É de senso comum que morar em um país estrangeiro durante os anos escolares é uma bênção. O que as pessoas não têm conhecimento é que essa bênção vem acompanhada de uma boa parcela de maldições.
Eu nasci em Tóquio e convivi até meus 6 anos de idade apenas em ambiente totalmente japonês. Nessa época meu pai trabalhava em uma companhia de exportação que foi transferida para Nova York. Ele teve que ir primeiro, logo depois, quando terminou o ano letivo, eu e minha mãe mudamos. Eu ainda guardo um álbum cheio de mensagens de despedida escritas pelos meus colegas de classe me desejando boa sorte, e muitas frases de esperança em rever-me quando eu regressasse.
Os primeiros meses em Nova York foram um pesadelo. Não falava inglês, não entendia uma palavra sequer que meus professores e colegas diziam naquele período de pré-escola. Minha professora, desapontada comigo, me mandava para o corredor por 30 minutos, onde ninguém poderia perder a concentração por causa do meu choro. A única pessoa que me entendia era minha professora japonesa de inglês, que sempre me ajudava quando podia, e uma amiga de descendência japonesa, que, apesar de seu japonês limitado, fazia seu melhor por mim. Minha mãe, preocupada com tudo isso, contratou uma professora particular de inglês. Como eu era muito jovem, não demorou muito para aprender. Durante um ano só ouvindo e não falando nada, e no primeiro dia de aula do primeiro ano do ensino fundamental, de repente comecei a falar e a escrever em inglês.
Os anos seguintes passaram voando. Me tornei mais e mais fluente nas áreas onde eu tinha mais interesse do inglês ao invés do japonês. Fiz amigos americanos e adquiri os mesmos hábitos deles: High School Musical, roupas de marca, festas do pijama. Mas com o passar dos anos, mais e mais crianças japonesas como eu chegaram para estudar na minha escola. Como eu conseguia interagir com elas, eu me sentia americana, mas de “coração japonês”.
No auge do meu momento, o sonho acabou. Meu pai foi transferido de volta para o Japão. Jamais esquecerei a “festa da pizza” que meus amigos fizeram para mim no último dia de aula. Prometi a eles que sempre manteria contato e que nos veríamos um dia. Nessa época eu estava com 10 anos.
De volta ao Japão, eu era agora uma “repatriada”. Eu tive que me familiarizar com atividades como pegar o trem e andar a pé pela cidade. Mas a grande mudança eram as pessoas que eu pensava que conhecia, e que agora estavam diferentes e distantes. Havia uma outra escola de ensino fundamental anexa a minha antiga escola, portanto, eu iria fazer o mesmo caminho de antes. Eu conhecia somente a metade das pessoas da minha pequena classe. Apesar disso, eu achava que não haveria nenhum problema de adaptação.
Eu estava equivocada. No primeiro dia de aula, minha melhor amiga da pré-escola me apresentou ao círculo de amigos dela como “a garota que estava na América.” Ao me preparar para os exames em inglês para admissão do ensino fundamental II, enquanto todos tinham provas em japonês, minha professora me disse para não estudar inglês em sala de aula, porque atrapalhava os alunos. O pior era nas aulas de inglês. Estávamos estudando tipos de peixes, e a professora de inglês, que era japonesa, ao traduzir do inglês para o japonês a palavra “bacalhau” disse a eles que significava “salmão”. Quando eu a corrigi, ela me acusou de “perturbar” a aula, que eu estava atrapalhando os outros alunos na aprendizagem, e me aconselhou a ficar quieta. Daquele dia em diante, parei de interagir nas aulas de inglês, a professora me deu péssimas notas e escreveu no boletim escolar “não interage em sala.” As atitudes dela também me afetaram fora da sala de aula: me tornei uma pessoa desconfiada e com medo de falar inglês em público.
No ensino fundamental II, eu entrei com 11 anos, adiantada para o sistema deles, exatamente por causa da repatriação, então acreditei que as discriminações iriam cessar. Como havia um grupo enorme de repatriados, o ensino fundamental II se transformou num lugar ainda muito mais cruel. As turmas eram compostas de seis salas. Os repatriados foram divididos em duas salas, enquanto os alunos “normais” que haviam sido admitidos por exames em japonês ficavam no restante das classes. Me tornei amiga de metade dos repatriados da minha sala, já que havíamos passado pelas mesmas experiências de discriminação em nosso pré-escolar e compartilhamos dos mesmos sentimentos. Os outros estudantes, além de não gostarem da nossa turma, e nem do fato de conversamos em inglês entre nós, também porque nossos exames de admissão em inglês foram mais fáceis do que os feitos em japonês. Eles se comportavam bem na nossa frente, mas faziam piadinhas pelas nossas costas e criticavam tudo o que fazíamos. Me lembro perfeitamente de um dia quando os “não repatriados” da nossa sala fizeram uma lista de “repatriados” e nos classificaram como mais ou como menos suportável, nos mostraram e riram de nossas reações. Alguns acharam isso tão traumático que apagaram de suas memórias.
