Assédio, ausência de produtos básicos de higiene e saúde, falta de alimentos, anulação de identidades e outras violações aos direitos humanos aparecem em relatos ouvidos em prisões brasileiras e reunidos no “Relatório Nacional de Inspeções: População LGBTI+ privada de liberdade no Brasil“, lançado no segundo semestre de 2023.
O documento foi elaborado pela Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade, uma organização não governamental que, aliada à comunidade LGBTQIA+, constrói ações e políticas. O projeto conta com a participação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e de outras organizações civis ligadas à comunidade queer brasileira.
Para entender mais sobre a metodologia da pesquisa e seus relatos ouvidos, o Global Voices conversou com Caio Klein, advogado e diretor da Somos.
Sobre o relatório
A primeira edição do relatório foi feita com base em pesquisas e entrevistas realizadas em visitas a 24 unidades penitenciárias brasileiras: oito delas no Nordeste e quatro em cada uma das outras regiões (Centro-oeste, Sudeste, Norte e Sul).
A metodologia da Somos sistematizou dados de doze relatórios estaduais para o documento nacional. Em cada uma das regiões, ao menos uma prisão masculina e outra feminina foram visitadas.
Klein afirma que “o relatório não pretende ser uma fotografia da realidade, mas um documento das tendências de análise do encarceramento de LGBTs no Brasil” porque, revela os achados das inspeções e reflete sobre o que pode ou não ser feito.
Pessoas privadas de liberdade (PPL) que pertencem à comunidade queer fazem parte dos trabalhos da Somos há anos. A organização já realizou capacitações em gênero e sexualidade para mais de oito mil profissionais do sistema prisional, lançou livros e o documentário “Passagens: ser LGBT na prisão” (2019).
Contradição brasileira
Mesmo dizendo que o Brasil é o país que mais produz normativas, resoluções e recomendações sobre a questão LGBTQIA+ em presídios, Klein afirma que “existe uma série de itens que o Estado não fornece ou fornece mal”.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) são órgãos que, por lei, estabelecem e garantem direitos e o parâmetro de acolhimento a detentos LGBTQIA+. Com base nas denúncias colhidas, ele aponta que há pelo menos duas resoluções vigentes que não estão sendo cumpridas — Resolução nº 348/2020 e da Resolução Conjunta nº 1/2014.
De acordo com a Somos, há relatos de violência física, psicológica e/ou sexual em todas as unidades prisionais visitadas, sejam elas masculinas ou femininas. Somente no estado do Pernambuco e em uma unidade feminina do estado de Santa Catarina não foram observadas quaisquer formas de tortura, segundo o documento.
Apesar das normas do CNJ e do CNPCP garantirem o respeito ao nome social e à autodeclaração, à escolha do detento LGBTQIA+ sobre o local em que deseja cumprir pena, o acesso a tratamento hormonal para pessoas trans e atendimento de saúde específico, a realidade fica longe disso.
“É privação de liberdade, não de direitos”, pontua o diretor da Somos.
No relatório, a organização afirma:
Essas situações, amplamente narradas, são a síntese do extermínio das identidades de pessoas LGBTI+ encarceradas, e dos processos de aniquilamento de suas subjetividades enfrentados nas unidades prisionais.
Sobrecarga penal
“O primeiro direito é não ter direito, e o segundo é respeitar o primeiro”. Essa é a reprodução da fala de um agente penitenciário sobre a ala queer em uma das unidades visitadas, citada no relatório, que ilustra situações de preconceito, com deboche, humilhações e homofobia por parte de trabalhadores.
Em 2014, a resolução do CNPCP já assegurava que o Estado deve garantir a capacitação dos profissionais de estabelecimentos penais “considerando a perspectiva dos direitos humanos e os princípios de igualdade e não-discriminação”, incluindo nisso orientação sexual e identidade de gênero.
