
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil/Usada com licença
No último dia 23 de outubro, um adolescente de 16 anos atacou a tiros uma escola pública em São Paulo, matou uma aluna de 17 anos e deixou outras duas pessoas feridas. O caso foi um dos mais recentes na lista de ataques à escolas no Brasil, que tem escalado nos últimos anos. O país teve aumento de 50% no número de denúncias de violência em escolas entre janeiro e setembro este ano.
Ao todo, 49 pessoas morreram, entre 164 vítimas de episódios do tipo no Brasil, desde o primeiro ataque contabilizado em 2002 até outubro de 2023. Foram registrados 36 ataques à escolas no país neste período.
Os dados constam em um relatório elaborado por um grupo de trabalho do Ministério da Educação e entregue ao governo federal no início de novembro. O documento aponta que 77% das mortes foram por armas de fogo, que todos os agressores eram homens e aponta como uma das causas a falta de controle de discursos de ódio em meios digitais.
Coordenador do trabalho, o educador e cientista político Daniel Cara conversou com o Global Voices, em uma entrevista por e-mail, sobre o cenário atual e pontos identificados na pesquisa:
Global Voices: No Brasil, segundo o relatório, foram registrados 36 ataques à escolas entre 2002 e outubro de 2023. Destes, 16 ocorreram este ano, que lidera em número de ocorrências. O que explica isso?
Daniel Cara: É um processo cumulativo de um fenômeno que se enraizou em algumas subcomunidades, devido à leniência com que os governos federal, estaduais, distrital e municipais trataram a emergência do ódio no país e foram complacentes com o extremismo desde 2016. Além disso, o país abrandou o controle de armas. Apenas no governo de transição, com o relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, publicado em dezembro de 2022, o país assumiu oficialmente o problema. A questão é que já era tarde para frear o fenômeno em 2023. E, para ser sincero, não vejo os governos assumirem como prioridade o enfrentamento do extremismo – motor central dos ataques –, com a rara exceção do Ministério da Justiça e Segurança Pública e de alguns setores das forças de segurança.
O novo relatório afirma que ”o extremismo é o elemento central dos ataques às escolas”, e que misoginia e racismo têm um papel crucial. Pode falar mais a respeito?
Sobre o extremismo, é importante dizer que a literatura científica ainda não foi capaz de apresentar um consenso sobre o termo. Contudo, há uma concordância sobre a existência dessa forma violenta de compreender e viver o mundo e se relacionar com as pessoas.
Na maioria dos estudos, extremismo é uma ideologia constituída por uma combinação de diferentes características, sendo que algumas delas são predominantes: racismo, xenofobia, misoginia, LGBTQIA+fobia, anti-democracia, nacionalismo extremo, militarismo, pensamento de lei e ordem e aumento do uso da força policial como solução para a violência e como instrumento contra direitos civis, políticos e sociais.
No caso dos ataques às escolas, é a misoginia e o racismo que puxam o fio do extremismo, mas todos os demais elementos estão presentes.
Em poucas palavras, o extremismo é uma ideologia de aniquilação da diversidade, exclusão do outro, em nome do supremacismo branco, nos termos propostos por Abdias do Nascimento [escritor e ativista de direitos civis].
Quais as principais semelhanças e diferenças entre o que ocorre no Brasil e o que se vê em outros países analisados?
É possível dizer que os ataques às escolas são fenômenos internacionais – hoje, com maior incidência nos EUA e no Brasil –, devido a dois fatores: primeiro, os copycat crimes, ou seja, crimes por imitação. Segundo, devido ao efeito contágio ou efeito onda.
Os ataques brasileiros são, quase sempre, uma exaltação ao massacre de Columbine (EUA, 1999) ou a um ataque brasileiro cujo autor exaltou Columbine. E a ocorrência de ataques, ou ameaças, alimentam outros ataques. Aí reside um fator macabro: hoje, um dos principais objetivos dos atacantes é se sentirem poderosos por ser capaz de exercer violência e chocar a sociedade. Para eles, isso gera notoriedade. Aí estão duas chaves que precisamos girar: mostrar tanto que é uma covardia, não exercício de poder, quanto controlar a forma como a imprensa e as plataformas sociais fazem a cobertura e divulgação abjeta dos ataques.
