Esta reportagem foi produzida pela repórter Marina Amaral e publicada originalmente pela Agência Pública. Será republicada pelo Global Voices em três partes, via parceria de conteúdo. Leia aqui a parte 1.
Vem pra rua, ciudadano
Na véspera do Fórum, no dia 12 de abril, Gloria Álvarez discursou contra o “populismo maldito” vestida com uma camiseta de lantejoulas formando a bandeira do Brasil para cerca de 100 mil pessoas na avenida Paulista, em São Paulo, na segunda rodada de manifestações “Fora Dilma”. Do alto do caminhão do Vem pra Rua, o líder do movimento, Rogério Chequer, a apresentou à multidão como “uma das maiores representantes da batalha contra o populismo do Foro de São Paulo” e se manteve o tempo todo ao seu lado (veja o vídeo com o discurso de Gloria na Paulista aqui). Gloria, que havia anunciado antecipadamente sua presença nos protestos em uma entrevista no programa de Danilo Gentili no SBT, tinha dado uma palestra no Instituto Fernando Henrique Cardoso, assistida pelo próprio ex-presidente, três dias antes.
Entre os que lideraram os protestos de março e abril contra o governo, o movimento de Chequer foi um dos últimos a assumir a bandeira do impeachment, o que lhe valeu um pito público do vetusto Olavo de Carvalho, que o acusou de “paumolice tucana”. O Movimento Brasil Livre, conhecido principalmente através da figura de Kim Kataguiri, assumiu desde o início a bandeira do impeachment e rompeu publicamente com Chequer, divulgando fotos dele ao lado do senador José Serra (PSDB-SP) na campanha de Aécio Neves – tachado de “traidor” pela hesitação em pedir o impeachment da presidente eleita. Voltaram às boas depois que a comissão de senadores liderada por Aécio e Ronaldo Caiado (DEM-GO) fez sua controversa expedição a Caracas.
Caiado, aliás, estava no debate de abertura da edição do Fórum deste ano. Sem a graça irreverente de Glorita, o senador ruralista conservador arrancou aplausos da plateia com frases de efeito contra a corrupção do governo (veja aqui o vídeo com sua apresentação), menções ao “Foro de São Paulo”, pedido de “renúncia” à presidente Dilma e ataques ao BNDES. Curiosamente, as acusações de Caiado foram feitas sob os logotipos da Gerdau e Ipiranga – do grupo Ultra –, que estão entre os maiores tomadores de empréstimos do BNDES segundo os dados levantados pela Folha de S.Paulo. Ambos obtiveram individualmente mais de R$ 1 bilhão de recursos do banco apenas entre 2008 e 2010.
O empresário gaúcho Jorge Gerdau é um dos idealizadores do Fórum da Liberdade, que surgiu em 1988 com a intenção de promover o debate entre diversas correntes de pensamento. Em suas primeiras edições, o Fórum incluiu o ex-presidente Lula, o ex-ministro José Dirceu e o falecido ex-governador Leonel Brizola entre os debatedores, sem prejudicar sua identidade como principal fórum conservador do país.
Foi ali que, em 2006, foi lançado oficialmente o principal think tank da direita no Brasil, o Instituto Millenium. Armínio Fraga (escolhido para ser ministro da Fazenda de Aécio Neves se ele vencesse as eleições) é sua figura mais conhecida no campo econômico. Seus mantenedores são a Gerdau, a editora Abril e a Pottencial Seguradora, uma das empresas de Salim Mattar, dono da locadora de veículos Localiza. A Suzano, o Bank of America Merrill Lynch e o grupo Évora (dos irmãos Ling) também são parceiros. William Ling participou da fundação do Instituto de Estudos Empresariais (IEE) em 1984, que, formado por jovens líderes empresariais, organiza o Fórum desde a primeira edição; seu irmão, Wiston Ling, é fundador do Instituto Liberdade do Rio Grande do Sul; o filho, Anthony Ling, é ligado ao grupo Estudantes pela Liberdade, que criou o MBL. O empresário do grupo Ultra, Hélio Beltrão, também está entre os fundadores do Millenium, embora tenha o próprio instituto, o Mises Brasil.
