Diplomacia cultural, direitos LGBTQ+ e Ucrânia no Festival Eurovision 2023

TVORCHI

Tvorchi cantando “Coração de aço” na Final Nacional da Eurovision em dezembro de 2022. A música faz referência ao que os ucranianos têm vivido em meio à invasão em grande escala da Rússia – captura de tela do YouTube.

A banda Tvorchi compartilhou apenas uma publicação na sua página do Facebook na noite de sábado, antes de começarem a se apresentar na final do Festival Eurovision da Canção 2023.  Os concorrentes ucranianos compartilharam uma imagem com a palavra “Ternopil”, o nome da cidade onde a banda começou, escrita em letras brancas sobre um fundo preto. Na noite da grande final da competição, a cidade no oeste da Ucrânia estava sendo brutalmente bombardeada pelas forças russas. Um usuário comentou: “Não importa em qual posição vocês fiquem, em nossos corações, vocês estarão sempre em primeiro lugar”.

Sendo vencedor da Eurovision 2022, como de costume, a Ucrânia sediaria a competição de 2023; no entanto, por causa da guerra em grande escala da Rússia contra o país, a competição foi transferida para Liverpool, no Reino Unido, vice-campeã da competição de 2022.  A seleção ucraniana da Eurovision aconteceu em uma estação de metrô no centro de Kiev, que estava fechada para passageiros desde os primeiros dias da invasão russa em fevereiro de 2022 e convertida em um abrigo antibomba até o final de 2022. Durante esse período, foi usada como um local para shows, competições e conferências de imprensa.

Em Liverpool, os organizadores tentaram homenagear os legítimos anfitriões incorporando simbolismo ucraniano, uma coanfitriã ucraniana, figurinos de designers ucranianos, um grupo de artistas ucranianos das competições anteriores da Eurovision na cerimônia de abertura, apresentações de tributo em apoio à Ucrânia e até Kate Middleton, a princesa de Gales, tocando um trecho da música ucraniana do grupo Kalush Orchestra, os vencedores da Eurovision 2022.

Também teve mais convidados ucranianos do que qualquer outro evento da Eurovision, porque os ucranianos que fugiram da guerra estão agora espalhados por todo o mundo, incluindo o Reino Unido.  Desse modo, para os ucranianos, o festival europeu da canção deste ano foi, em muitos aspectos, revelador, até surpreendente.

Kateryna Horodnicha, jornalista ucraniana, que vive agora no Reino Unido, visitou pessoalmente o Festival Eurovision pela primeira vez. E em uma publicação em sua página do Facebook, compartilhou:

I've never seen this much glitter and sequins in each square meter as I have in line at the entrance to the Arena where the final [Eurovision] was held. … And although I am against any generalizations, after diving in [to Eurovision] I have two conclusions. One is well-known, the other is a real discovery.

1. This is a real LGBTQ+ celebration. This is why it's funny to see/hear/read homophobes who are sincerely surprised by the involvement of the sexual minorities in commenting, expertise, etc. Come on, this is the main driving force of the process.

2. I didn't immediately understand.  In Ukraine, racial issues are not prioritized because there is little non-European representation there. But Eurovision is really a song contest for white people. I have not met ONE Afro-fan. Although Liverpool is not a mono-white society at all. 

Nunca vi tanto glitter e lantejoulas em cada metro quadrado como na fila à entrada da Arena onde se realizou a final da Eurovision. […] E embora eu seja contra qualquer generalização, depois de mergulhar de cabeça no evento tenho duas conclusões. Uma é bem conhecida, a outra é uma verdadeira descoberta.

  1. Esta é uma verdadeira celebração LGBTQ+. É por isso que é engraçado ver/ouvir/ler homofóbicos que ficam verdadeiramente surpreendidos com o envolvimento das minorias sexuais em comentários, perícias, etc. Qual é, essa é a principal força motriz do processo.
  2. Eu não entendi na hora. Na Ucrânia, as questões raciais não são priorizadas porque há pouca representação não europeia lá. Mas a Eurovision é mesmo um concurso de canções para pessoas brancas. Não conheci NENHUM fã afrodescendente. Embora Liverpool não seja uma sociedade unicamente branca.

Guerra, sexo e direitos humanos

A Ucrânia tem sido acusada de discriminar tanto pessoas LGBTQ+ quanto pessoas negras.  Mas, em meio à guerra em grande escala, muitas pessoas têm pedido para que o país reconheça oficialmente casais do mesmo sexo. As pessoas LGBTQ+ também estão lutando pelo Estado ucraniano em meio à invasão da Rússia, e o reconhecimento legal pode lhes dar proteções adicionais, por exemplo, se uma pessoa for ferida ou morta.