Houve algo, algum dado ou caso que te surpreendeu durante a produção deste trabalho?
O fato que o fenômeno se alastra e vai se tornando, a cada dia, normal. Isso é inaceitável. Estamos vivendo a normalização dos ataques, a banalização da violência contra comunidades escolares, profissionais da educação, alunas e alunos. Outro elemento é a fraqueza dos governos em enfrentarem o fenômeno dos ataques. Querem esconder o problema, de repente acontece um ataque e volta a ser prioridade o tema, porém, apenas por alguns dias. Até ser escanteado novamente. Ou seja, apenas respondem à demanda pública. Já temos dois relatórios, o da transição e o do Grupo de Especialistas em Violência nas Escolas. E, sendo franco, lamentavelmente, o próprio Ministério da Educação age assim – ainda que seja o órgão responsável pelo relatório que relatei. No âmbito do governo federal, a exceção é o Ministério da Justiça e Segurança Pública, que entre erros e acertos, tem a coragem de assumir a questão e enfrentar o problema. O mesmo pode ser dito de algumas forças de segurança de estados e algumas raras iniciativas em municípios.
A falta de controle de discursos de ódio em meios digitais é colocada como uma das principais causas do aumento de casos no Brasil. O que se observa nos casos que apontam isso? Quais são os meios mais comuns, e qual tem sido as respostas das empresas?
Nenhum ataque foi planejado ou idealizado fora da internet. Desde Columbine, um ataque inspira o outro, em uma perspectiva de gamificação da vida. Hoje, os atacantes usam todas as plataformas e contam com a leniência, pusilanimidade das autoridades públicas em regular essas plataformas e responsabilizá-las. É o que sempre repito: se um aplicativo de rede social consegue identificar meu desejo, como ele não é capaz de observar o discurso e o conteúdo de ódio? As empresas fingem que fazem o máximo, por pressão da sociedade e dos governos, mas não fazem nada.
Entre as ações emergenciais a serem adotadas pelo Estado estão desmembrar comunidades e responsabilizar plataformas. Quais as principais dificuldades para se colocar isso em prática?
Há uma questão que é vontade política. Não vejo muita, ainda. Vencida essa etapa, os dois relatórios que coordenei e relatei, em processos coletivos amplos, apresentam caminhos. Porém, a principal dificuldade é lidar com a má vontade, a irresponsabilidade e as estratégias jurídicas das plataformas. Sem a adesão delas à causa das escolas protegidas e seguras, permaneceremos buscando agulhas no palheiro.
Qual o peso que o cenário político polarizado do Brasil tem na crescente violência nas escolas?
A polarização é parte do problema, sem dúvida. Mas a polarização, nem sempre, resulta em ódio. O problema é que ódio que tomou conta da sociedade brasileira desde 2016 e não foi enfrentado, colaborou com a emergência dos ataques, devido à ascensão do extremismo.
E a questão da legislação vigente de armas de fogo?
Precisa ser mais rígida e mais efetiva. Meses atrás, dei uma entrevista ao Washington Post. Defendi a tese que a principal diferença do fenômeno dos ataques às escolas no Brasil e nos EUA é a permissividade estadunidense com armas de fogo. No Brasil, tivemos 36 ataques que vitimaram 37 comunidades escolares – o ataque de Aracruz acometeu duas escolas. Desses ataques, 49 pessoas morreram e 115 ficaram feridas. Das mortes, 38 foram por armas de fogo. Ou seja, a letalidade é muito maior. Além disso, a cultura da arma mobiliza ataques.
O relatório aponta que o levantamento de casos é feito com base em casos reportados pela imprensa, acha que os números podem estar subnotificados? Existe alguma previsão de um monitoramento oficial?
Sim, por isso defendemos que o Sistema Nacional de Acompanhamento e Combate à Violência nas Escolas (SNAVE), criado por lei, seja regulamentado. Essa regulamentação deve estabelecer um procedimento entre escolas, conselhos tutelares, equipamentos de saúde e assistência social, delegacias de polícia e forças de segurança para notificar riscos e casos em um banco de dados nacional e comum, que deve ter acesso restrito a autoridades públicas, Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) e pesquisadores. Essa é a minha defesa.