A rede de think tanks liberais e libertaristas no Brasil se completa com mais duas entidades: o Instituto Ordem Livre – que realiza seminários para a juventude – e o Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista, do Rio de Janeiro, ligado ao Opus Dei. O jurista Ives Gandra, autor do controverso parecer sobre a existência de base jurídica para o impeachment da presidente Dilma, faz parte de seu conselho.
A exemplo do Millenium, a grande maioria desses institutos foi criada recentemente. A semente original foi o Instituto Liberal, criado em 1983 pelo engenheiro civil carioca Donald Stewart Jr., falecido em 1999. De acordo com a tese de doutorado do historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), “A ditadura dos empreiteiros (1964-1985)”, a Ecisa (Engenharia Comércio e Indústria S.A.), empresa de Stewart Jr., foi uma das maiores empreiteiras durante a ditadura militar e Stewart Jr. se associou à construtora norte-americana Leo A. Daly para construir escolas no Nordeste para a Sudene. A participação de companhias dos EUA nas obras era exigência dos financiamentos da Usaid – a agência de desenvolvimento americana que funcionava como braço da CIA durante as ditaduras latino-americanas.
Donald Stewart Jr. também era um velho amigo de um personagem crucial nessa história, o argentino radicado nos Estados Unidos Alejandro Chafuen, 61 anos, ambos membros da seleta Mont Pelèrin Society, fundada pelo próprio Hayek em 1947 na Suíça e sediada nos Estados Unidos, que reúne os mais fiéis libertarians. El Muso, o fundador da universidade onde estudou Gloria Álvarez, foi o primeiro latino-americano a presidir a Mont Pelèrin, e seu atual reitor, Gabriel Calzada, participa da diretoria com a brasileira Margaret Tsé, CEO do Instituto da Liberdade, o suporte ideológico do IEE. O atual presidente da Mont Pelèrin Society é o espanhol Pedro Schwartz Girón, semeador de think tanksvinculados à FAES, a fundação do Partido Popular (PP) presidida por José María Aznar, que promoveu o Parlamento Iberoamericano da Juventude, de onde Gloria Álvarez foi catapultada para a fama. Pedro Schwartz, Alejandro Chafuen e o colombiano Plinio Apuleyo Mendoza, coautor do livro Manual do perfeito idiota latino-americano, um hit da juventude de direita, participaram do painel “América Latina”, no Fórum da Liberdade. Chafuen também participou discretamente dos protestos de 12 de abril em Porto Alegre. Não resistiu, porém, a postar em seu Facebook uma foto em que aparece vestido com a camisa da CBF abraçado ao jovem cientista político Fábio Ostermann, da coordenação do Movimento Brasil Livre – nome que assumiu nas ruas o grupo Estudantes pela Liberdade (EPL).
O gaúcho Ostermann, o mineiro Juliano Torres e o gaúcho Anthony Ling são fundadores do EPL, a versão local do Students for Liberty, uma organização-chave na articulação entre os think tanksconservadores americanos – especialmente os que se definem como libertários – e a juventude “antipopulista” da América Latina. Mr. Chafuen, presidente da Atlas Network desde 1991, é o seu mentor.
A Atlas Network (nome fantasia da Atlas Economic Research Foundation desde 2013) é uma espécie de metathink tank, especializada em fomentar a criação de outras organizações libertaristas no mundo, com recursos obtidos com fundações parceiras nos Estados Unidos e/ou canalizados dos think tanksempresariais locais para a formação de jovens líderes, principalmente na América Latina e Europa oriental. De acordo com o formulário 990, que todas as organizações filantrópicas tem de entregar ao IRS (Receita nos EUA), a receita da Atlas em 2013 foi de US$ 11,459 milhões. Os recursos destinados para atividades fora dos Estados Unidos foram de US$ 6,1 milhões: dos quais US$ 2,8 milhões para a América Central e US$ 595 mil para a América do Sul.
