Esta história foi escrita por Dayana Martínez e publicada em Muy Waso em 13 de dezembro. Foi republicada na Global Voices sob um acordo de parceria de mídia. Este texto recebeu a Segunda Menção Honrosa do Prêmio Nacional de Jornalismo Feminista 2023 organizado por Muy Waso.
Quando Mariela, cujo nome verdadeiro não revelamos por razões de segurança, recebeu um diagnóstico de HIV positivo, seu marido não quis realizar o teste e decidiu abandonar a família. Essa é a realidade de centenas de mulheres com HIV na Bolívia. Elas não apenas enfrentam preconceito e discriminação, mas também são frequentemente abandonadas por seus parceiros e precisam lutar para cuidar da saúde e de seus filhos por meio do trabalho informal.
Na Bolívia, três em cada dez mulheres são chefes de família. No caso das famílias monoparentais, 81% dos lares são sustentados por mulheres. Ambos os conjuntos de dados provêm do Instituto Nacional de Estatística da Bolívia (INE).
Mas os números podem ser mais elevados no caso das mulheres com HIV: mais de 3.000 mulheres que vivem com HIV são chefes de família, segundo dados do Banco Mundial. Isso representa cerca de 42% do total de mulheres diagnosticadas com o vírus. Muitas estatísticas sobre essa população são previsões dos líderes da Rede Nacional de Pessoas com HIV e AIDS (RedBol), uma organização boliviana que fornece apoio e informação para os pacientes no país, uma vez que o Estado não possui dados sobre a quantidade de homens que abandonam suas parceiras e famílias, quando descobrem o dignóstico. O Estado também não possui informações claras sobre quantas mulheres com HIV são responsáveis pelo sustento de seus filhos, que muitas vezes também são HIV-positivos.
Imersas na informalidade
Na Bolívia, 80% da população em geral trabalha no setor informal. Desse total, aproximadamente nove em cada dez são mulheres, segundo dados publicados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2022. O perfil típico das mulheres bolivianas do setor informal são indígenas adultas com ensino fundamental e que muitas vezes se dedicam ao comércio.
Esses números também se refletem e se expandem entre as mulheres com HIV. Virginia Hilaquita, vice-presidente da Redbol, cita números da organização:
Si vemos a la población con VIH, incluso llegamos al 90 por ciento de personas que no tienen un trabajo fijo. La mayoría no tenemos trabajo. Las mamás salen a vender y viven del día.
Se analisarmos a população com HIV, vemos 90% de pessoas que não têm emprego permanente. A maioria de nós não tem emprego. As mães saem para vender e vivem do que ganham no dia.
A pandemia: sem testes, sem medicamentos
Durante a pandemia, muitas pessoas foram forçadas a interromper os tratamentos antirretrovirais, que ajudam a controlar os sintomas do HIV. As restrições de circulação e viagens impediram os pacientes de se deslocarem aos centros de saúde para receberem os seus medicamentos. Foi assim que, principalmente aqueles que viviam em áreas rurais, foram mais afetados. Enquanto a COVID-19 absorveu laboratórios, leitos e funcionários, as áreas dedicadas ao diagnóstico do HIV ficaram para trás e sem recursos. A percentagem de casos de HIV em fase avançada aumentou consideravelmente devido à pandemia.
José Armando Sandoval, responsável pelo programa de IST/HIV/AIDS do Serviço Departamental de Saúde de Chuquisaca, província do sul da Bolívia, explica que:
Los casos cautivos no diagnosticados durante la pandemia comenzaron a ser diagnosticados en 2022 y este 2023 (…) Muchos de estos fueron tardíos, es decir, pacientes en etapa sida. Normalmente teníamos menos del 10 por ciento, ahora hemos llegado al 15 y 20 por ciento. Esos casos tienen una menor esperanza de vida. La mitad muere al año de su diagnóstico, la otra mitad vive dos a tres más.
Os casos cativos não diagnosticados durante a pandemia começaram a ser diagnosticados em 2022 e 2023 (…) Muitos deles eram casos que já estavam na fase de AIDS. Normalmente tínhamos menos de 10% de casos em fase avançada, agora atingimos 15 e 20%. Esses casos têm menor expectativa de vida. Metade morre dentro de um ano após o diagnóstico, a outra metade vive mais dois ou três.