Uma coisa positiva de tudo isso no primeiro ano do ensino fundamental II foi que fiz parte de um grupo onde todos confiavam um no outro. Depois de não ter tido com quem compartilhar minhas experiências, naquele momento, tinha amigos que compreendiam pelo que eu havia passado.
O segundo ano do ensino fundamental II foi mais calmo. Mesmo porque muitos já estavam em idade suficiente para reconhecer que fazer julgamentos não resolvia muito. A escola naquele momento já era uma diversão para mim, e também havia feito amigos “não repatriados”. Como as confusões em sala haviam acabado, então comecei a me sentir julgada pela sociedade. Quando eu e minhas amigas conversávamos em inglês em público, os adultos nos encaravam, cochichavam e até nos apontavam. Como nossa maneira de nos vestir era diferente dos outros adolescentes japoneses, as pessoas nos encaravam, olhando para nossos shorts curtos, “crop tops”. Nos restaurantes, após conversarmos entre nós em inglês, fazíamos os pedidos para o garçom em japonês, ele nos olhava como se fôssemos de outro planeta.
Então minha família me informou que mudaríamos novamente de país, dessa vez para a Austrália. Iríamos ficar lá por dois anos devido ao trabalho de meu pai. Eu estava triste por deixar meus amigos, que me entenderam, mas também animada pela possibilidade de ficar longe dos julgamentos da sociedade japonesa e assim seria quem eu realmente queria ser.
Na Austrália fiz amigos que não me julgavam e com eles me sentia bem, não importava com o que quer que fosse. Minha escola e meus colegas me incentivaram a fazer coisas novas e perseguir minhas paixões. Eu acredito que essas coisas me ajudaram a desenvolver um melhor entendimento de quem eu realmente era, o que não havia conseguido no Japão.
Aos poucos comecei a perder contato com o Japão. Mantinha contato com as notícias de lá e com meus amigos, mesmo porque essas coisas faziam parte da minha identidade, e comecei a fazer menos julgamentos das pessoas e olhá-las com olhos menos tendenciosos.
Dois anos passaram depressa. Antes que eu percebesse, era a hora de ir embora. Voltei para o Japão, com mais sabedoria que havia adquirido na Austrália, e pronta para usá-la em minha vida e no retorno a minha escola. Eu esperava que as pessoas de lá houvessem amadurecido e pensassem como eu.
Enquanto muitos dos meus colegas de escola haviam de fato mudado e tinham mais aceitação e confiança em nós “repatriados”, os outros japoneses não, e senti a diferença em maiores proporções já que então eu havia me tornado mais adulta.
E aos 16 anos, quando estava estudando para o exame de História Global (exame que permite escolher qual universidade cursar dentro de temas como Política, Diplomacia e Economia) com uma amiga em uma loja de conveniência. Como estávamos discutindo a Revolução Francesa, um homem mais idoso veio até nós e nos perguntou se éramos japonesas. Eu respondi da maneira mais educada possível que sim. E então nos questionou porque estávamos estudando e conversando em inglês. Perguntamos a ele o que havia de errado. A resposta dele simbolizava a atitude de um típico cidadão japonês perante as coisas não japonesas. “Se vocês não falam japonês”, ele disse. “Vocês não são japonesas. Se vocês estão falando inglês, francês ou qualquer que seja a língua, saiam do meu país. Vão embora, encontrem outro lugar para viverem. Ninguém aqui quer vocês. Vocês não pertencem a nós!” As palavras dele me tomaram de surpresa, nem eu ou minha amiga mostramos qualquer sinal de resposta para uma pessoa irracional, de mente fechada, e como aquele homem tinha chegado àquela conclusão absurda, só de olhar em nosso livro de exames.
Uma atitude parecida aconteceu quando eu e minha amiga estávamos conversando em inglês na estação do metrô, como de costume, e esbarramos em uma senhora idosa. Nós dissemos, “desculpe” em japonês, e então ela retrucou,”Ah, vocês são japonesas? Então falem japonês, suas forasteiras!”
Nos meus últimos dois anos fora do país, era possível que os japoneses não só tenham deixado de mudar. Tudo acabou piorando. Com tantos turistas vindo para o Japão, além de outros fatores, o nacionalismo parece ter se tornado mais forte, particularmente entre os mais velhos.
Agora, contudo, não consigo mais me enxergar senão como uma “repatriada”. Tudo que faço é influenciado pelas minhas experiências morando fora do meu país. No entanto, tenho uma vasta percepção das coisas e entendo que há muitas culturas e opiniões diferentes no mundo. Numa sociedade monocultural como a do Japão, pode ser difícil para meus amigos “não repatriados” entenderem este conceito. Mas o que sei é que posso confiar nos meus amigos “repatriados”. Mesmo que sejamos poucos, somos unidos. A sociedade japonesa talvez nos julgue, mas o que sei é que meus amigos “repatriados” terão sempre meu apoio.