Brasil: Comunicadores e ativistas periféricos relatam ataques virtuais e como tentam se proteger

Ataques online se manifestam de diversas formas, sempre com o mesmo objetivo: minar a liberdade de expressão e fazer com que vozes e opiniões de grupos minoritários permaneçam na marginalidade, inclusive virtualmente | Arte: Magno Borges/Agência Mural

Este texto é de autoria de Cleberson Santos, Katia Flora, Livia Alves, Luís Antônio e Matheus Oliveira e foi publicado originalmente em 1º de agosto de 2023, no site da Agência Mural. A reportagem foi produzida com apoio da Artigo 19, e é reproduzida aqui em acordo de parceria com o Global Voices, com edições.

Comentários caluniosos, xingamentos, tentativas de invasão e ameaças. Os ataques virtuais se tornaram um problema comum na vida de influenciadores, ativistas e jornalistas no Brasil, como tentativa de diminuir ou silenciar pessoas e movimentos sociais. A situação é ainda mais delicada para comunicadores que fazem parte de grupos minoritários, pessoas de etnias não-brancas, mulheres e LGBTQIAPN+.

Uma enquete realizada pela Agência Mural em parceria com a ONG Artigo 19 ouviu 82 jornalistas, comunicadores e influenciadores de diversos estados, mas sobretudo moradores da Grande São Paulo. Mais da metade (54%) afirmaram ter recebido ameaças ou intimidações na internet, enquanto 46% relataram que já sofreram tentativas de invasão em perfis nas redes sociais.

O problema também é mostrado em outros estudos. O relatório “O jornalismo frente às redes de ódio no Brasil” da RSF (Repórteres Sem Fronteiras) apontou que, em 2022, durante a campanha eleitoral, a cada três segundos, um jornalista foi vítima de ataque online.

Outra pesquisa, “O Impacto da desinformação e da violência política na internet contra jornalistas, comunicadoras e LGBT+”, feito pela GN (Gênero e Número) e a RSF, mostra que oito em cada dez jornalistas brasileiros mudaram o comportamento nas redes sociais nos últimos anos para se proteger de ataques virtuais.

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Lua Mota, 25, ilustradora e quadrinista não-binária, diz não ter sossego nas redes: “O dia que passo sem receber alguma coisa é um dia feliz”. Por “alguma coisa”, entende-se comentários constantes com questionamentos e difamações.

Lua se identifica como pansexual e usa pronomes neutros (elu/delu). Como ilustradora, quadrinista, designer e ativista LGBTQIAPN+, elu publica quadrinhos sobre sexualidade e gênero no Instagram e Twitter.

“Todos meus posts falando sobre linguagem neutra têm ataques, às vezes vem de uma vez, em massa. Desde falar que não existo, porque pessoas não-binárias não existem na cabeça dessas pessoas, até xingar”, conta. Apesar de nunca ter buscado ajuda jurídica, diz que os casos mexeram com sua saúde mental.

Em 2022, durante o período eleitoral, o jornalista e influenciador digital Mateus Fernandes, 23, sofreu ataques constantes após a publicação de uma reportagem sobre políticas públicas ligadas ao funk.

“Assim que eu postei a reportagem no meu perfil, recebi muitas tentativas de invasão, de maneira muito rápida”, relata Mateus, citando também comentários racistas e agressivos. “Quando fui ver os comentários, tinha muito robô, foi algo que me assustou muito.”

Como jornalista que trabalha com temas sobre periferia e negritude, ele diz que sente incomodar com suas pautas — Fernandes atinge uma média mensal de 80 mil pessoas em seu Instagram. “Foram episódios que me travaram, que me deixaram mais sensível para postar minha vivência”, diz.

Clara Becker, diretora da Redes Cordiais, organização brasileira de educação midiática para influenciadores, pontua que, diferente do hater, o ataque de trolls, que geralmente tem por alvo comunicadores e ativistas, busca criar caos e atrapalhar o debate público.

De acordo com Becker, o impacto psicológico em quem é alvo de ataques, como Fernandes e Lua, é comum e faz parte da estratégia de silenciamento.

“É um impacto que pode mexer com a vida de uma pessoa, ela desenvolver uma síndrome do pânico, uma ansiedade, não conseguir sair de casa, ficar com medo”.

O anonimato é um recurso importante para defender a liberdade de expressão online, já que muitas pessoas ameaçadas ou vigiadas tem nele a única forma de se manifestar. No entanto, ele também é utilizado como forma de esconder quem busca agredir e calar vozes diversas na internet.

“Tudo que é crime fora da internet também é crime dentro da internet. Intimidação, xingamento, constrangimento, ofensa”, explica Becker.

