Às vésperas da final da Copa do Mundo no Brasil, 23 ativistas brasileiros tiveram suas vidas viradas de cabeça para baixo com mandatos de prisão emitidos pela Polícia Civil a pedido da Justiça do Rio de Janeiro. Três ativistas chegaram a pedir asilo político em outros países. Mas o assunto debatido por milhões de pessoas nas últimas semanas parece ter tido como base disputas amorosas e ciúmes dentro dos grupos de manifestantes – além de tentativas de perseguir movimentos sociais com apoio de veículos de imprensa diversos. Vários ativistas e mesmo de grupos de advogados acusaram a cobertura da maior rede de comunicação do país, a Rede Globo, de manipulação, censura e mentira.
O historiador e jornalista Marco Morel escreveu:
O que o episódio traz de novidade na conjuntura não é a repressão de caráter social contra os de baixo na hierarquia social, que é traço estrutural na sociedade brasileira (ver o cotidiano das favelas), mas a tentativa de se punir e refrear as liberdades de expressão e manifestação, orquestrada por governos que se afirmam democráticos e, aparentemente, adeptos das regras do liberalismo formal. Mas quando a ordem é ameaçada ou somente incomodada…
Na tarde do dia 24 de julho ativistas e mídia tiveram acesso ao processo contra os 23 ativistas, que até então corria em segredo de justiça. As provas reunidas pela polícia nas 8 mil páginas do inquérito mais pareciam roteiro de novela. O acadêmico e ativista Bruno Cava comentou:
O noticiário hoje sobre o inquérito do ativismo carioca lembra aqueles tabloides expostos nas bancas de jornais em que os episódios da novela são relatados como notícias reais. O objetivo é levantar uma cortina de fumaça, fazendo-nos discutir heróis, vilões, golpes sórdidos, facadas nas costas e triângulos amorosos.
Para a advogada Eloisa Samy, uma das ativistas que buscou asilo no Consulado do Uruguai, o inquérito se baseia em acusações “pífias“. Antes do processo ter saído do segredo de justiça, o historiador Sérgio Martins escreveu:
Se o inquérito em questão não prima pelo zelo à ordem legal, é porque, no fundo, não é este seu objetivo. Mais valor que a consistência jurídica tem a eficácia moral. O que é “fato” para o jornal e “evidência” para o Ministério Público (e para o juiz que acolheu em duas horas o processo de duas mil páginas), não são reconstruções do ocorrido baseadas em investigações rigorosas, mas construções ficcionais feitas sob medida para o gosto moralista de um leitor conservador informalmente alçado a júri popular. Em suma, o que está correndo em sigilo de justiça é só uma parte do inquérito. Uma outra, talvez a mais importante, vem correndo a olhos vistos, na página dos jornais, desde junho do ano passado.
Com a abertura do acesso ao inquérito, e a libertação dos últimos três ativistas que seguiam presos – Elisa Quadros, a Sininho, Camila Jourdan e Igor D'Icarahy – veio também a descoberta de uma informação crucial para análise dos fatos: o processo se baseou na denúncia de três testemunhas-chave e em supostas traições amorosas“.
Romance, traições e machismo no roteiro da Polícia
Para o professor Idelber Avelar, o processo foi movido por preconceito e na tentativa de criminalizar ativistas e protestos:
Depois de passar alguns dias lendo matérias, “denúncias”, depoimentos e documentos relacionados às prisões arbitrárias de manifestantes no Rio de Janeiro, eu não tenho mais dúvidas: no coração do processo de criminalização dos protestos políticos, estão o machismo, a homofobia e uma profunda, visceral, violenta misoginia.
Inicialmente a imprensa divulgou que todo o processo se baseava apenas no testemunho de Felipe Braz, ex-membro da FIP, Frente Independente Popular. O perfil do Coletivo Mariachi descreveu o perfil de Braz:
Chegou a agredir fisicamente uma companheira no Ocupa Cabral, de onde foi expulso pelos ativistas e motivo pelo qual foi “escrachado” pelas feministas, começando assim um histórico de desavenças com os manifestantes
No mesmo dia em que o processo se tornou público, Felipe deu uma entrevista ao jornal O Dia, do Rio de Janeiro, se vangloriando de ter denunciado a ativista Sininho e causando espanto pelo cinismo em muitos ativistas..