A Somos diz que, dentro das prisões, pessoas LGBTQIA+ enfrentam uma sobrecarga penal: para além da infração cometida, pagam, também, pelo crime social e simbólico de sua sexualidade e/ou identidade de gênero.
O relatório afirma que elas são mais vigiadas, controladas e castigadas pelo Estado. Caio explica:
A ideia de sobrecarga penal serve para entender como o cumprimento da pena é sobrecarregado [para elas]. Essas pessoas vão ter uma privação de liberdade e uma privação de direitos mais aprofundadas. Elas vão ter situações de violência física, psicológica, institucional mais agravadas do que o restante da população — e a gente sabe, existe uma grande mazela social em volta do sistema prisional.
O documento conta que, no Pará, o uso de spray de pimenta em cela com ventilação fechada formou uma espécie de câmara de gás. O relatório cita ainda “diversos relatos de abusos, xingamentos, humilhações, violência sexual, ameaças, violência física, uso do corpo de pessoas LGBTI+ para o transporte de objetos ilícitos, violência psicológica, entre outros abusos”.
Entre as mais de vinte unidades prisionais visitadas pelos peritos, apenas duas garantem que pessoas trans podem requerer tratamento hormonal, prescrições médicas e medicamentos.
Também há denúncias de abuso físico e moral nas unidades e o próprio ato de denunciar é um desafio: “Denunciar para quê? Apanhar de novo e pegar castigo?”, questionou uma detenta, que disse ter medo de represálias.
Em um local, o relatório diz que há casos em que pessoas podem ser alvo de punição apenas para gerar antipatia de outros presos:
[…] na unidade, as pessoas do grupo LGBTI+ flagradas em tentativas de comunicação ou contato afetivo têm suprimida essa alimentação e, em caso de reiteração, narraram que é excluída a alimentação de todo o grupo da cela onde a ‘desobediente’ estiver, gerando com essa punição coletiva uma antipatia das demais presas cisgênero e heterossexuais em face das lésbicas ou homens trans que cometem a “violação” de demonstrar afeto.
A questão do cárcere
O estudo da Somos afirma ter o objetivo de refletir sobre “o que falta para que pessoas LGBTI+ tenham um cumprimento de pena digno e não violador?”.
Questionado pelo GV, Caio Klein afirma que esse problema não se resolve em si mesmo e, antes dele, existe a própria questão carcerária no Brasil.
A questão penitenciária no Brasil funciona muito bem. Se propõe a ser um espaço no qual as pessoas são despejadas e esquecidas, então, o que eles querem fazer funciona.
As primeiras alas específicas para a comunidade queer no Brasil começaram a surgir em 2009, mas o sistema penitenciário nacional vive em estado crítico há décadas.
De acordo com o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de presos no Brasil aumentou em quase 260% de 2000 a 2022: são mais de 830 mil pessoas.
O Relatório de Presos LGBTI, da Secretaria Nacional de Políticas Penais, revela que mais de 12.300 detentos se autodeclararam pertencentes à comunidade em 2022.
Superlotação, falta de higiene e restrição a itens básicos de saúde e alimentação são denúncias recorrentes. O país tem uma das maiores populações carcerárias do mundo, em números absolutos.
Ainda em outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que há um “estado de coisas inconstitucional” no sistema prisional brasileiro, afirmando que há “violação massiva de direitos fundamentais”.
O STF estabeleceu um prazo de seis meses para que o governo federal elabore um plano de intervenção.
A Somos elaborou ainda 21 recomendações aos órgãos e representantes do Judiciário, do Executivo, da sociedade civil e de três ministérios: da saúde, da segurança pública e dos direitos humanos.
Para o diretor da organização, a solução possível é o fortalecimento das políticas de alas separadas nas unidades e, ao mesmo tempo, a realização de um investimento “grande e compulsório” na qualificação do trabalho dos agentes de segurança em questões de diversidade e inclusão.
“A prisão ideal para pessoas LGBTs é a que respeita todas as pessoas”, diz Klein.