Na tarde do dia 27 de janeiro, possivelmente enquanto a tinta da assinatura do agora infame decreto presidencial de imigração de Donald Trump secava, um grupo de pessoas em um auditório da Universidade das Índias Ocidentais de Trinidad de Tobago assistia ao primeiro capítulo da série brasileira da Netflix “3%”.
A série apresenta um futuro distópico onde jovens passam por testes conhecidos como “Processos” para verificar se eles estão aptos para ingressar no Maralto, um paraíso terreno onde somente 3% dos candidatos conseguem chegar. No decorrer de um dos episódios, os candidatos são submetidos a interrogatórios degradantes. Na discussão a seguir, uma estudante diz que aquilo a fazia lembrar de ter estado na embaixada dos EUA em Porto de Espanha. Houve murmúrios de pessoas que se sentiram identificadas com o episódio no local, inclusive meus. Uma vez, no início do governo George W. Bush, meu velho Honda Civic morreu em um rua próxima à essa embaixada. Enquanto eu tentava dar ignição no carro, dois fuzileiros norte-americanos surgiram do nada apontando seus fuzis de assalto e bradando na minha direção—acreditando que eu fosse uma mulher-bomba— “Alto!” E isso foi do lado de fora do prédio, porque, na parte interna do consulado, o ambiente te deixa praticamente angustiado.
Uma questão em torno do dilema envolvendo o decreto presidencial que me marcou é a falsa ideia de que é fácil conseguir entrar legalmente nos EUA. Na verdade, é um porre. Cada um dos visitantes legais que tiveram sua entrada negada nos aeroportos americanos por conta do decreto do presidente já passaram por interrogatórios rigorosos e estressantes para conseguir seus documentos de viagem. No caso de refugiados, como já foi ressaltado, o processo é ainda mais rigoroso.
Talvez pareça óbvio, considerando a popularidade dos EUA como destino, que não é fácil conseguir um visto americano. Contudo, se você for um cidadão americano, ou se residir em um dos países listados no Programa de Isenção de Visto dos EUA, você pode não ter considerado essa questão, mesmo se for um jornalista fazendo uma cobertura. Dependendo do destino de viagem das pessoas, boa parte delas pode nunca precisar de uma solicitação de visto em toda a vida. Contudo, entender pelo que as pessoas passam para terem suas entradas concedidas nos EUA parece essencial para que compreendamos o nível absurdo de exagero desse decreto presidencial.
Os EUA têm todo direito de vigiar e proteger suas fronteiras, a exemplo de qualquer país soberano. Entretanto, como Ron Nixon destacou em 30 de janeiro no The New York Times, já existe um sólido sistema de checagem e verificação de segurança pelo qual as pessoas interessadas passam antes de pôr os pés em solo norte-americano. O processo de solicitação de visto é árduo por si só. Os solicitantes devem fornecer uma série de documentos, como comprovações bancárias, certidões de registros criminais, além de comprovarem “vínculos fortes” com sua terra natal, tais como certidão de casamento e de propriedade, ou seja, pessoas jovens e solteiras já começam em desvantagem. Além disso, há uma revista detalhada que é feita por um funcionário do consulado. Solicitações de visto são rotineiramente rejeitadas sob diversas alegações. Eu não posso deixar de comentar que, caso a sua solicitação seja negada, a embaixada americana não irá reembolsá-lo pela taxa de processamento de 160 dólares, que, em muitos países, representa uma boa parte da renda média.
Ao chegar aos EUA, mesmo uma viajante que pode ser considerada bem incontroversa como eu—uma cidadã trinitária com um nome fortemente cristão e bem grandinha para ser mula do tráfico—seja submetida a questionários controversos pela imigração dos EUA. Quem eu conhecia nos Países Baixos? Me perguntaram quando eu fazia escala em Miami rumo à Europa, como se o fato de conhecer alguém em um pais seja um pré-requisito para visitá-lo. Dá até medo de imaginar o tipo de perguntas feitas aos cidadãos dos países citados no decreto presidencial.
Aqueles que tentaram entrar nos EUA de forma legal semana passada e que tiveram suas vidas investigadas pelo decreto presidencial de imigração têm todo o direito de se sentir alvo de perseguição e de difamação. Essas pessoas pagaram pelo preço de entrada, tanto literal como figurativamente. Você acha que um grupo de empresários toleraria isso. Contudo, você já sabe por que não.