50 anos da ditadura no Brasil: As mãos e olhos franceses na tortura brasileira

A versão original deste artigo, escrito por Anne Vigna, foi publicada pela Agência Pública no 50º aniversário do golpe militar no Brasil, 1 de abril de 2014. O artigo sofreu edições para publicação no Global Voices. Leia a primeira parte.

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Depois de estreitarem relações através dos ensinamentos militares, Brasil e França passaram a trabalhar em cooperação total. De acordo com documentos dos Arquivos do Quai d’Orsay, ministério dos Assuntos Exteriores francês, oficiais ligados ao ex-primeiro ministro Georges Pompidou, se comunicavam com os militares brasileiros desde 1968. O objetivo principal era monitorar os exilados em Paris e na Argélia, destino tomado por muitos, inclusive pelo governador de cassado de Pernambuco, Miguel Arraes

Prisão do governador de Pernambuco, Miguel Arraes, um dos dez mil brasileiros exilados na França. Foto: Blog Gilberto Lima

Prisão do governador de Pernambuco, Miguel Arraes, um dos dez mil brasileiros exilados na França. Foto: Blog Gilberto Lima

Em novembro de 1969, com o surgimento da Frente Brasileira de Informações (FBI) em Paris, formada por exilados que denunciavam os crimes da ditadura brasileira, o intercâmbio dos serviços se torna imprescindível. No livro “O exílio brasileiro na França”, a historiadora francesa Maud Chirio, estima em 10 mil o número de exilados brasileiros na França durante a ditadura e observa: “a DST (divisão de serviços secretos no interior) ocupou um papel central no monitoramento dos brasileiros no exílio”.

Peças francesas no xadrez brasileiro

Os homens que ocuparam cargo de adidos militares franceses no Brasil entre 1969 e 1975 – Yves Boulnois, Jean-Louis Guillot e o próprio Aussaresses – eram especialistas renomados em guerra anti-subversiva e já haviam ministrado cursos para militares sul americanos na Argentina (Boulnois), na França (Guillot) e nos Estados Unidos (Aussaresses). No país, participaram de reuniões do Estado Maior brasileiro, acompanharam e informaram os aspectos militares da luta anti-guerrilha e, no mínimo, opinaram sobre a estrutura e operações da repressão junto a autoridades brasileiras, como concluiu Rodrigo Nabuco depois de analisar mais de 2 mil documentos nos arquivos franceses do Ministério de Defesa e de Relações Exteriores.

A documentação acessível nos arquivos franceses não permite levantar hipóteses sobre o papel de conselheiro exercido pelos adidos militares durante os anos de chumbo. Por enquanto, não podemos deixar de sublinhar a semelhança chocante entre a contra-guerrilha em São Paulo e Alger. Por outro lado, os documentos comprovam o aumento significativo da cooperação militar entre os anos 1969-1975. Além disso, à medida que o modelo da batalha de Alger se estende pelo país, o Estado Maior do Exército Brasileiro apela aos conselheiros franceses para formar os novos quadros do dispositivo de defesa interior, o Destacamento de Operações e Informações (DOI).

Operação Bandeirantes: a doutrina francesa na prática

Em junho de 1970, já com a Operação Bandeirantes (Oban) em andamento em São Paulo, inaugurando os chamados DOI-Codi em todo o país, “a preparação de todas as unidades do exército na luta contra a subversão está bem avançada e dando bons resultados”. O adido francês, Yves Boulnois, se aproxima ainda mais dos militares do Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) do Rio de Janeiro depois de uma suposta ameaça de sequestro, por parte da ALN, ao embaixador francês. A essa altura, a guerrilha urbana já havia sequestrado os embaixadores dos Estados Unidos e da Alemanha, trocados por prisioneiros; em dezembro seria a vez do embaixador suíço.

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Sede do DOI-Codi, um dos centros de tortura da ditadura militar, em São Paulo. Foto:Clandestino Edgard

Como em Argel, a coleta de informações e as ações da Oban, que se repetem nos DOI-Codi, “se dão de maneira clandestina”, através de incursões noturnas, desaparecimentos, operações de vigilância, torturas em centros clandestinos. Além disso, como destaca o historiador Rodrigo Nabuco, “a Operação Bandeirantes é a primeira experiência da estrutura de coleta de informações e de ações de comando, concebida segundo a doutrina francesa”.
Há outras semelhanças aterradoras. Em seu primeiro livro [fr], Aussaresses confessa que dois heróis nacionais da Argélia – Mohamed Larbi Ben M’hidi [en] e Ali Boumendjel [en] – foram torturados e executados, embora o comando francês tenha informado suas mortes como suicídios. O primeiro deles por enforcamento, de maneira similar à utilizada pelo DOI-Codi de São Paulo, em 1975, para encobrir o assassinato do jornalista Vladimir Herzog ; e o segundo atirado pela janela. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, no Brasil houve pelo menos 44 casos de “suicídios” para encobrir execuções e mortes sob torturas durante a ditadura militar.

No documentário de “Esquadrão da morte: a escola francesa” [es], vários militares argentinos e chilenos contam que os franceses lhes ensinaram os mesmos métodos. Entre os entrevistados está Manuel Contreras, chefe da abominável DINA, a polícia militar de Pinochet. Ressalvando não ter conhecido Aussaresses pessoalmente, Contreras diz que “ele treinou muitos chilenos no Brasil”. “Eu mandava gente a cada dois meses para a escola de Manaus”, afirma.

Rodrigo Nabuco lembra:

Essa escola vai se converter no epicentro do ensino da luta contra a subversão para as forças especiais na América Latina (…). Aussaresses disse publicamente que deu seus cursos ali mas é muito provável que Boulnois e Guillot tenham feito o mesmo. Boulnois escreveu vários manuais sobre a guerra revolucionária e antes de chegar ao Brasil, quando era adido em Buenos Aires, foi professor na Escola de Guerra da Argentina. Guillot ensinava na IHEDN (Instituto de Altos Estudos de Defesa Nacional), uma das maiores escolas de guerra francesa.

Para quem já estava acostumado com o papel da macabra cooperação militar entre países, o plano de uma escola do terror em todo o sul da América do Sul era o passo natural.

E chegaram os dias da Operação Condor

Leia a última parte desta série.

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