A professora brasileira que criou estojo de giz de cera para falar de identidade e questões raciais

Gladis Kaercher em palestra no evento TEDxFronteiras no ano de 2018 | Foto: Reprodução do YouTube

Este texto é parte de uma série especial do Global Voices sobre mulheres com carreiras acadêmicas chamada Women in Science. Veja outras histórias aqui e aqui.

Dos 52 anos de vida, a pesquisadora Gladis Kaercher dedicou 26 ao ofício de professora universitária e coordenadora do UNIAFRO (Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Federais e Estaduais de Educação Superior), curso de aperfeiçoamento de professores voltado a discussões e práticas de ensino das relações étnico-raciais, em uma universidade no Sul do Brasil, região conhecida pela influência da imigração europeia.

Em um país como o Brasil, em que a maioria da população se declara negra e onde a desigualdade racial se manifesta em dados como as taxas de assassinatos de pessoas negras, que crescem, enquanto as de pessoas brancas diminuem, Gladis é uma voz que defende a importância da discussão da questão racial na formação dos sujeitos desde a infância.

Em parceria com a colega Tanara Furtado, em 2014, ela criou um material didático inédito até então no Brasil e que trouxe à tona a questão da identidade e representatividade desde cedo: um estojo de giz de cera em diferentes tons de pele, que possibilitou às crianças a representação de personagens com a pele negra em seus desenhos.

A Global Voices conversou com a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), via chamada por videoconferência, sobre essa criação e sobre sua trajetória de pesquisadora. Elencamos aqui os principais pontos da entrevista.

Cor de pele

A pesquisadora conta que a ideia da criação do giz de cera surgiu de um incômodo pelo fato de que no Brasil, até então, existia apenas um lápis que era considerado “cor de pele”: um lápis cor-de-rosa, utilizado para representar a pele branca. Fora do Brasil já existiam caixas de lápis com paletas de cores em diferentes tons de pele. Mas a intenção de Gladis e Tanara era disponibilizar esse material nas salas de aula das escolas públicas brasileiras, e importar custaria caro e demandaria muito tempo.

Caixa de giz de cera idealizada por Gladis Kaercher e Tanara Furtado. Foto: divulgação.

Em dezembro de 2014, após debates, reuniões e testes, foi lançada a caixa de giz de cera Pintkor, com 12 matizes de cores de pele. Hoje existe também a versão com 24 cores. A professora diz:

O que eu acho fantástico nessa invenção, era uma concretude que fazia os professores poderem discutir com as crianças pequenas as questões raciais. Porque pintar o corpo humano em um desenho é uma coisa concreta para uma criança, é palpável, fácil de desencadear a discussão. Para criança pequena, falar de raça, racismo, etnia, isso tudo é uma abstração absurda. Mas falar da cor da pele, da cor que se usa para pintar, é uma concretude. A criança pinta. Ela vai falar por que está pintando daquela cor, e o professor pode, então, entrar com perguntas e estabelecer esse diálogo.

Questão racial

Mulher negra, Gladis se viu assumindo a questão racial como tema de suas pesquisas quando, ao se tornar professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde trabalha ainda hoje, seus alunos de estágio encontraram nas salas de aula problemas relacionados à questão racial e passaram a lhe pedir soluções.

Em sua tese de Doutorado, ela pesquisou sobre um programa de fomento às bibliotecas de escolas públicas no Brasil e as questões raciais e de gênero nos acervos. A pesquisadora questionou de que maneira os livros disponíveis nestes espaços, que continham personagens negros, eram recebidos pelas crianças nas salas de aula, que efeito tinham nelas e como elas os percebiam.

A tese, então, se desdobra em pesquisas que eu vou continuando, pensando a representação do negro na literatura e outros marcadores identitários. Ali eu me dou conta da importância desses artefatos [livros infantis contendo personagens negros] para a educação das relações raciais.

Quando questionada sobre o que a motivou a se tornar pesquisadora, Gladis responde:

A necessidade. Eu sempre fui uma professora inquieta. O primeiro ponto da minha vida é ser professora. Por ser professora e ter um desejo profundo que meus alunos aprendessem de fato, eu sempre fui uma professora inquieta, incomodada. Sempre saí buscando materiais, alternativas, respostas. E isso fez com que eu precisasse entender determinados processos da minha sala de aula. É assim que eu me torno uma pesquisadora. Sempre pensando na dimensão concreta da minha atuação docente.

Trabalhando há 26 anos em uma universidade que existe há cerca de 85, Gladis diz que sabe de cor o nome de todos os colegas negros que teve, de tão curta que é a lista:

Saber o nome dos meus colegas negros é profundamente dolorido. Não há outro modo de dizer. Dói saber o nome. Dói. O que para um colega branco é inimaginável. Eu posso nominar [todos] meus colegas negros. Isso é profundamente assustador, numa universidade que tem quase 3 mil professores.

E há ainda outro ponto que atravessa principalmente as pesquisadoras negras, segundo ela:

Nós, mulheres, somos educadas para a humildade. Eu acho a humildade uma coisa preciosa, mas às vezes o excesso de humildade nos tira a altivez. Nós, mulheres negras, principalmente, somos educadas para desaparecer. E isso é tão marcante, que a gente leva muito tempo para perceber determinadas características que nos prejudicam.


Questão de gênero

Como mulher, a professora diz que, além da questão racial, a questão de gênero também se colocou em seu percurso acadêmico:

Há questões da vida acadêmica que atravessam mais fortemente os percursos femininos. Uma das questões que atravessou o meu percurso acadêmico foi a maternidade. Eu era uma mulher que queria ser mãe. Algo da maternidade, sobretudo nos primeiros anos, é da ordem de uma demanda importante, que é física. É um filho que berra e um seio que derrama leite.

Ao engravidar pela segunda vez, de gêmeos, Gladis lembra que foi surpreendida pela forma como a notícia foi recebida no ambiente acadêmico. De uma pessoa, ela conta que ouviu que não sabia se deveria cumprimentá-la por isso.

E eu disse para ela: pode me cumprimentar, porque a pessoa mais interessada em ser doutora antes do nascimento desse bebê sou eu. Nenhum homem grávido, esperando filhos gêmeos, daria essa resposta. Eu sabia que, sim, aconteceria um período em que a minha carreira ficaria quase em stand by após o nascimento dos bebês. O homem segue tocando sua vida acadêmica normalmente depois de ser pai. Esse é um forte atravessamento de gênero.

Entre seus maiores sonhos como pesquisadora, hoje, Gladis espera fazer com que o giz de cera em vários tons de pele possa ser distribuído pelo governo brasileiro para as escolas públicas, ter mais colegas negros, até que não seja possível gravar todos os seus nomes, e encontrar mais mulheres em cargos de administração na universidade.

Para outras mulheres que estejam ou desejem adentrar a vida acadêmica, a professora diz:

Dentro da universidade é fundamental construir-se em rede, em grupo. A solidão não é um imperativo da carreira acadêmica, da intelectualidade negra acadêmica. Hoje ela é uma escolha, mais do que nunca. Então, o conselho é: a solidão não é uma parte integrante do pacote. A gente pode furar essa solidão e criar pontes magníficas.


 

Nome: Gladis Kaercher
Área de pesquisa: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil), Educação, com foco em educação e literatura infantil, educação antirracista, identidade e diferença.
Onde saber mais sobre ela: Plataforma Lattes

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