Instituição linguística oficial da Espanha recua do uso de pronome neutro

Fachada da Academia Real Espanhola, Wikimedia Commons (CC BY-SA 4.0)

A Academia Real Espanhola (RAE), uma instituição cultural dedicada à regulação linguística do mundo hispanófono, inaugurou o portal “Observatório de Palavras” no dia 27 de outubro. O portal é uma coleção provisória de termos e expressões que não aparecem no Dicionário de Língua Espanhola (DLE), mas acabaram gerando debate ou confusão.

Meios de comunicação começaram a escrever a respeito da inclusão do pronome de gênero neutro elle na coleção do observatório quase imediatamente, motivando a RAE (Academia Real Espanhola) a reiterar que não aprovou oficialmente o uso do pronome nem o incluiu no dicionário.

O pronome elle pode ser usado como alternativa para os pronomes el/ella (ele/ela). O Observatório de Palavras definiu o pronome elle da seguinte maneira:

El pronombre elle es un recurso creado y promovido en determinados ámbitos para aludir a quienes puedan no sentirse identificados con ninguno de los dos géneros tradicionalmente existentes. Su uso no está generalizado ni asentado.

O pronome elle é uma solução criada e difundida em certas áreas para se referir àqueles que podem não se sentir identificados com nenhum dos dois gêneros tradicionalmente existentes. Seu uso não é difundido ou consolidado.

Após o lançamento do Observatório, os acadêmicos, jornalistas e o público em geral ponderaram sobre a inclusão do pronome na última iniciativa da RAE.

Muitos entenderam a iniciativa como um sinal de que a RAE estava começando a aceitar o novo pronome de terceira pessoa e poderia vir a acolher outras propostas linguísticas que buscam neutralizar o sexismo embutido na língua.

Olá, a RAE acabou de incorporar o pronome ELLE. Este reconhecimento é muito importante, dado a sua resistência. A RAE parece um pouco com o Papa: não importa o que dizem, mas o que dizem é meio caminho andado.

Veja também: As línguas românicas estão se tornando mais neutras com relação ao gênero?

No entanto, a RAE refutou rapidamente essa sugestão reiterando que a posição da instituição a respeito do uso do elle não havia mudado e que uma inclusão do pronome no dicionário continuava não sendo considerada.

A RAE foi um passo à frente e, em 31 de outubro, removeu a entrada do portal “para evitar confusão”.

Obrigada pelo seu interesse. Devido à confusão gerada pela presença do pronome “elle” no “Observatório de Palavras,” foi decidido que era preferível remover esta entrada. Quando o papel e o funcionamento desta seção forem mais abrangentes, ela será reavaliada.

As reações a esta mudança abrupta foram imediatas:

O que vocês pensaaaam? Que a @RAEinforma deletou o “elle” do seu Observatório de Palavras. Será que estão fazendo correções? Será que Pérez Reverte, Vargas Llosa e cia tiveram um ataque cardíaco?
O que vocês acham?

[Nota: Arturo Pérez-Reverte é um ilustre jornalista, acadêmico e escritor espanhol da RAE desde 2003, e Mario Vargas Llosa é um escritor e político peruano, também com cidadania espanhola, ganhador do Prêmio Nobel de literatura de 2010, além de outros prêmios, e acadêmico da RAE desde 1996.]

Como havia pessoas sem uma ideia clara, o melhor a fazer era parar de explicar? Isto não faz muito sentido… Mas em qualquer caso, já que algumas pessoas estão incomodadas com a evolução da língua, a RAE desiste de fazer o seu trabalho, que é transmitir essa evolução.

Fiz uma coisa, embora esteja um pouco atrasada para o Halloween

Muito obrigada, RAE, por cuidar da nossa língua e não deixar que se deteriore com essa invenção ridícula.

Aceitação institucional de pronomes de gênero neutro

Em inglês, o pronome “they” (eles), normalmente usado para se referir à terceira pessoa do plural, começou a ser usado com frequência para se referir à terceira pessoa do singular. Seu uso se tornou cada vez mais comum nas redes sociais e na mídia, e um grande número de personalidades do entretenimento pediram para serem referidas pelo pronome pessoal singular “they/them” (eles). Este novo uso suscitou muitos estudos e investigações até que o Dicionário Merriam-Webster incluiu o novo significado na entrada “they” e o chamou de Palavra do ano em 2019.

Em sueco, o pronome neutro hen é usado como alternativa à han (he/ele) e hon (she/ela). Ele foi primeiramente proposto por feministas na década de 1960 e depois incorporado nos círculos de ativismo trans. E como a língua não possui terminações de gênero em outras partes do discurso, ficou mais fácil incorporar o novo pronome na fala cotidiana, principalmente entre os jovens. No fim de 2015, a Academia Sueca o adicionou ao dicionário.

Um dos pronomes pessoais neutros mais antigos, o finlandês hän, que é equivalente ao “he” (ele) ou “she” (ela) de maneira intercambiável, serviu de inspiração para as feministas suecas inventarem um pronome neutro para sua própria língua. Esse pronome possui registros na língua finlandesa desde 1543.

É importante ressaltar que incluir um pronome pessoal neutro em uma língua latina como o espanhol é muito mais complexo do que nos casos mencionados acima, já que a marcação do gênero não se limita aos pronomes de terceira pessoa, mas também se manifesta nos substantivos, adjetivos e nos determinantes, o que torna muito difícil evitar o uso do gênero na fala fluente. Dessa forma, o uso correto do pronome elle implicaria uma profunda mudança estrutural da gramática como a conhecemos — essa mudança já foi proposta.

Toda língua viva passa por uma evolução constante e imperceptível, mas as mudanças morfológicas, em particular, levam séculos para se estabelecerem no discurso cotidiano, e a frequência de uso é um fator decisivo para naturalizar essas novas formas. Este é o motivo para que grupos feministas e LGTBQ+ tentem promover formas de comunicação para romper com o sexismo, com os sistemas binários tradicionais e, especialmente, com a predominância de formas masculinas.

Por enquanto, a RAE suspendeu a verificação do pronome elle no seu Observatório de Palavras, mas à luz das recentes mudanças abruptas, é possível pensar que possa vir a ser restituído posteriormente.

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