É uma rivalidade antiga, que remonta ao século XIX, quando a posse britânica das Guianas teve início. Entretanto, a versão contemporânea da disputa de fronteira entre Venezuela e Guiana, tem interesses maiores em jogo, devido à descoberta de reservas de petróleo e gás natural no território guianense, feita em 2016 pela ExxonMobil.
Em virtude dessas reservas, grande parte das quais está localizada na província de Essequibo — a área em disputa, a qual é denominada pela Venezuela como “Guayana Esequiba” ou “zona en reclamación” —, o país de 214.970 quilômetros quadrados, cuja língua oficial é o inglês e que já foi um dos mais pobres do continente sul-americano, está agora em vias de atingir a prosperidade econômica. Enquanto isso, a Venezuela, outrora rica em petróleo, tem sido assolada por instabilidade política e socioeconômica, agravada por recorrentes sanções dos Estados Unidos (EUA).
A disputa de fronteira com a Venezuela se originou com a Guiana Britânica, colônia que existiu de 1831 a 1966, ano no qual a atual Guiana conquistou sua independência. A contenda cresceu quando a Grã-Bretanha se recusou a incluir na proposta de arbitragem internacional, envolvendo a província de Essequibo, a área a leste do que veio a ficar conhecido como a “Linha de Schomburgk“, linha fronteiriça nomeada em homenagem ao explorador alemão que traçou essa fronteira.
Ao longo dos anos, tentativas intermitentes de resolução da controvérsia se mostraram infrutíferas. A área de Essequibo sempre foi rica em diamantes, metais preciosos e madeira. O episódio 6 do podcast “Growing Up Woodbrook” observou que por volta do ano de 1895, o preço do açúcar despencou “devido a uma discordância de política externa entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha” acerca do ouro descoberto “próximo à fronteira oeste da Guiana Britânica” – área que corresponde ao território em contenda nos dias atuais. Ainda naquele ano, os EUA pressionaram a Grã-Bretanha a se submeter à arbitragem internacional para resolução do assunto, atitude que a então potência colonial se recusou a fazer. Em resposta, os Estados Unidos impuseram pesadas tarifas ao açúcar oriundo das Índias Ocidentais Britânicas, provocando a queda nos preços.
Em 2021, o presidente Nicolás Maduro afirmou que a Venezuela “reconquistaria” a província, situada a oeste do rio Essequibo, na Guiana. O foco da Venezuela estava nas águas territoriais, no campo de petróleo Liza descoberto pela ExxonMobil, cuja estimativa de produção é de aproximadamente 120.000 barris de petróleo por dia. Na época, o presidente da Guiana, Irfaan Ali, classificou a reivindicação de Maduro como “nulidade legal”. Recentemente, o representante da Guiana na 78ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas chamou-a de “grotesca”.
Em junho de 2020, a questão foi levada à Corte Internacional de Justiça (CIJ), órgão jurisdicional das Nações Unidas (também conhecido como Tribunal Internacional de Justiça), contudo a Venezuela se recusou a participar dos procedimentos, pressionando, em vez disso, por negociações bilaterais, prometendo aos residentes guianenses da região de Essequibo a nacionalidade venezuelana.
Em 3 de dezembro de 2023, a Venezuela realizará um referendo para determinar se há apoio da população à anexação da região de Essequibo, área que constitui cerca de dois terços do território da Guiana. Esta, por sua vez, solicitou ao CIJ a interrupção de tal referendo, alegando que houve um aumento da presença militar venezuelana ao longo da fronteira em disputa, incluindo o desmatamento de uma área da floresta para a criação de uma pista de pouso.
Caso o referendo seja positivo, a Venezuela provavelmente tentará submeter a região ao seu controle. Antecipando-se à votação, há rumores de que o Brasil tem aumentado sua presença militar em certas áreas próximas à fronteira de Essequibo, em apoio à Guiana. Por sua vez, o vice-presidente da Guiana, Bharrat Jagdeo, alertou o presidente Maduro sobre os riscos de subestimar a resposta militar guianense a uma possível invasão, acrescentando que equipes de militares dos EUA estão previstas para chegar à Guiana a partir de 26 de novembro de 2023:
In continuing the strong U.S. military and GDF partnership, the leadership team of the U.S. Army 1st SFAB arrived in Guyana this week to work alongside the GDF Guyana to provide training to increase military readiness in response to security threats. https://t.co/UhpfuvYfkz pic.twitter.com/qfHj1fWNPi
— U.S. Embassy Guyana (@EmbassyGuyana) Nov 28, 2023
Dando continuidade à sólida parceria entre as forças armadas dos EUA e as Forças de Defesa da Guiana (Guyana Defense Force – GDF), a liderança da 1ª Brigada de Assistência às Forças de Segurança (SFAB) do Exército dos EUA chegou à Guiana nesta semana, para trabalhar em conjunto com a GDF dando treinamento, visando aumentar a prontidão da resposta militar em caso de ameaças à segurança.
