Governo do México usa guerra contra o narcotráfico como pretexto para espionar jornalistas

Infección de malware. Foto de howtostartablogonline.net. Usada bajo licencia CC 2.0

Infecção de malware. Foto de howtostartablogonline.net publicada no Flickr. Usada sob licença CC 2.0

“Vale tudo no amor e na guerra”. Este provérbio talvez seja o principal argumento utilizado pelo governo mexicano para vigiar arbitrariamente seus cidadãos, mediante utilização de software espião ou spyware.

Em meados de junho de 2017, o jornal norte-americano The New York Times publicou reportagem sobre uma investigação realizada pelas organizações Artículo 19, Red en Defensa de los Derechos Digitales (R3D) e SocialTIC, destacando que, desde 2011, pelo menos três agências do Estado mexicano gastaram cerca de US$ 80 milhões com o spyware Pegasus. Este tem sido utilizado para espionar cidadãos, entre eles jornalistas que cobrem assuntos sobre o crime organizado, advogados de direitos humanos e ativistas que combatem a corrupção.

@nytimes publica uma reportagem sobre espionagem a jornalistas e ativistas com o malware Pegasus.

O México está imerso em um conflito armado interno desde que o governo iniciou a guerra contra os cartéis de drogas, no longínquo ano de 2006. Dezenas de milhares de pessoas (incluindo integrantes de grupos armados, do Exército e da população civil) perderam suas vidas devido ao conflito. Muitas estão desaparecidas, dentre elas, 43 estudantes em Iguala (Caso Ayotzinapa). Vários advogados que representam os familiares das vítimas desaparecidas também foram vigiados pelo Pegasus.

O programa tem como objetivo infiltrar-se em dispositivos móveis e colher dados de conversas, imagens compartilhadas, de geolocalização e mesmo obter senhas de acesso ao wifi. Seu funcionamento é descrito no site Pictoline:

#GobiernoEspía: cómo se usó software del gobierno para espiar periodistas, activistas y defensores de derechos en México. Infografía de Pictoline. Usada con permiso.

#Governoespiona: como software exclusivo do governo foi utilizado para espionar jornalistas, ativistas e defensores de direitos no México. Infografia de Pictoline. Publicação autorizada.

Opacidade e vulnerabilidade

Nesse contexto, a aplicação de recursos financeiros na área de inteligência e segurança não é questionada e de difícil apuração. O governo gasta milhões sem prestar contas à sociedade e emprega “armas” para travar uma “guerra” contra a própria sociedade.

O uso do Pegasus, no entanto, não é nenhuma novidade. Desde agosto de 2016, o mesmo The New York Times informou que o dito spyware (desenvolvido pelo consórcio NSO Group) já era utilizado pelo governo do México. Em setembro de 2016, o portal mexicano Vanguardia publicou reportagem sobre a compra desse sistema:

La Procuraduría General de la República en la gestión de Jesús Murillo Karam fue la dependencia que compró el software de espionaje Pegasus, el más sofisticado en el mercado y capaz de escuchar, ver, capturar texto, imagen y contactos de cualquier teléfono inteligente.

A Procuradoria Geral da República, na gestão de Jesús Murillo Karam, fez a compra do software de espionagem Pegasus, o mais sofisticado disponível no mercado, capaz de escutar, ver, capturar texto, imagem e contatos de qualquer smartphone.

Até o momento, as ferramentas à disposição da sociedade para dar transparência às ações do governo têm se mostrado incapazes de conhecer mais detalhes sobre o Pegasus e de defender cidadãos de invasões de privacidade.

Em setembro de 2016, um cidadão solicitou oficialmente à Procuradoria Geral da República que divulgasse informações mais detalhadas sobre a contratação para adquirir ou utilizar o Pegasus. O órgão respondeu que não existe tal informação e que não possui qualquer programa de vigilância cibernética. A afirmação foi legitimada pelo Instituto Nacional de Transparência, Acesso à Informação e Proteção de Dados Pessoais (INAI), responsável por garantir a transparência do Poder Público no México. (O posicionamento do Instituto pode ser consultado aqui.1)

Confirmação da vigilância

Em fevereiro de 2017, a organização R3D divulgou um estudo sobre o caso de espionagem orquestrada pelo governo mexicano a dois ativistas e um pesquisador que apoiavam a implementação de um imposto às bebidas açucaradas, chegando − entre outras − às seguintes conclusões:

