Quando criança, ouvia histórias de senhoras idosas que testemunharam a ocupação nazista na União Soviética. Elas falavam que mesmo décadas depois, não suportavam ouvir a língua alemã, mas eu nunca acreditei nisso. No entanto, passadas algumas décadas, eu própria não suportaria ouvir russo, a minha língua materna.
Atualmente, soa mais estrangeiro do que qualquer outra língua com a qual já me tenha deparado, apesar de eu a usar comigo mesma de vez em quando. Não há obstáculos concretos que me impeçam de falar o russo, apenas já não quero falar a língua. Também já não penso em russo.
Eu converso no idioma russo apenas com meus pais de sessenta e poucos anos, que já estão estressados o suficiente por causa da guerra e mal compreendem as nuances políticas e psicológicas da língua russa na Ucrânia de hoje. Durante toda vida, eles falaram o idioma. Quanto aos outros, entre as pessoas que falam russo e sabem que alguém da Ucrânia também fala o idioma, a atitude correta é perguntar primeiro se é aceitável falar em russo. Tenho especial apreço pelos meus colegas russos que me perguntam ou continuam a dirigir-se a mim em inglês, como se não partilhássemos outra língua comum. E alguns deles estudam ucraniano.
Em busca de uma comunidade
A minha história está longe de ser única. Na Ucrânia, o número esmagador de falantes de russo (a maioria de nós é bilingue) mudou para o idioma ucraniano após a invasão russa em grande escala em 2022. A língua tornou-se o principal indicador de um aliado.
Não trocamos de idioma apenas em público; nos comunicamos em ucraniano através de messengers, em conversas telefônicas privadas e em casa com a família e convidados. Isto cria uma sensação de segurança no ambiente fortemente inseguro das nossas cidades, que são alvo constante de ataques por pessoas que veem nosso Estado como um mal-entendido histórico e nossa língua e cultura como versões provincianas distorcidas da língua e cultura russas. Utilizar a língua ucraniana é agora um sinal de compreensão mútua. Muitos de nós tentamos usar a língua russa para negociar com os simpatizantes da guerra na Rússia nos primeiros meses de 2022, mas como as tentativas de influenciar a posição deles falharam, a língua agora só evoca traumas. Por isso não fazemos mais, e a língua russa perdeu qualquer significado na Ucrânia, para além da trolagem online.
Esse recém-descoberto senso de unidade entre milhões de falantes de ucraniano criou um fluxo de memes e piadas como esta do início de 2022, sobre tropas russas entrando na zona de exclusão de Chernobyl: “Uma senhora idosa, entre os poucos habitantes locais que restam, viu soldados a cavar trincheiras na zona de uma floresta contaminada com substâncias químicas perigosas e gritou em ucraniano: — Rapazes, o que fazem aí?! Esta é a Floresta Vermelha!”— acreditando que eram soldados ucranianos. “Como? O que quer dizer?”, perguntou um soldado em russo, com uma pronúncia claramente não ucraniana. Quando a mulher percebeu que falava com os invasores, respondeu em russo: “Quero dizer: Cavem, rapazes, cavem!”.
Mesmo as pessoas na Ucrânia, que não falam ucraniano, falam russo com sotaque ucraniano. Pode se reconhecer o “g” suave ucraniano (no inglês, mesmo som do “h”, no português, semelhante ao som do “rr”). Em Donetsk, cidade onde nasci e cresci, ao leste da Ucrânia, usávamos algumas palavras em ucraniano em vez de russo, como buryak para beterraba em vez de svekla (em russo), talvez por ser o ingrediente principal da borshch, a sopa tradicional ucraniana. Naquela região, porém, nem sempre usamos beterraba na borshch. Em suma, tudo se complicou lá.
Minha cidade era predominantemente russófona. Durante toda a minha infância, só conheci a mãe de um colega de turma que veio de outra região, que falava ucraniano. Para mim, era uma língua estranha. Nos anos 1990, após a queda da União Soviética, continuamos a ver televisão russa. O conteúdo era muito mais rico e transmitia programas de televisão interessantes e filmes novos, enquanto a indústria cinematográfica ucraniana estava arruinada. Nos anos 2000, esse mesmo conteúdo tornou-se pouco a pouco um instrumento da nova propaganda nacionalista e chauvinista do Estado russo.
