Sem oxigênio, pacientes com COVID-19 morrem asfixiados em Manaus, capital brasileira no coração da Amazônia

Funcionários transportam cilindros de oxigênio ao lado de câmara frigorífica de corpos, em Manaus. Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real.

Esse texto foi escrito por Leanderson Lima, com colaboração de Kátia Brasil e Iris Brasil e é republicado aqui em uma parceria entre Global Voices e a agência Amazônia Real.

Na madrugada do dia 14 de janeiro de 2021, a tragédia se instalou em Manaus. Pacientes internados com COVID-19 começaram a morrer por falta de oxigênio dentro de três hospitais públicos da capital do estado do Amazonas, região Norte do Brasil.

Segundo o Sindicato dos Médicos do Amazonas (Simeam), entre 20 a 40 pacientes podem ter morrido sem oxigênio, mas o número pode ser maior. O governo do Amazonas não respondeu aos pedidos de informação enviados pela Amazônia Real para confirmar os dados.

“Falam em 20 a 40 pessoas, mas não temos como precisar. Temos a impressão que as pessoas estão ocultando [os dados]. Não temos serviço de verificação de óbitos. Não tem acesso à informação. Se eu ligar para a Fundação de Vigilância em Saúde e pedir, não vão me dar”, afirmou o presidente do Simeam, Mário Vianna.

Manaus protagonizou um dos capítulos mais dramáticos da pandemia em abril de 2020, quando covas coletivas foram abertas em cemitérios locais para dar conta do aumento repentino de sepultamentos. A média de sepultamentos diários naquele mês foi de mais de 81, de acordo com dados da prefeitura — a média normal da cidade é de 34.

Após um período de uma estabilidade controversa, os casos de COVID-19 voltaram a subir em dezembro de 2020. Nos 13 primeiros dias do ano, 518 pessoas morreram no Amazonas devido ao novo coronavírus. No dia 13 de janeiro, a Prefeitura de Manaus registrou 94 sepultamentos em cemitérios públicos.

“Se não houver uma intervenção [na saúde] e se não houver uma canalização de recursos para o Amazonas, o Brasil pode vivenciar a situação de Manaus. Até porque nós temos mutações virais que podem se disseminar Brasil afora e tornar a situação mais grave”, lembrou ainda Vianna.

No início de janeiro, o Japão detectou uma nova variante do coronavírus em quatro viajantes que haviam estado no Amazonas. A nova cepa foi responsável pelo primeiro caso de reinfecção no estado e, ao que se sabe, é uma mutação original da região. Outras mutações identificadas na África do Sul e na Inglaterra estão sendo associadas a um aumento de transmissão do vírus.

Além de receios com relação à nova variante, o drama humanitário em Manaus agora se estende para além das UTIs. A capital se transformou em um surreal mercado de venda e aluguel de cilindros e recarga de oxigênio, que é utilizado no tratamento da COVID-19 em pacientes que apresentam falta de ar ou insuficiência respiratória.

Durante a semana, propagandas de aluguel e venda dos equipamentos começaram a circular nas redes sociais. Um anúncio, por exemplo, oferecia aluguel de um cilindro com carga 50 litros, para 15 dias, por preços entre 4.750 reais e 10.000 (variando entre 900 e 1.900 dólares). A venda estava sendo oferecida em parcelas de até três vezes no cartão de crédito. “Agora à noite em Manaus acabou o oxigênio, não tem mais nem nas fábricas”, disse um fornecedor à reportagem, no dia 14.

Numa tentativa desesperada para conter o caos na capital, única das 62 cidades do Amazonas com UTIs, o governador Wilson Lima determinou que a Polícia Militar protegesse as portas das unidades de saúde. O governo teme a invasão de pacientes com o novo coronavírus, já que nem a chuva no dia 14 impediu centenas de pessoas de irem aos hospitais buscar por atendimento ou notícias de parentes. Muitos foram hostilizados por policiais, segundo apuração da AR.

Lima decretou ainda toque de recolher entre 19h e 6h durante 10 dias, válido até 23 de janeiro. Devido à falta de oxigênio, o governo também alinhou transferência de 235 pacientes de COVID-19 de Manaus para hospitais em outros estados.

Para atender a demanda dos hospitais públicos e privados, segundo o governador, as fornecedoras White Martins, Carbox e Nitron precisariam entregar 76.500 metros cúbicos (m³) diariamente. No entanto, as empresas só conseguem fornecer 28.200 m³ por dia. “Para sanar o déficit, a operação está buscando em Fortaleza e São Paulo o insumo para trazer em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB)”, disse Lima, sem informar quantos pacientes morreram por falta de oxigênio nos hospitais de Manaus.

