O futuro da Nova York ucraniana

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Palácio da cultura da era soviética em Nova York em outubro de 2021, local do Festival Literário de Nova York. Foto de Olya Rusina, usada com permissão.

Esta história faz parte de uma série de ensaios e artigos escritos por artistas ucranianos que decidiram ficar na Ucrânia após a invasão em grande escala pela Rússia em 24 de fevereiro de 2022. Esta série é produzida em colaboração com a Associação Folkowisko/Rozstaje.art, graças ao cofinanciamento dos governos da República Tcheca, Hungria, Polônia e Eslováquia por meio de uma doação do Fundo Internacional de Visegrad. A missão do Fundo é promover ideias para uma cooperação regional sustentável na Europa Central.  

Em 2021, o nome Nova York começou a aparecer nos relatórios diários do Estado-Maior das Forças Armadas ucranianas. A frase “Houve bombardeios em torno de Nova York” soou ambígua, então os meios de comunicação começaram a acrescentar: “Nova York na região de Donetsk”.

Embora a Nova York da Ucrânia só tenha começado a aparecer na mídia e nos relatórios militares nos últimos anos, a história da cidade remonta ao século 19. Como em muitas cidades do leste da Ucrânia, os colonos da Europa Ocidental desempenharam um papel importante no desenvolvimento econômico da cidade. No final do século 19 e início do século 20, eles construíram usinas siderúrgicas e minas de carvão entre os assentamentos locais. Em Nova York, eram alemães menonitas. Mais tarde, surgiram várias lendas sobre o motivo pelo qual os alemães batizaram sua comunidade com o nome da icônica cidade dos Estados Unidos: alguns afirmaram que a esposa de um colono original era uma nativa dos Estados Unidos com saudades de casa, e outros disseram que os colonos esperavam que a cidade se desenvolvesse tão rapidamente quanto sua homônima no exterior. De fato, no início do século 20, era uma cidade muito progressista com um moinho a vapor, uma ferrovia, um quartel de bombeiros, plantas industriais, uma livraria e instituições educacionais. 

Então veio o domínio soviético, a repressão começou e, após a Segunda Guerra Mundial, Nova York perdeu seu nome inicial. Por meio século, a cidade chamou-se Novhorodske (do russo ‘novo gorod’, que significa ‘cidade nova’ ou ‘novo centro’). Depois, em 2014, a Rússia lançou uma campanha militar no leste da Ucrânia. As regiões de Luhansk e Donetsk foram atravessadas por uma linha de frente, com Novhorodske fazendo fronteira entre a linha de frente e o território ocupado. Horlivka, que faz parte da entidade fantoche russa RPD, é visível de uma colina no centro da cidade. Em meio a essa campanha, os moradores ucranianos defenderam a restauração do nome histórico da cidade e acabaram tendo sucesso em 2021. Foi assim que o nome da metrópole americana apareceu no mapa dos conflitos militares no leste da Ucrânia.

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Panorama da colina em Nova York, outubro de 2021. Foto de Olya Rusina, usada com permissão.

Os céticos podem afirmar que o nome exótico não muda nada na vida de uma típica cidade provinciana que tem sido palco de uma guerra desde 2014. No entanto, Nova York atraiu a atenção dos meios de comunicação, bem como de seus próprios moradores, de como a luta para devolver o nome histórico uniu uma parte ativa da comunidade local. Os ativistas salvaram da destruição o moinho a vapor de quatro andares de Peter Dik, que foi construído em 1903, o marco local. (Em 2022, queimou após ser alvo de um foguete russo). Meio ano antes da invasão em grande escala, a cidade realizou seu primeiro festival literário e o primeiro meio de comunicação on-line da cidade — NewYorker.City — foi anunciado. Alunos do Ensino Médio de Nova York escreveram redações sobre sua cidade, e cinco vencedores da competição até conseguiram o prêmio, uma viagem a Kiev e Lviv, que ocorreu menos de dois meses antes da invasão em grande escala. 

“Desta vez, foi mais assustador do que quando eu era criança”

Quando a guerra estourou no leste da Ucrânia, Valeria tinha dez anos, e pouco se lembra daquela época. Até 2022, não havia sirenes de ataque aéreo em Novhorodske/Nova York. Mas as crianças foram ensinadas: se você ouvir um apito, significa que uma bomba está voando em algum lugar, mas não em sua direção; se você ouvir um farfalhar, deite-se imediatamente, de preferência em uma vala. A menina diz:

24 лютого ти бачиш, що обстріляли не Краматорськ, Слов'янськ чи Торецьк, як бувало раніше (міста на Донеччині — авт.), а Харків, Одесу, Київ. Ти просто не розумієш, що відбувається. Можливо, з початком повномасштабної війни мені було так страшно через те, що ще лишилися якісь несвідомі дитячі спогади про початок війни 2014-го. У мене почали здавати нерви, я дуже боялася прильотів. Я вже була доросла і розуміла, які можуть бути наслідки цих вибухів, через це мені було страшніше, ніж у дитинстві. Я дуже добре розумію тих людей, які почули їх уперше.

Em 24 de fevereiro, pode-se ver que eles não bombardearam Kramatorsk, Sloviansk ou Toretsk [todos na região de Donetsk] como antes, mas bombardearam Kharkiv, Odessa e Kiev. Ninguém entendia o que estava acontecendo. Talvez eu estivesse com tanto medo no início da guerra em grande escala porque ainda tinha algumas memórias inconscientes da infância sobre o início da guerra de 2014. Comecei a ficar nervosa, tinha muito medo das bombas que caiam. Eu já era adulta e entendia quais poderiam ser as consequências dessas explosões; por causa disso, era mais assustador do que quando eu era criança. Eu entendo, realmente, as pessoas que ouviram pela primeira vez. 