Neste momento, a Venezuela espera contar com seus cidadãos para apoiar suas intenções expansionistas, enquanto a Guiana está confiando que o CIJ apresentará um acordo vinculativo que reafirmará a Sentença Arbitral de 1899 designando a região de Essequibo como pertencente à Guiana. O tribunal proferirá sua decisão em 1º de dezembro:
#CARIBBEAN: The International Court of Justice (ICJ) will on Friday deliver its Order on #Guyana’s request for “the indication of provisional measures” aimed at preventing #Venezuela from holding a referendum over the ownership of the mineral and forest-rich county of Essequibo. pic.twitter.com/gAzh3LcpMX
— CaribbeanNewsNetwork (@caribbeannewsuk) Nov 29,2023
A Corte Internacional de Justiça (CIJ) apresentará na sexta-feira sua Ordem sobre o pedido da Guiana para a ‘indicação de medidas provisórias’ destinadas a impedir que a Venezuela realize um referendo sobre a posse da província de Essequibo, rica em minérios e florestas.
No entanto, independentemente do resultado, a Venezuela pretende prosseguir com o referendo.
A Comunidade do Caribe (CARICOM), grupo do qual a Guiana é integrante — inclusive, esse bloco de cooperação é sediado em Georgetown, capital da Guiana — tem consistentemente manifestado apoio ao país, muito embora muitos territórios da comunidade — incluindo Barbados e Trinidade e Tobago — também mantenham relações amigáveis e laços econômicos com a Venezuela. A despeito da ênfase dada pela CARICOM ao respeito ao direito internacional e à defesa à manutenção da região como uma “zona de paz”, a Venezuela insistiu em alegar que possui “direitos históricos sobre Essequibo” e desejou que o assunto fosse resolvido de forma amigável.
Sobre este assunto, a CARICOM publicou uma declaração, em 25 de outubro, manifestando preocupação com a linguagem utilizada em “duas das perguntas […] que serão feitas no referendo [as quais], se respondidas afirmativamente, autorizariam o governo da República Bolivariana da Venezuela a iniciar a anexação de área que constitui parte da República Cooperativa da Guiana e a criar um estado dentro da Venezuela chamado de Guiana Essequibo”.
A Venezuela defende há muito tempo que a reivindicação da Guiana sobre o território de Essequibo é uma violação ao Acordo de Genebra de 1966, o qual estabeleceu um mecanismo para a resolução da disputa de fronteira. Caracas deposita muito mais confiança nessa abordagem do que em qualquer decisão proferida pelo CIJ, entidade a qual, conforme alega o governo venezuelano, “nunca alcançará uma solução equitativa”.
O comentarista guianense Kit Nascimento prevê que a “apropriação de terras” pretendida pela Venezuela fracassará, argumentando que: “O mundo sabe [que], em 3 de outubro de 1899, o Tribunal Internacional de Arbitragem apresentou sua Decisão, [a qual] foi extremamente generosa para a Venezuela. Concedeu à Venezuela o Orinoco e o controle da Bacia do Orinoco, o que, na época, era o principal objetivo da Venezuela. O que restou se tornou, desde a independência, o território da Guiana”.
Seus compatriotas parecem ecoar esse sentimento por meio de uma música intitulada “Not A Blade Of Grass” (Nem uma folha de grama), que aborda diretamente a disputa de fronteira. Dave Martins, líder da banda Tradewinds, que compôs e interpretou a música, escreveu sobre a composição da obra no Stabroek News: “Estava pensando sobre a questão da fronteira e seu impacto na Guiana e, por alguma estranha razão, minha mente se voltava para um famoso discurso feito por um dos chefes indígenas que resistia à invasão do homem branco no oeste americano”.
“O indígena falou sobre o amor de seu povo pela terra; que eles não abririam mão de nenhum rio, de nenhum búfalo, de nenhum vale, nem mesmo de uma folha de grama. Num piscar de olhos, percebi que essa era a maneira de compor a canção sobre a fronteira – ela deveria falar sobre o amor dos guianenses pela Guiana, sem sequer mencionar a Venezuela”.
A Venezuela, entretanto, permanece muito presente na partitura musical da região de Essequibo e o mundo aguarda para ver como isso se desenrolará.