No entanto, o movimento pela igualdade no casamento tem oponentes poderosos, incluindo muitas igrejas cristãs na Ucrânia, onde cerca de 85% dos ucranianos se identificam como cristãos, de acordo com um estudo de 2022 do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev.  Também é considerado perigoso ser percebido como queer nas ruas, e as marchas do orgulho nas cidades ucranianas sempre foram fortemente vigiadas pela polícia porque os participantes eram frequentemente atacados. Ao mesmo tempo, ao contrário da Rússia, não há legislação anti-LGBTQ+ na Ucrânia, e ativistas proeminentes do movimento são visíveis na mídia ucraniana e na sociedade civil.

Há também uma pequena comunidade de pessoas negras na Ucrânia, filhos de casais mistos ou estudantes internacionais, já que o país oferece educação universitária mais acessível do que muitos países da UE.  No entanto, no início da guerra, houve alegações generalizadas sobre estudantes estrangeiros sendo discriminados por autoridades ucranianas enquanto tentavam fugir do país.

Jimoh Augustus Kehinde, de 25 anos, mais conhecido como Jeffrey, um dos membros da banda Tvorchi, é um desses estudantes. Mas decidiu ficar na Ucrânia. Ele veio da Nigéria para Ternopil, na Ucrânia, em 2013, para estudar farmácia. Em 2018, Andrew (Andriy Hutsuliak), 27, outro membro da Tvorchi, o abordou na rua para praticar seu inglês. Parecia, aliás, que eles estavam estudando na mesma universidade. Tornaram-se amigos, criaram uma banda em 2017 e participaram nas seleções nacionais da Eurovision duas vezes, em 2020 e 2022, apesar de não acharem que poderiam ganhar.

Entretanto, por mais que seja sobre música e política, a Eurovision também é sobre diplomacia, e a presença de Jeffrey na banda ucraniana tem potenciais benefícios diplomáticos para a Ucrânia. E parece que os membros da Tvorchi estão cientes disso. Em março de 2023, eles fizeram uma viagem a Nairóbi, no Quênia, organizada pela USAID “para influenciar o nível de propaganda contra a ucrânia lá”, como eles explicaram.  “Nós nos unimos e nos tornamos um exército da frente cultural”, acrescentaram. “Conseguimos arrecadar milhões de dólares, realizar ações de conscientização, encontrar líderes de estados parceiros, dizer a verdade, pedir ajuda e dizer palavras de gratidão”.  Na abertura da Eurovision 2023, eles usaram jaquetas com nomes e pesos de crianças nascidas prematuramente após o início da invasão russa devido ao estresse que suas mães vivenciaram, no intuito de arrecadar fundos para hospitais ucranianos.

Os vencedores

Na Eurovision 2023, a Tvorchi ficou em sexto lugar e, apesar da sua história comovente, os espectadores tinham outros favoritos, até mesmo na Ucrânia. A banda também ainda não conseguiu superar o sucesso da Kalush Orchestra em outros aspectos, como na criação de símbolos icônicos como o chapéu rosa Panamá de Kalush, que ainda foi usado na Eurovision 2023, um ano após sua apresentação vencedora. Em Ivano-Frankivsk, o centro da região onde fica a cidade de Kalush (Ivano-Frankivsk-Kyivsk), o trem Ivano-Frankivsk-Kyiv foi renomeado para Stefania Express por um ano em homenagem à canção vencedora da Eurovision “Stefania”. A canção também foi tocada nas estações ferroviárias de Ivano-Frankivsk, Kalush e Kiev quando o trem chegou.

A vitória da Kalush Orchestra na Eurovision foi a terceira da Ucrânia em 20 anos.  Em 2017, Jamala, uma tártara da Crimeia, tornou-se a segunda vencedora mais recente, com a canção “1944” sobre a deportação dos tártaros da Crimeia pelo ditador soviético Josef Stalin perto do final da Segunda Guerra Mundial:

Já Ruslana obteve a primeira vitória, em 2004, por sua interpretação de “Wild Dances” (“Дикі танці”) fazendo referência à cultura popular nas montanhas ucranianas dos Cárpatos:

A maioria das outras apresentações ucranianas da Eurovision foram em grande parte esquecidas, pois raramente estavam entre as principais faixas, mesmo em seu próprio país. Para Tvorchi, no entanto, dada sua recepção positiva e o trabalho comunitário, seus melhores dias ainda podem estar por vir.

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