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Valeria, foto fornecida por ela. Usada com permissão.

Agora, a garota tem 19 anos. Ela vive na região de Lviv e vai se matricular na universidade este ano. Atualmente, trabalha para o NewYorker.City. Há vários anos, Valeria e outros adolescentes formaram uma ONG chamada Iniciativa Juvenil Ucraniana de Nova York (em ucraniano: “Ініціативна молодь українського Нью-Йорка”, ІМУН) que participou do festival literário, realizou muitas de suas próprias atividades e se envolveu em campanhas educativas, incluindo esforços para restaurar o nome histórico da cidade.  

O pai de Valeria foi morto em fevereiro, logo no início da guerra em grande escala, durante um ataque russo. Ela disse:

Про його загибель вже знали у селищі — ходили чутки, але нашій родині ще нічого точно не було відомо. Ми насправді розуміли, що щось відбувається, бо він перестав відповідати на повідомлення і дзвінки. Потім мені написав знайомий і питає: ‘Лєра, твій батько загинув?’. Ми з мамою стали дзвонити батьковим друзям. Знайома з батальйону ‘Айдар’, яка була на сусідніх позиціях, сказала: ‘Так, нас звідти евакуювали, а їх не змогли забрати, навіть поранених — бо росіяни продовжували штурмувати’. Там лишилося і батькове тіло. Мабуть, найгірше для мене було — це дізнатися про його загибель отак, із якихось чуток.

As pessoas da cidade já sabiam de sua morte. Havia boatos, mas nossa família não sabia de nada ao certo. Na verdade, sabíamos que algo estava acontecendo porque ele parou de responder às mensagens de texto e ligações. Aí um conhecido me escreveu perguntando: ‘Lera, seu pai morreu?’ Minha mãe e eu começamos a ligar para os amigos do meu pai. Um conhecido do batalhão Aydar, que estava em uma posição vizinha, disse: ‘Sim, fomos evacuados de lá, mas não conseguimos tirá-los, nem mesmo os feridos, porque os russos continuaram o ataque’. O corpo do meu pai também foi deixado lá. Talvez, a pior parte para mim foi saber da morte dele por boatos.

Sonhos sobre voltar

Agora, 22 pessoas da Iniciativa Juvenil Ucraniana de Nova York estão espalhadas por toda a Ucrânia, algumas se encontram no exterior. Inicialmente, se ocuparam em fornecer ajuda humanitária a civis, depois passaram para a assistência militar: arrecadaram fundos e compraram equipamentos. Elas também criaram uma linha de roupas com a marca “Nova York” e estênceis com inscrições ucranianas, enviaram cartões postais e alimentos para a linha frente e fizeram um videoclipe para civis sobre primeiros socorros. Valeria acredita que depois da guerra, os nova-iorquinos voltarão: 

Дуже важко жити в евакуації, у незнайомому тобі місті чи країні. Хочеться додому. У нас насправді багато активних людей — вони, як і, власне, ми з нашою громадською організацією, повернуться і візьмуть на себе відбудову. Знаєш, зараз кажуть, що найбільш зруйновані міста та селища Донеччини не відбудовуватимуть. Але я думаю, що це вирішувати не президентові чи обласній владі, а тим людям, які захочуть і будуть там жити. Якщо вони захочуть відновити свої домівки, то зроблять це.

É muito difícil viver como um evacuado, em uma cidade ou país desconhecido. Queremos ir para casa. Na verdade, temos muitas pessoas ativas — elas, assim como nós da ONG, planejam voltar e assumir a reconstrução. Você sabe, eles dizem que as cidades e vilas mais destruídas da região de Donetsk não serão reconstruídas. Mas acho que não cabe ao presidente ou às autoridades regionais decidir, mas às pessoas que querem morar lá. Se eles quiserem reconstruir suas casas, eles o farão.

O lema do segundo Festival Literário de Nova York será “Desocupação do futuro.” “Queríamos aprender juntos como pensar estrategicamente e jogar a longo prazo, apesar da constante ameaça da Rússia”, disse a escritora Victoria Amelina, fundadora do Festival Literário de Nova York. Antes do início da invasão em grande escala ela conseguiu planejar quem gostaria de convidar para Nova York no outono de 2022, que foi cancelado por causa da invasão. Nem todos poderão ir ao festival renovado. Por exemplo, o famoso repórter e soldado Olexandr Makhov, que foi morto em maio de 2022.

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Victoria Amelina em frente às antigas instalações do Festival Literário de Nova York no início de 2023. Foto fornecida por Victoria Amelina, usada com permissão.

Enquanto trabalhava nesta história, tive a oportunidade de conversar com Victoria sobre o futuro de Nova York e seu festival. Mas como Oleksandr Makhov, Victoria nunca mais voltará à cidade da região de Donetsk. Em 27 de junho de 2023, ela foi gravemente ferida quando os russos lançaram um foguete no centro de Kramatorsk, visando uma pizzaria popular chamada RIA. Doze pessoas foram mortas lá, incluindo três crianças. Victoria foi a décima segunda vítima: ela morreu no hospital da cidade de Dnipro em 1º de junho. Os parentes e amigos de Victoria planejam desenvolver e continuar o Festival Literário de Nova York. Embora não haja possibilidade de fazer isso lá nesse momento, eles vão iniciar atividades educacionais para crianças e jovens em algum lugar mais seguro.

O autor deste texto, junto com Ucrânia PEN, está organizando uma campanha de arrecadação de fundos para o festival

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