Até pouco tempo atrás, quase tudo o que era ucraniano, especialmente na televisão, continuava a parecer marginal e de segunda categoria. Um novo produto mediático só teria potencial se fosse lançado em russo, para poder chegar a um público mais vasto de falantes de russo em todo o antigo bloco comunista. Esta tendência manteve-se mesmo depois de 2014, quando a Russia atacou as regiões sul e leste da Ucrânia.
Língua dos desabrigados
É uma história longa e complicada que explica porque chegamos a esta situação. As pessoas que habitam o território da atual Ucrânia nunca estiveram à margem dos processos políticos e culturais europeus. Os alicerces da tradição literária ucraniana surgiram no final do século 18 e início do século 19, mesmo período em que a literatura em língua russa foi escrita e publicada pela primeira vez na Rússia. O maior poeta ucraniano, Taras Shevchenko, foi contemporâneo de Alexandr Pushkin, Adam Mickiewicz, Johann Goethe e George Byron, com a grande diferença de que aqueles eram nobres e Shevchenko era escravo de um nobre.
De 1240 até 1991, a (proto) cultura ucraniana não pertencia a nenhum Estado. Até 1945, coexistia numa área dividida por vários impérios e repúblicas. Milagrosamente, durante todos estes séculos, estas diferentes partes mantiveram um diálogo entre si. A onda de repressão no império russo contra a língua ucraniana levou ao deslocamento das atividades de impressão para o território dos Habsburgos; as tentativas de assimilação forçada na Polônia entre 1920–1930 levaram os intelectuais ucranianos do Ocidente a se juntarem ao impulso cultural pós-revolucionário na República Socialista soviética da Ucrânia primitiva. Entretanto, aquilo não acabou bem, pois a maioria dos que mais tarde fizeram parte do chamado Renascimento executado, suicidarem-se ou foram de fato, executados sob o regime repressivo de Stalin, no início dos anos 1930.
Durante os anos soviéticos, o que era ucraniano era classificado como cultura popular local. A designação de alta cultura foi reservada quase exclusivamente para o que fora escrito em russo.
Nos tempos soviéticos era possível obter autorização para não frequentar aulas de ucraniano em escolas onde as crianças aprendiam predominantemente em russo; na minha região, no leste da Ucrânia, a grande maioria das escolas continuava a ensinar em russo, mesmo nos anos 2000. Alguns ucranianos ainda acreditam que a língua ucraniana não é desenvolvida o suficiente para escrever obras-primas culturais ou, por exemplo, textos científicos. Mas a verdade é inversa: as pessoas que afirmam isso não conhecem a língua e, por conseguinte, não podem utilizar todas as suas possibilidades.
Desde 2014, eu e muitas pessoas da minha região que conhecemos muito bem o ucraniano, continuamos a falar russo como forma de protesto, sendo constantemente atacadas e estigmatizadas no nosso próprio Estado apenas por pertencermos a essa região “separatista” e “pró-russa” e falarmos a língua “errada”. Em 2022, todos estes sentimentos tornaram-se irrelevantes. Ao invadir todo o país, o presidente russo Vladimir Putin colocou todos na mesma posição e não nos deixou alternativa. Assim, conseguiu realizar o que todas as gerações anteriores de patriotas ucranianos não conseguiram: “ucranizar” a Ucrânia, em poucos dias ou semanas. O ucraniano, outrora uma “língua de aldeia” provinciana, tornou-se a língua principal dos jovens, bem formados, criativos, social e politicamente ativos e até mesmo abastados, sendo que os que falavam russo eram geralmente pessoas mais velhas, menos formadas, mais pobres e agora marginais.
Em 2022, quase todos habitantes na Ucrânia se deram conta que a língua ucraniana é rica, flexível e sexy. A língua, há muito reprimida, encontrou finalmente a sua casa no país de origem.