O professor carioca Henrique Antoun comentou:
Polícia, promotor, juiz, Globo e quase toda a impren$a massacram 23 pessoas com base no depoimento de um canalha inclassificável, capaz de dizer as coisas mais escabrosas e rir sadicamente do sofrimento e da humilhação alheias.
Segunda Testemunha: Anne Josephine Louise Marie Rosencrantz foi quem denunciou que Sininho queria incendiar a câmara do Rio. Em seu perfil do Google+ é possível vê-la ofendendo a ativista Sininho. Rosencrantz é ex-namorada de Game Over que por um tempo namorou Sininho e que também tinha sido preso um dia antes da final da Copa do Mundo. Sininho teria “roubado” o namorado de Ronsencratz que, então, a teria denunciado para a polícia.
Terceira Testemunha: Cleyton “Coringa” Silbernagel um rapaz aparentemente com transtorno mental e que é candidato a deputado estadual pelo PSB, declarou seu amor por Sininho em vídeos postados no Youtube e afirmou se arrepender de tê-la denunciado. O Coletivo Mariachi, mais uma vez, descreveu seu perfil como o de um rapaz com “problemas mentais, tem mais de 10 perfis fakes no Facebook” além de ter o costume de posar para fotos ao lado de figuras políticas controversas. Cleyton “se autodenomina um “ex Black Bloc” e uma das suas promessas na candidatura de Deputado Estadual (isso é verdade) nas próximas eleições é instituir o feriado “Dia do Black Bloc”.”.
Grampos Telefônicos e perseguição a movimentos sociais
Baseado nesses três depoimentos e em uma investigação que já levava meses, com direito a telefones grampeados – inclusive telefones de advogados e do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos – a polícia e a justiça do Rio – com amplo apoio da mídia, no que a própria Sininho chamou de “manipulação nojenta” – tentaram incriminar 23 ativistas e os levaram à prisão.
O Coletivo Rio na Rua denunciou em seu perfil do Facebook que ao menos 73 grupos organizados, movimentos sociais e coletivos foram citados nominalmente pelo inquérito policial e constam do processo contra os 23 ativistas e considerados “permeáveis a ideias extremistas e a manipulações políticas, que são cooptados e instrumentalizados para agir como forças de pressão que transitam pela esfera da violência deliberada”.
O juiz responsável por libertar os 23 presos, Siro Darlan, criticou em seu Facebook a ” cultura do aprisionamento que levou o Brasil ao terceiro lugar do encarceramento mundial” e também a mídia:
No caso concreto a denúncia do Ministério Público, embora as mídias interessadas em enganar seus leitores, tenham noticiado incêndios, lesões corporais, danos ao patrimônio público, porte de explosivos, dentre outros, é exclusivamente o delito de quadrilha armada – artigo 288, parágrafo único do Código Penal, cuja pena pode variar entre um e três anos de reclusão, podendo ser dobrada.
Ora, ainda que os acusados venham a ser condenados, na pior das hipóteses a pena não ultrapassará dois anos por serem réus primários e de bons antecedentes. Sabe-se que pela nossa legislação a condenação até quatro anos pode e deve ser substituída por penas alternativas em liberdade.
Assim sendo o que justifica manter presas pessoas que ainda que condenados, permanecerão em liberdade?
O ativista Marcelo Castañeda chamou um boicote de “todos os veículos de comunicação que fizeram papel de juiz nesta trama novelesca instaurada pelo poder constituído contra o direito de manifestação no Rio de Janeiro”, ao passo que o professor Pablo Ortellado resumiu o processo:
Vinte e três pessoas presas com base em fofocas, conversas entre adolescentes e textos de sites de extrema direita.
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