Este artigo é parte da cobertura especial 20.11 – Dia da Consciência Negra.
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Um levantamento histórico sobre a presença de personagens negros nas histórias em quadrinhos brasileiras foi realizado pelo professor Nobuyoshi Chinen, do Observatório de Quadrinhos da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP).
“A representação não é, ainda, ideal”, afirmou o investigador numa entrevista ao canal de notícias da USP. Sua tese de doutorado, intitulada “O papel do negro e o negro no papel: representação e representatividade dos afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros”, abordou, além da presença de personagens negros, sua representação visual nas HQs, abrindo espaço para análises sobre estereótipos e preconceitos.
Nessa entrevista para o Global Voices em Português, o Professor Nobu, como assina seus e-mails, comenta um pouco sobre a sua pesquisa, a afirmação das identidades, a questão da diversidade regional no Brasil e nos quadrinhos brasileiros, e a relação entre representações virtuais e anseios da sociedade.
Global Voices (GV): O senhor percebe uma maior articulação de autores negros capaz de influenciar a presença negra no mundo dos quadrinhos? É realmente o caso de se esperar que mais autores negros alterem o (des)equilíbrio dessa balança?
Nobuyoshi Chinen (NC): Curiosamente, no decorrer da minha pesquisa tive dificuldade em encontrar ou identificar autores negros de quadrinhos. Alguns personagens menos famosos, de autores também pouco conhecidos, não consegui obter muitas informações. Pode até ser que vários dos artistas que citei sejam pretos ou pardos, usando a terminologia do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], mas não encontrei dados referentes a isso.
Dos que sei que são negros e estão engajados em valorizar os personagens afro-brasileiros ou denunciar o racismo, destaco os trabalhos de Mauricio Pestana e de Marcelo D’Salete. Ambos com trabalhos muito interessantes, não sei se a ponto de exercer essa influência que você cita, mas que tem tido boa repercussão. Obviamente, o fato de um autor ser negro e se identificar com temas sensíveis como a questão das cotas, o preconceito, a desigualdade faz com que ele retrate esses temas com mais propriedade ao abordá-los em suas HQs, o que não significa que alguém que não seja afrodescendente não seja capaz de fazê-lo com talento, sensibilidade e respeito.
GV: O aumento da participação de outros cantos do país, incluindo autores de outras regiões e com outras visões de mundo, tem contribuído para aumentar a diversidade [entendida de maneira abrangente] dos quadrinhos nacionais?
NC: Eu penso que, na verdade, estamos é perdendo essa diversidade geográfica. Os temas estão ficando mais universais e mais focados na realidade urbana. A regionalidade que existia, por exemplo, nas histórias em quadrinhos de terror, gênero bastante comum até os anos 1990, foi se diluindo. As referências a superstições ou seres sobrenaturais que enriqueciam o folclore local abriu espaço para outro tipo de narrativa. O que ocorre atualmente é uma diversidade temática maior. Antes havia quadrinhos de terror, de aventura, de ficção científica, entre vários outros. Hoje, a esses somam-se os quadrinhos femininos e feministas, quadrinhos gay, quadrinhos autobiográficos etc. Eles trazem uma visão particularizada do mundo, mas não os valores de uma região, mas de um segmento da sociedade.
GV: Vivemos um tempo de afirmação das identidades. Há uma mudança perceptível online? E, se ela existe, essa mudança consegue ultrapassar o mundo virtual e firmar-se nas ruas também?
NC: Não sou especialista em comunicação online e considero-me um usuário apenas mediano das redes sociais, [mas] a impressão que tenho é justamente o contrário da sua pergunta: o virtual apenas reflete o que o mundo real está ansiando.
A afirmação das identidades foi um dos motivos pelos quais a maneira de representar os negros nos quadrinhos passou por uma significativa mudança. Os afrodescendentes e a sociedade como um todo já não toleravam mais o estereótipo antigo que acabou sendo substituído por uma maneira menos preconceituosa. É claro que os meios de comunicação (digitais ou não) ajudam a propagar esse modelo mais contemporâneo, num processo que se autoalimenta, mas se o público não for receptivo ou não houver uma predisposição para a mudança, o mundo virtual não tem a capacidade de alterar o mundo de verdade.
GV: Como esse movimento afeta o futuro dos quadrinhos brasileiros, se é que afeta? O que sua pesquisa pôde constatar?
NC: O aumento de temas amplia o leque de possibilidades tanto para autores quanto para leitores. Na minha percepção, nunca se publicou tantos títulos de autores nacionais como nos últimos anos e parte desse fenômeno se deve à essa variedade de visões. Ressalto, porém, que a maioria das obras autorais é lançada para venda em livrarias, em versões mais bem produzidas e mais caras do que os gibis de banca, o que torna tais publicações praticamente inacessíveis ao grande público.
No caso específico do meu trabalho, há um fator adicional que é a lei 10.639/3 que torna obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira em escolas de ensino fundamental ao médio. Há, portanto, um incentivo institucional para autores que se interessem pelo tema, uma vez que os quadrinhos são excelentes instrumentos de apoio didático. Alguns dos trabalhos que analisei, como o excelente AfroHQ de Amaro Braga, Danielle Jaimes e Roberta Cirne, foram publicados com o objetivo explícito de atender à demanda da lei 10.639/3. Os casos que citei apontam alguns caminhos, mas afirmar que irão afetar, de alguma forma, o futuro dos quadrinhos brasileiros seria precipitado ou otimista demais.
Este artigo é parte da cobertura especial 20.11 – Dia da Consciência Negra.
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