La evidencia presentada permite concluir lo siguiente:

  • Las tres víctimas recibieron ataques similares en método y fueron recibidos en fechas en las que su trabajo y activismo a favor de la salud pública, en particular la promoción del impuesto a las bebidas azucaradas, era notorio.
  • El malware de vigilancia Pegasus se comercializa exclusivamente a gobiernos.
  • Existe evidencia que apunta a que al menos la Secretaría de la Defensa Nacional (SEDENA), la Procuraduría General de la República (PGR) y el Centro de Investigación y Seguridad Nacional (CISEN) han adquirido licencias de uso del malware comercializado por NSO Group.

O estudo permite concluir que:

  • As três vítimas sofreram ataques de maneira similar e ficou notório que as datas em que as invasões ocorreram coincidem com o período de atuação e ativismo pela saúde pública, em particular a defesa do imposto de bebidas açucaradas.
  • O malware de vigilância Pegasus só pode ser comercializado para governos.
  • Existe evidência que aponta que pelo menos a Secretaria da Defesa Nacional (Sedena), a Procuradoria Geral da República (PGR) e o Centro de Investigação e Segurança Nacional (Cisen) adquiriram licenças de uso de malware comercializado pelo Grupo NSO.

Sobre os ataques à privacidade, o ativista Vladimir Cortés comentou:

Las acciones de intromisión a la privacidad de los activistas por el derecho a la salud sugieren que su trabajo no es una amenaza al Estado sino a los intereses privados. Demuestra que el gobierno mexicano ejerce total discrecionalidad para intervenir los teléfonos de las personas sin que existan instancias que regulen esta actividad.

As ações de invasão de privacidade dos ativistas que lutam pelo direito à saúde sugerem que sua atuação não representa ameaça ao Estado, senão aos interesses privados. Demonstram que o governo mexicano, de maneira deliberada e arbitrária, grampeia conversas telefônicas de pessoas sem que existam instâncias que regulem essa atividade.

A partir dessas alegações, não é de se estranhar que em maio de 2017 várias organizações da sociedade civil hajam expressado a intenção de abandonar a sociedade ou a colaboração que tinham com o governo como parte da Aliança para o Governo Aberto – iniciativa multinacional que busca promover ações que contribuam para a transparência, prestação de contas e participação cidadã, com o objetivo de fortalecer a governança e combater a corrupção.

A notícia circulou no Twitter de vários usuários, entre eles, Jaime Villasana:

Outra má notícia para @gobrep de @EPN ONGs se retiram da mesa de Governo Aberto.

A decisão de encerrar a parceria foi esclarecida pelas organizações “como consequência de graves indícios de espionagem feita a defensores de direitos humanos e da intensificação das ameaças à liberdade de expressão neste país”. O INAI − organismo governamental que participa da Aliança − contestou que condena a espionagem e respeita a decisão das organizações.

Violência e espionagem

As ameaças à liberdade de expressão não estão unicamente ligadas ao funesto panorama de ameaças e execuções de muitos jornalistas, entre eles Miroslava Breach e Javier Valdéz, que cobriam temas relacionados ao crime organizado – e cujas execuções continuam impunes, sem avanços substanciais na investigação, apesar de várias semanas depois dos crimes. A isso se soma agora o fato de que jornalistas foram espionados pelo governo por meio do Pegasus, entre eles várioda grande mídia como Carmen Aristegui e Carlos Loret de Mola – este último, declarou abertamente em abril de 2017 ter recebido no celular uma mensagem sabidamente utilizada para infectar com malware aparelhos móveis.

Sobre essa situação, o caricaturista Patricio comentou:

O governo de @EPN [Enrique Peña Nieto] espiona os jornalistas exclusivamente quando estão vivos. Depois de assassiná-los, deixa de investigá-los.

Ativistas, comunicadores e cidadãos em geral encontram-se praticamente indefesos ante as invasões de privacidade no México, seja por meio de malware ou spyware utilizado pelo governo, pois a inviolabilidade das comunicações privadas − como em outras latitudes − se converte em letra morta quando o Estado alega estar travando uma guerra, embora nem sempre esteja claro com quais objetivos.

O debate sobre esse tema por parte da sociedade civil pode ser seguido no Twitter na conta #GobiernoEspía.

1 Recurso de Revisão RRA 3762/16.

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