Com exceção do Instituto Fernando Henrique Cardoso, todas as organizações citadas até agora compõem a rede da Atlas Network no Brasil, incluindo o MCN de Gloria Álvarez, a Universidade Francisco Marroquín e o Estudantes pela Liberdade, uma organização que nasceu dentro da Atlas em 2012. Como veremos, além dos recursos citados há projetos bem mais vultosos financiados por outras fundações e executados pela Atlas.
O discreto charme de Mr. Chafuen
Sentado na sala VIP do Fórum da Liberdade, Mr. Chafuen se levantou de um salto para cumprimentar Kim Kataguiri, que apareceu “de surpresa” no Fórum da Liberdade. A alegria indisfarçável desse senhor recatado, um libertarian ligado ao Opus Dei, foi a deixa para pedir a entrevista. Os trechos principais estão transcritos aqui.
Como o senhor se aproximou do Brasil?
Comecei a trabalhar com os amigos da Liberdade brasileiros em 1998, com Donald Stewart, e eu sempre me lembro da solidão que ele sentia na batalha pela liberdade. Chegar em Porto Alegre no mesmo dia da manifestação e ver todo esse povo, nem todos libertarians, mas pessoas de diversas camadas da sociedade brasileira, reivindicando coisas que são muito consistentes com a essência da sociedade livre, me fez lembrar esses pioneiros. Porque, sim, era tanta gente na rua, tantas almas, que fiquei agradavelmente surpreso me perguntando o que virá depois, como nós podemos usar esse entusiasmo de tantos jovens para produzir uma mudança mais duradoura no Brasil.
E que mudança seria essa?
Vindo de fora é difícil dizer, não é fácil dizer o que fazer, isso é específico de cada país. Veja a Espanha hoje, em que os partidos perderam terreno para os novos movimentos como Podemos, de esquerda, ou seu oposto na Catalunha, o Ciudadanos. Nos Estados Unidos, por exemplo, temos o Tea Party, um movimento espontâneo que, em vez de fundar um partido, preferiu se tornar uma tendência dentro de um partido, e agora todos, com exceção de um dos principais candidatos presidenciais republicanos, se identificam com o Tea Party e buscam apoio no movimento. Rand Paul, Marco Rubio, Ted Cruz, todos vêm do Tea Party e são quase oposição aos republicanos tradicionais. Então, essa não é uma resposta que um estrangeiro possa dar, ainda mais no Brasil, que é um mundo em si mesmo, com tantas culturas diferentes. Nós damos algumas ideias, mas cabe a eles, os que vi na rua, os jovens e os não tão jovens, captar mais gente da sociedade civil para criar essa institucionalização.
Comento com ele que nos eventos do Fórum se fala muito em falta de liberdade – sem base na realidade – e se compara o país com a Venezuela.
Sim, aqui a situação é bem diferente da Venezuela, mas vocês têm que se prevenir. Não é assim, de um dia para outro, que a perda da liberdade acontece. A Venezuela era um dos países mais prósperos e veja o que aconteceu. O populismo na América Latina enfraquece as instituições. Eles deixam os empresários se sentirem livres para investir por algum tempo, deixam a liberdade de expressão, até que mais cedo ou mais tarde viram o jogo. As primeiras nacionalizações e expropriações que o Chávez fez foram vários anos depois de ele tomar o poder. Sim, aqui vocês têm uma liberdade considerável. Mas tem uma coisa que perverte a liberdade, que é o não cumprimento da lei, o privilégio, a corrupção, o capitalismo só para os amigos. É uma falsa liberdade. É como pôr a raposa no galinheiro e dizer às galinhas: vocês estão livres agora. Daí começam os problemas [denúncias de propina], os empresários são obrigados a entrar no jogo, e eles que pagam o pato. É preciso dois para dançar um tango, como se diz na Argentina.
E os meninos do Movimento Brasil Livre têm forças para promover uma mudança social?
