Quando Domingas Mendes deixou sua terra natal em Guiné-Bissau, ela era uma freira seguindo para uma missão no sul do Brasil. Alguns anos depois, a vida religiosa já não parecia a escolha certa e Domingas decidiu buscar formação em Serviço Social.
Durante meses, o tempo dele foi dividido entre horas de trabalho e o curso gratuito que frequentava para se preparar para a prova de vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma das melhores do Brasil, em Porto Alegre. Como muitos candidatos negros e pobres fazem, Domingas também se inscreveu como uma candidata dentro do sistema de cotas.
O sistema brasileiro de cotas do ensino superior, implantado como lei em 2012, reserva 50 porcento das vagas de universidades públicas para estudantes que vem de famílias de baixa-renda e escolas públicas, indígenas e negros.
Domingas passou na prova de vestibular e foi aprovada. Porém, logo depois, ficou sabendo que a universidade não a aceitaria. Como escreveu em um post em seu Facebook:
O Edital e a lei de cotas exige que tem que ser preto e pobre. Sou preta, pobre, trabalhadora e comprovei isso! Outro elemento que quero chamar a atenção é a declaração do MEC sobre meu caso, também em entrevista para a rádio gaúcha. Conforme o Ministério da Educação as Universidades tem autonomia na definição do ingresso de seus estudantes em casos como o meu. Portanto, isso mostra que a alegação da UFRGS se trata de discriminação e segregação, pois não está previsto na lei nacional que escola pública precisa ser brasileira! Isso é uma política excludente da UFRGS para uma lei que se pretende o contrário: incluir e garantir cidadania!
A Rádio Gaúcha, uma emissora de rádio de Porto Alegre, disse ter tido acesso ao documento em que a UFRGS confirma a rejeição de Domingas. Em seu site, a rádio publicou um trecho do texto:
Ocorre que a reserva de vagas de que trata a Lei 12711/12 é destinada a estudantes egressos do sistema público de ensino do Brasil. O já mencionado decreto 7824/12, em seu artigo 2º, parágrafo único, determina que, para os fins a que se destina, consideram-se escolas públicas aquelas de que trata o artigo 19, I da Lei 9394/96. Este dispositivo, por sua vez, estabelece que são instituições públicas de ensino aquelas criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público.
A universidade ainda não se pronunciou publicamente sobre o caso.
Depois que Domingas compartilhou sua história, centenas de pessoas se engajaram em uma campanha pedindo que a universidade autorizasse sua matrícula. No dia 23 de fevereiro, um protesto organizado por estudantes de Serviço Social no campus da universidade reuniu cerca de cem pessoas e fez com que a guineense fosse recebida por um dos vice-reitores da instituição.
O resultado da reunião porém não foi muito animador. Como Domingas contou ao Global Voices, a universidade decidiu manter a posição inicial, aconselhando-a a buscar uma alternativa pela “via judicial”.
Em seu blog, o jornalista Thales Bouchaton escreveu:
… em uma bizarra interpretação da Lei de Cotas, entendeu a instituição por não aceitar o ingresso da estudante porque ela não fez o ensino médio em uma escola do Brasil. Porém, fui dar uma olhada na referida lei e ela não fala em nada disso e sim em “escolas geridas pelo Poder Público”, não especificando se essa escola é brasileira ou não.
E ainda há outra questão na história. Em uma entrevista à TV Negração, publicada no YouTube, Domingas lembrou que a universidade a isentou de pagar a taxa de inscrição para a prova, algo que permitido apenas à estudantes de escolas públicas. Além disso, depois de oito anos vivendo no Brasil, Domingas possui visto permanente. De acordo com as leis brasileiras, com exceção de direitos políticos, como direito ao voto, o visto concede a imigrantes os mesmos direitos de acesso à saúde e educação pública que os de cidadãos brasileiros.
Domingas também tocou em outra questão sensível sobre imigração africana no Brasil, em seu post:
Para eu ser trabalhadora para vender minha força de trabalho a preço barato é permitido. Todavia, eu qualificar minha força de trabalho e, assim, poder ter uma vida um
O número de imigrantes africanos no Brasil cresceu 30 vezes na última década. Ainda que muitos consigam encontrar trabalho e enviar dinheiro para as famílias em casa, é claro que a sociedade tem um lugar reservado para eles. E, como a história de Domingas mostra, esse lugar raramente é uma cadeira na universidade.
Agora, Domingas está seguindo o conselho da instituição e busca uma solução legal para o caso com ajuda de um defensor público. Na entrevista em vídeo, ela diz que apresentou todos os requerimentos exigidos pela UFRGS para a matrícula de estudantes de cotas, e afirma:
Eu acredito que não estão aceitando minha matrícula por racismo, xenofobia, preconceito e tratando o princípio da lei de forma contraditória mesmo. Porque uma lei que é para incluir, agora está me excluindo.
Os estudantes que organizaram a manifestação endossam essa posição. Mas a pergunta de por que uma universidade brasileira não aceita uma estudante de Guiné-Bissau ainda está por ser respondida.
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