Fora do ar

O coletivo Nós, Mulheres da Periferia perdeu o acesso ao perfil no Instagram durante 24 horas, dias após cobrir manifestações contra o então presidente Jair Bolsonaro, em maio de 2021. Os invasores mudaram as publicações.

Para recuperar a conta, eles contataram o Facebook (hoje, Meta). Depois do ocorrido, a equipe tomou ainda cuidados com proteção digital, adotando protocolos de segurança e verificação de senhas.

O site Alma Preta mudou o endereço oficial após ter a página hackeada, em 2023. Em 2020, outro site, Ponte Jornalismo, também foi derrubado após ataques cibernéticos, que duraram cerca de três semanas.

Apesar de Bolsonaro não estar mais na presidência, a base dele nas redes sociais ainda é atuante contra críticos, como descobriu a professora e comunicadora Anair Novaes, que apresenta programas na rádio online Boa Música FM, da periferia de São Paulo, onde costuma falar de racismo estrutural, o papel da mulher negra nos territórios, questões jurídicas, entre outros. Em um programa de julho de 2023, Anair falaria sobre combate à fake news, mas teve o site invadido e não conseguiu realizar a transmissão.

“Essa não foi a primeira vez que, quando levo assuntos polêmicos, sofremos ataques de hackers”, diz. Novaes conta que a rádio sofreu outra invasão no mês anterior, perdendo gravações. Depois de registrar o caso na polícia, eles conseguiram recuperar o material e retomar a programação.

Para além das telas

Danilo Pássaro também viu as ameaças irem além da tela do computador. Em 2020, após liderar a manifestação de torcidas organizadas de futebol contra Bolsonaro, ele foi citado em um “dossiê antifascista”, criado pelo ex-deputado estadual Douglas Garcia, e chegou a ter oito viaturas policiais na porta de casa, para entregar uma intimação judicial.

O dossiê trazia lista de cerca de mil pessoas críticas ao governo Bolsonaro que, para o parlamentar, integrariam uma “organização terrorista”. Além de nome, fotos e endereços de perfis nas redes sociais, o documento continha informações pessoais, como endereços de casa, trabalho, telefones e números de documentos de identificação.

“Eu venho de um lugar que a gente anda com o sensor-aranha ligado o tempo inteiro, mas teve algumas semanas que eu precisei ter mais atenção”, conta Danilo, que mora na Brasilândia, periferia de São Paulo.

Historiador, teólogo e membro de torcida organizada do Corinthians desde os 13 anos, ele diz que a relação com a igreja evangélica e o futebol está presente nas ameaças que recebe, mas também em sua formação política.

Foi por meio da torcida Gaviões da Fiel que se aproximou de movimentos como o dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e Sem Teto (MTST). Em 2022, ele foi assessor da campanha de Sônia Guajajara (PSOL), eleita deputada federal e atualmente ministra dos Povos Indígenas.

“É importante usar dos instrumentos legais para se proteger”, conta o ativista, que recorreu ao registro policial no episódio do dossiê antifascista em 2020.

Um outro “dossiê antifascista” foi produzido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, ainda sob o governo Bolsonaro. O documento continha informações de quase 600 servidores públicos de segurança e foi entregue a órgãos como a Polícia Federal, o Centro de Inteligência do Exército, a Agência Brasileira de Inteligência e a Força Nacional.

Em maio de 2022, o Supremo Tribunal Federal o declarou inconstitucional.

Como se proteger?

Apesar de não haver uma forma 100% eficaz de se proteger nas redes sociais, a enquete promovida pela Agência Mural e a Artigo 19 aponta que 90% dos entrevistados usam senhas fortes e autenticação de dois fatores. Mesmo assim, 46,3% responderam ter sofrido algum tipo de tentativa de invasão em suas redes sociais, e 41% afirmam ter sido alvos de ataques de robôs.

Algumas instituições auxiliam no processo judicial ou com segurança jurídica para pessoas alvo de trolls e invasões, como a Repórteres Sem Fronteiras.

Artur Romeu, diretor da RSF na América Latina, afirma que a violência contra jornalistas e ativistas sempre foi uma realidade no Brasil. O país, lembra, é o segundo na América Latina entre número de jornalistas assassinados desde 2010. Em outubro de 2022, durante a campanha eleitoral, a RSF realizou um monitoramento de insultos direcionados a jornalistas: foram registrados mais de 3 milhões de publicações.

“A gente vive em país historicamente violento para pessoas que exercem atividades jornalísticas e outras atividades que envolvem a denúncia de abusos, tanto por parte da força de segurança quanto de outras estruturas de poder”, diz ele.

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