Drama em família

O empresário Francisco da Chagas Netto, 41, corre contra o tempo para encontrar um lugar para reabastecer os cilindros de oxigênio que mantém a avó, Maria de Nazareth Araújo, de 85 anos, e a tia, Jacqueline Araújo Cruz, de 48, vivas em casa. As duas foram diagnosticadas com a COVID-19.

“É uma sensação de impotência. Dinheiro não vale bosta nenhuma numa hora dessas. Ninguém te vende”, desabafou ele à reportagem.“É o sentimento de tragédia. Ver quem você ama deitada numa cama, precisando de oxigênio para sobreviver e você não consegue resolver. Você vê a sua avó perguntando por que que você não trouxe o ar dela… É muito triste”.

A avó teve os primeiros sintomas após o Natal, no dia 27 de dezembro, e a família passou a usar medicamentos que vêm sendo tratados no Brasil como tratamento precoce para a doença, ainda que sem confirmação científica de eficácia. No dia 1º de janeiro, a família procurou uma unidade de saúde, mas ouviu que a avó de Francisco não atendia os critérios para internação. Os resultados dos exames pedidos por um médico particular foram um baque para a família. Maria de Nazareth já estava com 80% do pulmão comprometido. A tia de Francisco, Jacqueline, tem 60% de comprometimento pulmonar.

“Estamos na luta com as duas. O médico pediu oxigênio urgente. Compramos”, relatou ele, que trocou um cilindro de sua oficina de pintura de veículos automotores por um cilindro medicinal, capaz de suportar 24 horas. Além disso, ele conseguiu comprar um cilindro menor.

“Elas estavam melhorando, mas agora não consigo mais recarregar o cilindro com oxigênio. Com a saturação baixa, não sei o que poderá acontecer”, diz ele preocupado. Francisco estava recarregando o cilindro maior por 350 reais e o menor por 150 reais. “São 500 reais todos os dias só com oxigênio. A fisioterapia custa 200 reais para cada uma por dia. Os exames custaram 445 para cada uma, e cada visita diária do médico custa 800”, lista ele.

#OxigênioParaManaus

A situação caótica das unidades de saúde de Manaus mobilizou uma rede de solidariedade nas redes sociais para a compra de cilindros e equipamentos respiratórios por meio de doações e financiamento coletivo online.

No dia 14 de janeiro, a artista manauara Karine Magalhães e outras seis pessoas iniciaram a campanha “Manaus Por Um Respiro”, para comprar cilindros de oxigênio, reanimadores, máscaras, entre outros equipamentos. Além da dificuldade para encontrar fornecedores para os cilindros, diz ela, no primeiro dia, a campanha conseguiu 805 reais, enquanto o valor de um cilindro começa em 4.000 reais.

“Recebemos ligações de parentes de pacientes que estão internados em hospitais e em casa e estão precisando do oxigênio”, conta Magalhães.

Ainda no dia 14, quando a notícia de que o oxigênio havia acabado na cidade foi reportada por veículos de alcance nacional, a hashtag #OxigênioParaManaus viralizou no Twitter, recebendo apoio de personalidades incluindo jogadores de futebol.

O humorista e YouTuber Whindersson Nunes, que tem mais de 41 milhões de inscritos em seu canal, também movimentou outros artistas em uma rede de doações para garantir cilindros de oxigênio com urgência em Manaus.

Para o epidemiologista da Fiocruz da Amazônia, Jesem Orellana, o Amazonas precisa quebrar a cadeia de transmissão do novo coronavírus, pois a atual situação só agrava a demanda de leitos. “A epidemia jamais foi controlada. Na verdade, ela foi largamente negligenciada. Você viu a prefeitura de Manaus ou o governo do Estado fazendo uma campanha de rastreamento de infectados? Nunca fez. Aí que está a omissão na atenção básica, na prevenção. Não adianta abrir leito de hospital para as pessoas morrerem ou estarem ali [com sequelas]”.

Segundo Orellana, Manaus chegou ao caos por fatores pré-epidemia. A capital do Amazonas tem precariedade histórica na infraestrutura médica hospitalar, desde a atenção básica, que poderia atender à prevenção. “A maioria das pessoas que não aderem às medidas vive em condições precárias de habitação. São pessoas que dependem da informalidade”, disse, citando levantamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que apontou que 53% da população de Manaus vive em condições precárias de moradia. “Os outros fatores da epidemia são o fato de o governo do Amazonas e as prefeituras, especialmente Manaus, jamais terem aderido a campanhas de testagem em massa”.

Inicie uma conversa

Colaboradores, favor realizar Entrar »

Por uma boa conversa...

  • Por favor, trate as outras pessoas com respeito. Trate como deseja ser tratado. Comentários que contenham mensagens de ódio, linguagem inadequada ou ataques pessoais não serão aprovados. Seja razoável.