Federação de Favelas do Rio busca reparação inédita por perseguição na ditadura

Organização que reúne associações de moradores teve dirigentes presos e foi considerada subversiva nos anos 1960 | Foto: Acervo Correio da Manhã/Arquivo Nacional.

Este texto, escrito por Lucas Pedretti e Marcelo Oliveira, editado por Thiago Domenici, foi publicado originalmente no site da Agência Pública em 6 de novembro de 2023. O texto é republicado aqui em acordo de parceria, com edições.

No dia 6 de novembro de 2023, a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ) e a Defensoria Pública da União (DPU) ingressaram com o pedido inédito na Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, demandando que o Estado brasileiro reconheça e repare a perseguição sofrida pela entidade durante a ditadura militar (1964-1985). O pedido é feito com base em documentos produzidos pelas forças repressivas da ditadura.

Criada em 2002, a Comissão de Anistia já reconheceu e reparou mais de 50 mil casos de indivíduos que tiveram seus direitos violados por razões exclusivamente políticas. Esvaziada durante o governo Bolsonaro, a entidade foi reconstituída no início de 2023 e, entre as mudanças propostas, estabeleceu uma nova regra, a de que associações e coletivos também podem demandar anistia.

No primeiro pedido de reparação coletiva à Comissão de Anistia de autoria da DPU, a FAFERJ busca o reconhecimento de que as graves violações aos direitos humanos promovidas pelos militares não se restringiram a casos individuais e de que as violências também foram movidas contra a federação, com base em recortes de raça, classe e território.

Na petição de 28 páginas, assinada pelo defensor público Bruno Arruda, a entidade e a DPU anexaram diversos elementos que consideram comprobatórios para sustentar o pedido e demandar um conjunto de reparações simbólicas, abrindo um novo capítulo na justiça de transição brasileira.

A política de remoções forçadas

A DPU recupera um trabalho que teve início com a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), que em seu relatório final, publicado em dezembro de 2015, dedicou um capítulo inteiro às violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura nas favelas. Segundo a CEV-Rio, uma das principais formas de violência foi a política de remoções forçadas, que teria atingido mais de 140 mil pessoas entre os anos de 1962 e 1973. Para a DPU, esse processo foi “uma situação sistemática de graves violações aos direitos humanos”.

O projeto de erradicar definitivamente as favelas do horizonte do Rio de Janeiro teve início em 1962, quando o então governador do estado da Guanabara era Carlos Lacerda. O historiador Marco Pestana afirma:

Durante décadas, entidades ligadas ao capital imobiliário e construtor elaboraram estudos para subsidiar as remoções de favelas, sempre destacando que seu foco deveria ser a zona sul e a Tijuca.

Para que esse projeto se tornasse política públicafoi necessária uma conjuntura específica, que ocorre quando Carlos Lacerda, opositor de João Goulart, se torna governador da Guanabara.

Segundo o pesquisador, o golpe e a ditadura aprofundam e radicalizam as remoções, com mais agentes públicos e dinheiro envolvidos nessa política.

Em 1963 surgiu a FAFEG — Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (na migração da capital brasileira do Rio para Brasília, por um tempo a cidade teve o Estado da Guanabara).

“A proposta era construir uma entidade em que o protagonismo fosse dos próprios favelados”, explica a historiadora Juliana Oakim, que também colaborou com a CEV-Rio. “Em meados de 1962, com as mudanças na política para as favelas, a FAFEG aparece como uma tentativa dos moradores de se organizarem para fazer frente ao que estava por vir.”

Com o fim do governo Lacerda, em 1965, as remoções forçadas foram momentaneamente interrompidas. Em 1968, o ditador Costa e Silva criou a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam). Vinculado ao Ministério do Interior, o novo órgão reativou o projeto.
“A partir de 1968, a política de remoções deixa de ser algo apenas do governo estadual e se torna uma política do próprio regime militar”, explica Juliana, e a FAFEG responde com seu II Congresso e o lema “Urbanização, sim; Remoção, não”.

Em janeiro de 1969, tiveram início as remoções mais emblemáticas do período, como as das favelas localizadas no entorno da lagoa Rodrigo de Freitas, área atualmente com apartamentos avaliados em milhões de reais. Comunidades foram extintas, levando ao deslocamento forçado de milhares de pessoas. Foi nesse contexto que uma segunda investida contra a FAFEG e suas lideranças aconteceu.

