causador do aumento da prostituição, drogas e de outros males”, diz.

Simões acredita que os problemas citados por prefeituras e secretarias são anteriores ao crescimento da migração venezuelana. “Ao meu ver, essa situação de emergência foi utilizada como um mecanismo para negociar dívidas e receber mais recursos, além de justificar falhas que já aconteciam anteriormente à chegada dos venezuelanos”.

Os relatos de preconceito e discriminação eram gerais entre os cerca de 50 migrantes venezuelanos presentes na audiência pública realizada em Boa Vista, no auditório da Universidade Federal de Roraima.

“Não somos um problema. A situação em nosso país é muito difícil, por isso estamos aqui”, afirmou o venezuelano Bruno Florian.

“Queremos ser parte da solução. Sofremos muito com a discriminação aqui, as mulheres são taxadas de prostitutas”, reforçou o também venezuelano Freiomar Villena.

Migrantes indígenas venezuelanos reunidos em praça na cidade fronteiriça de Pacaraima.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim

No limbo da lei

Ainda que venezuelanos possam entrar no Brasil utilizando apenas a carteira de identidade, aqueles que chegam com a intenção de trabalhar ou de firmar residência no Brasil encontram dificuldades para obter documentos como a carteira de trabalho, que permite que a pessoa possa trabalhar formalmente.

A saída encontrada pelos migrantes venezuelanos — e de outras nacionalidades – para obter uma situação migratória regular, ainda que precária e limitada, é o pedido de refúgio. No Brasil, solicitantes de refúgio têm direito à documentos brasileiros, como número de seguridade social, passaporte e carteira de trabalho, enquanto aguardam o julgamento de seu pedido.

Esse julgamento pode levar meses ou até anos e, enquanto isso, o migrante pode trabalhar e residir livremente no país, assim como utilizar serviços públicos. De acordo com o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), responsável por julgar os pedidos, o número de solicitações de venezuelanos saltou de 341 em 2015 para 2.230 em 2016.

O solicitante é reconhecido como refugiado quando prova que sofria algum tipo de perseguição ou violação de direitos humanos em seu país de origem – as autoridades brasileiras consideram que a grande maioria das solicitações de refúgio de venezuelanos não se enquadram nesses quesitos. No ano passado, apenas cinco pedidos de venezuelanos foram deferidos pelo Conare.

Uma medida adotada recentemente pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg) foi permitir o pedido de residência temporária para migrantes que entrem no Brasil por terra e sejam de países vizinhos para os quais ainda não haja acordos de livre residência — como os venezuelanos. Essa medida, no entanto, ainda esbarra nas altas taxas que os migrantes precisam pagar (que chegam a R$ 400).

Outra solução estaria na aprovação da Lei de Migração, que atualmente tramita no Senado Federal, em Brasília. A nova lei, que viria a substituir o atual Estatuto do Estrangeiro, ampliaria a política de vistos humanitários — hoje provisória e aplicada apenas para sírios e haitianos –, o que poderia beneficiar os venezuelanos.

Enquanto isso não acontece, ações locais tentam amenizar a situação. Durante a audiência pública, autoridades reconheceram falhas no atendimento aos migrantes e se comprometeram a melhorar os processos.

“A expectativa agora é que essa articulação realmente aconteça e que venha uma resposta dos órgãos públicos para a sociedade civil, em forma de uma efetiva prestação de serviços”, afirmou a procuradora Ana Carolina Bragança, que atua em Roraima e ajudou a conduzir a audiência pública.

Inicie uma conversa

Colaboradores, favor realizar Entrar »

Por uma boa conversa...

  • Por favor, trate as outras pessoas com respeito. Trate como deseja ser tratado. Comentários que contenham mensagens de ódio, linguagem inadequada ou ataques pessoais não serão aprovados. Seja razoável.