Isso implica um risco para a saúde pública, porque quanto mais tempo uma pessoa desconhece que tem HIV, maior é a probabilidade de se envolver em atividades sexuais de risco, explica Sandoval. Devido a essa situação, foram ativados alertas em algumas províncias do país. Em Chuquisaca, por exemplo, em abril de 2022, foi declarado alerta laranja devido ao aumento de pessoas HIV-positivas.
Desigualdade de gênero no diagnóstico
Na Bolívia, há dois homens com HIV para cada mulher que vive com o vírus, segundo dados da RedBol. Diferentemente dos homens, a maioria das mulheres é diagnosticada durante a gravidez. Desde 2007, os testes rápidos de HIV são obrigatórios para grávidas na Bolívia. É por causa desses testes que muitos adolescentes descobrem que têm HIV, pois não teriam acesso a eles sem a autorização por escrito dos pais.
Hilaquita explica que hoje o HIV afeta cada vez mais os jovens, o que mostra a necessidade de melhorar os sistemas de educação em saúde sexual em torno dos métodos contraceptivos para evitar a gravidez indesejada e prevenir a transmissão do HIV e de outras infecções ou doenças:
Ahorita la epidemia del VIH se concentra entre los 14 hasta 30 años. Antes era de 20 a 35 y a 40 años.
Nesse momento a epidemia do HIV está concentrada entre os 14 e 30 anos de idade. Costumava ser entre 20 a 35 e 40 anos.
Gravidez adolescente e HIV
Desde o primeiro diagnóstico de HIV na Bolívia, registrado em 1984, até os primeiros dias de junho de 2023, foram registrados 124 casos em meninas e adolescentes entre 10 e 14 anos, e 40 casos em meninos da mesma idade, segundo dados do governo. Entre os casos de 15 a 19 anos, 1.951 foram diagnosticados em homens e 2.183 em mulheres.
Nestes dois grupos etários, são identificadas mais mulheres como portadoras de HIV do que homens. “Se falamos de crianças com menos de 18 anos, a maioria das pessoas diagnosticadas com HIV são mulheres”, diz Sandoval. Isso também se reflete a nível internacional. Na América Latina, as mulheres representam 29% dos novos casos, enquanto entre aqueles com idades compreendidas entre os 15 e 24 anos essa percentagem sobe para 36%, de acordo com dados da UNAIDS.
Quando questionado se os casos de menores grávidas são consequência de crimes sexuais, Sandoval afirma que esta informação não é considerada nas estatísticas. Mas, com seus 11 anos de experiência em Chuquisaca, ele alertou que grande parte desses casos envolve pais adolescentes.
Porém, até 31 de outubro de 2023, o Ministério Público registrou diariamente mais de 10 casos de estupro ou estupro de criança ou adolescente. Em Chuquisaca, uma dessas reclamações surge a cada um dia e meio.
Em relação ao estupro, Sandoval só se lembra de um caso: um pai que estuprou a filha de nove anos e lhe transmitiu HIV. “Eles o prenderam em meu escritório. Ele morreu na prisão devido à AIDS”, acrescenta.
Embora não existam dados sobre casos de transmissão do HIV por meio de crimes sexuais, os meios de comunicação registraram vários incidentes no último ano. Como o de Cochabamba, em que um pai com HIV violou a mulher e quatro filhas em maio de 2022. Ou o caso de um menino de 10 anos em Yapacaní, Santa Cruz, que foi violentado por quatro homens com HIV e o deixaram em terapia intensiva em junho de 2022.
Um q'epi maior
[Nota de tradução: o q'epi é uma forma de arte têxtil das mulheres bolivianas. É um pano colorido amarrado nas costas que funciona como mochila. São peças que acompanham as mulheres ao longo da vida, por isso possuem uma relação simbólica com suas histórias, sonhos e arrependimentos].
Todos os dias, as mulheres enfrentam tratamento desigual na sociedade que afeta suas vidas. Desde a forma como se vestem até a forma como exercem os seus direitos sexuais e reprodutivos. “Quando você tem HIV seu q'epi é maior”, reflete Hilaquita. “Eles dizem que ‘ela provavelmente é uma prostituta, provavelmente ficou doente assim’ “. As mulheres com HIV sofrem mais discriminação, inclusive nos serviços de saúde. As filhas de mulheres com HIV que decidem ter filhos também são discriminadas.
Essa situação afeta de tal forma as pessoas com HIV, especialmente as mulheres, que prevalece sobre elas uma espécie de autocensura. Quando não são excluídas ou discriminadas, parecem invisíveis aos olhos da sociedade e do Estado.