Em fevereiro daquele ano, os dirigentes da associação de moradores da Ilha das Dragas foram sequestrados e dados como desaparecidos. A FAFEG se mobilizou e ligou os sequestros à resistência dos moradores, e quatro de seus líderes foram presos: Vicente Ferreira Mariano, Abdias José dos Santos, José Maria Galdeano e Ary Marques de Oliveira. Além de prisões, a violência estatal passou a incluir incêndios, como o da favela da Praia do Pinto, no Dia das Mães de 1969, que abriu caminho para a remoção integral da comunidade.

Foto aérea da Favela da Praia do Pinto | Foto: Acervo Correio da Manhã/Arquivo Nacional.

Controle da federação

As prisões de dirigentes de associações de moradores e da FAFEG que resistiam aos despejos levaram a uma escalada da repressão ditatorial. Documentos anexados à petição indicam que mesmo após as grandes remoções a perseguição à entidade continuava.

Naquele momento, lideranças tentavam reativar a federação aproveitando a abertura política e a ascensão de movimentos sociais em todo o país. Um desses líderes foi Irineu Guimarães, eleito para presidi-la em 1979.

A repressão ganhou novo alvo. O Dops (Departamento de Ordem Política e Social) chamava Guimarães de “ativista – revoltado contra o atual regime constituído.”

Em julho de 1980, Guimarães foi preso e respondeu a inquérito policial.

Em 2012, Guimarães foi declarado anistiado político pela Comissão de Anistia. No relatório do voto que aprovou a reparação, o órgão atestou que ele havia sido alvo de perseguição política. Assim como ele, outros dirigentes da FAFERJ ingressaram individualmente na Comissão de Anistia e foram reconhecidos como perseguidos políticos: Etevaldo Justino, preso em 1964, e Abdias José dos Santos, detido em 1969, tiveram suas demandas reconhecidas.

Anistia coletiva

Agora, a FAFERJ, que sucedeu a FAFEG, no ano que marca os 60 anos da entidade, busca o reconhecimento de que a federação foi alvo do regime.

“As favelas não costumam aparecer nas páginas dos livros didáticos, na historiografia mais consolidada e nas memórias oficiais”, ressalta Derê Gomes, coordenador de relações institucionais da organização, que é historiador e esteve à frente da elaboração do pedido à DPU. “Por isso, é fundamental que uma instância do Estado brasileiro possa declarar oficialmente que a ditadura reprimiu de forma sistemática os moradores de favelas e suas iniciativas de auto-organização, como a FAFERJ”.

O instituto da anistia coletiva é uma novidade no regimento da Comissão de Anistia, e até hoje nenhum pedido foi a julgamento. Eneá de Stutz e Almeida, nomeada no início do ano como nova presidenta do órgão, explica que essa ideia já era discutida antes de 2016, em casos de territórios indígenas, mas a mudança só veio este ano, com a retomada, de fato, da comissão.

Ao contrário dos processos individuais que tramitam na Comissão de Anistia, os pedidos de anistia coletiva não implicam nenhum tipo de indenização, mas apenas formas simbólicas de reparação. Em seu pedido, a FAFERJ demanda o “reconhecimento público das violações de direitos humanos perpetradas às comunidades periféricas, representadas neste ato pela perseguição política que atingiu a FAFERJ” e um “pedido de desculpas oficiais do Estado brasileiro à FAFERJ e aos moradores de favelas do Rio de Janeiro, pelas perseguições políticas cometidas no período ditatorial brasileiro”.

O coordenador de relações institucionais da FAFERJ, Derê Gomes, após reunião em que discutiu o pedido de anistia coletiva com a presidenta da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida | Foto: Guilherme Moraes Camilo Alves

“Estamos mobilizando o Estado para discutir, rememorar e reparar a violência causada a uma coletividade inteira por meio de uma política pública dirigida ao silenciamento de demandas sociais”, diz o defensor público Bruno Arruda, autor do pedido de reparação coletiva para a FAFERJ.

Para ampliar a atuação, Arruda criou na DPU o Observatório de Memória, Verdade e Justiça. O caso da FAFERJ é o primeiro trabalho da equipe do observatório. “Há ainda bastante espaço para avançar sobre o tema da justiça de transição no Judiciário”, e o observatório permite estabelecer parcerias com a sociedade civil para reforçar a tração aos debates necessários ao avanço da justiça de transição brasileira, diz.

Derê Gomes aponta ainda: “Enquanto o restante da sociedade comemorava o retorno da democracia, as favelas seguiram vivenciando uma realidade de violações de direitos humanos”. “Chamar atenção para o que foi a perseguição nas favelas durante a ditadura é uma forma de mostrar que, para nós, a violência de Estado é a regra, não a exceção. Por isso, é fundamental conectar o atual genocídio da juventude negra e favelada com o que ocorreu em outros períodos históricos”.

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