Eu desenvolvi um modelo para explicar como as coisas acontecem, e ele tem quatro elementos: primeiro, ideias, já que os seres humanos pensamos antes de agir ou pelo menos deveríamos; segundo, motivação: economia é motivação; o terceiro é ação, porque ideias sem ação são apenas ideias; e o quarto é a Providência ou, dependendo do que você acredita, sorte. Então, você começa a trabalhar com ideias, alguns líderes emergem, as leis mudam e isso afeta a motivação da sociedade… A mudança típica não vem de um dia para outro. Essa pressão vai se acumulando e de repente alguma coisa acontece. E aqui vem um escândalo, outro escândalo, uma revista com coragem, uns jovens de São Paulo [Kim Kataguiri e Renan Haas, do MBL, anunciaram recentemente a decisão de sair da universidade para se dedicar ao movimento] que decidem: “Vou deixar a universidade e lutar contra isso”. E esse movimento está aí nas ruas. É uma combinação de fatores que temos visto em outras épocas na história. O senhor William Waack [jornalista da Rede Globo], que recebeu um prêmio aqui, disse para nós, em um almoço antes da abertura do Fórum, que o único momento que ele viveu que se comparava a isso foi quando cobriu a queda do Muro de Berlim. Exagerou um pouco, mas não se sabe ainda o que vai ser desse movimento.
Depois da primeira manifestação, em março deste ano, a Atlas publicou uma matéria em seu site comemorando o papel decisivo dos Estudantes pela Liberdade, parceiro da Atlas, nos protestos brasileiros contra a presidente Dilma Rousseff e o PT. O senhor se sente responsável por esse movimento?
Nosso papel [em relação aos Estudantes pela Liberdade] é o do poder da nutrição. Esses seres humanos, nós o chamamos de empreendedores intelectuais, pessoas com novas ideias, que enxergam soluções e decidem investir seu capital nisso. É como nos negócios. Então, damos a eles programas de treinamento, tentamos apoiá-los financeiramente, encorajá-los a ser muito sérios, não muito festeiros. Mas a Atlas não apoia partidos. Nós retiramos nosso apoio se houver intenção partidária. Não aceitamos nenhum recurso do governo, mas podemos oferecer algumas diretrizes, novas ideias sobre a sociedade livre, do liberalismo clássico ao libertarismo, de religiosos a ateus, mas cabe a cada pessoa escolher. Muitos na nossa organização achamos muito negativo ter uma aproximação de cima para baixo. Nós tentamos encorajá-los, facilitar os encontros entre eles. Agora, por exemplo, em todos os lugares do mundo, eles devem estar se perguntando: “Podemos copiar os brasileiros?”. Então comemoramos, mas temos que ser muito cuidadosos para não ficar com os créditos do resultado, do que acontece localmente.
Na Venezuela, o Cedice Libertad, que é uma organização parceira da Atlas, e o Cato Institute, que financia programas da Atlas para estudantes, foram acusados pelo governo Chávez de fomentar a oposição entre os estudantes, associadas a empresários locais.
Eu sou vice-presidente do Cedice, e a verdade é que não. Em algumas vezes, alguns membros do Cedice podem ter tido alguma participação política. Mas uma coisa é a vida política, a pólis, outra coisa é trabalhar somente com um partido político. Hoje em dia, nós temos trabalhado e recebido no Cedice Leopoldo López [que está preso] com seu partido da Internacional Socialista, [ex-deputada] María Corina Machado, Antonio Ledezma [prefeito de Caracas detido em março por tentativa de golpe de Estado, segundo o governo]. A resposta é: não podemos abandonar a luta pela liberdade, e algumas pessoas vão para a política. Mas a Atlas não se mete em política interna. “The battle is not between left and right but between right and wrong.” E agora a senhora me dê licença porque tenho que me preparar para a minha palestra [e se levanta].
Uma última pergunta, por favor, só para não fomentar boatos. A ligação das fundações Koch com o Students for Liberty através de financiamento direto e através de outras fundações associadas aos irmãos Koch tem despertado suspeita, já que os Koch são donos de indústrias petroleiras que poderiam ter interesses aqui.
A Atlas recebe 0,5% de financiamento dos Koch, a Students for Liberty, não sei. Até logo.