Procurando desvendar a rota das Bicicletadas brasileiras, fomos conversar com dois dos mobilizadores da Bicicletada Massa Crítica de Salvador da Bahia, Roque Júnior e Rosa Ribeiro. Eis a segunda parte da entrevista, em que ficamos a conhecer um pouco mais das políticas por trás da mobilidade urbana naquela cidade.
GV: Como anda esse diálogo entre o lobby empresarial e o lobby do cidadão – o que também é chamado de ativismo – nessa questão de mobilidade urbana:
RR: Dentro da municipalidade de Salvador, a gente tem até alguns vereadores com alguma simpatia e a gente conseguiu aprovar, há um ou dois anos atrás, a lei de mobilidade por bicicleta em Salvador. Mas, por mais que exista essa simpatia essas coisas não saem do papel. (…) No âmbito do executivo, a gente tem o Cidade Bicicleta, que foi o programa que desenvolveu – e chegou a um estudo até bastante detalhado para – um sistema de mobilidade cicloviária para Salvador.
Ele sai dessa ideia de ter a bicicleta como lazer e das ciclovias restritas às áreas da orla ou parques e passa, pelo menos em projeto, [a articular] a interligação de bairros, indo desde as periferias até o centro da cidade. Você só pode pensar na bicicleta como meio de transporte se você de fato pensa em um sistema que possa dar uma coerência para esse deslocamento. Se você liga nenhum lugar a lugar algum, claro que ninguém vai utilizar. (…) Agora essa é uma instância do Governo Estadual. Mas a questão é a seguinte, o Estado só pode intervir com anuência da Prefeitura. Apesar de ter um projeto bastante interessante, não vi nenhum interesse político por parte de Jacques Wagner [Governador da Bahia] de colocar isso em prática e também não existe um acordo assinado entre Prefeitura e Governo do Estado.
Quando a imprensa mundial vier cobrir a Copa , vai dizer que Salvador tem uma ciclovia. O que você tem em jogo aí, e o que, às vezes, mobiliza o Estado é a questão da visibilidade, é a construção de uma imagem de cidade que muitas vezes é uma imagem falsa. (…) Uma das grandes preocupações das eleições para prefeituras no Brasil inteiro, foi essa questão de saturação das cidades, dos engarrafamentos, da baixa qualidade urbana, então, a questão da mobilidade urbana é uma questão chave hoje em dia. Mas ao mesmo tempo, a gente vê o Governo Federal dando todo o apoio para que mais e mais carros sejam descarregados, fabricados e vendidos em todas as cidades brasileiras. Só para ter um exemplo, nos 10 anos do Governo Lula e em um pedaço do Governo Dilma, na cidade de Salvador, a gente teve uma duplicação da frota da cidade.
Vídeo publicitário do Governo do Estado Bahia lançado em 2010
GV: Até que ponto, o carro continua a ser um símbolo de status e ascensão social? Como compartilhar o espaço público?
RR: Há 7 anos atrás eu não tinha muita esperança que essa transformação dos espaços da cidade, da malha urbana, pudesse ser realizada, por falta de interesse político da sociedade em geral. Porquê? Isso necessariamente vai demandar uma restrição do uso do carro. Esse tipo de transformação no Brasil, não está apenas na ordem físico-espacial, mas toca em uma ordem social, da estrutura social.
Há 3 anos atrás, quando a classe média passou a andar de bicicleta, esses possíveis proprietários de carro que estão optando por tê-la como meio de transporte, pensei: “será que essas coisas podem mudar?” Porque existe um discurso muito forte em pró da bicicleta. A bicicleta estava ligada a uma classe estigmatizada de população de baixa renda e a gente vê nascendo um discurso novo da bicicleta que vai fazer frente ao do carro como objeto de status social. A bicicleta está ligada a um modo de vida contemporâneo mais interessante, até pela questão da sustentabilidade e por um pensamento de cidade e de relação social que não posso te descrever porque é muito recente… Agora só uma advertência. A questão não é a posse, a pessoa ter. É a pessoa precisar desse veículo para se deslocar na cidade. Essa necessidade. A utilização que a gente tem no Brasil do automóvel como um veiculo de transporte de massa é absolutamente louco.
Agora o que eu estava falando de vontade política por trás pra fazer algum tipo de mudança, (…) o pessoal de São Paulo fez todos os candidatos pedalarem e conseguiram fazer com que eles assinassem uma carta se comprometendo com esse modelo da bicicleta como meio de transporte. Acho que talvez as cidades que tenham movimentos sociais que estejam fazendo a diferença hoje em relação a isso tenham sido as cidades de São Paulo e Curitiba. (…) Mas você tem uma conjuntura muito favorável que é a construção da cidade mais midiática do Brasil que é o Rio de Janeiro que vai ser sede tanto dos jogo da Copa como da Olimpíada que faz com que esse interesse pela bicicleta, ele de fato ocorra em uma transformação urbana. Hoje, o Rio é a cidade que tem a maior malha cicloviária do Brasil.
GV: Muitas pessoas, em geral, afirmam que não usam a bicicleta como meio de transporte devido a falta de segurança, violência (assaltos ou acidentes de trânsito). Como reverter isso?
RJ: A primeira coisa é fazer uma distinção entre a sensação de segurança e a insegurança real. Me parece que existe uma sensação generalizada de insegurança que isso contagia as pessoas dentro do espaço público. E esse espaço público que a gente vive que é hierarquizado, onde dentro da hierarquia das ruas, o carro está em primeiro lugar e o pedestre em último e a bicicleta esta em um meio termo, perto do pedestre. Você percebe que realmente as pessoas sacam esse desrespeito. Ou elas vivenciam esse desrespeito, ou elas visualizam esse despeito ou ela desrespeitam, entende? Então, eu acredito que isso se transforma em uma sensação generalizada, de você observar as situações e de você dizer “pô, eu não quero passar por isso, ou vivenciar ou imaginar o que vai passar”. Outra coisa é o medo generalizado, independente do trânsito da ocupação do espaço público. Existe essa coisa de estar no espaço público trazer uma série de possibilidades que estão longe da segurança. Então existe esse medo do conflito do trânsito e o outro medo é de assalto, abordagens.
GV: E vocês veem uma forma de reverter isso? Alguma alternativa?
RR: Eu não sei de reversão. Mas eu acredito que faz a diferença ter uma infraestrutura urbana dedicada ao ciclista e que de fato lhe der uma segurança, em um sistema coerente que você possa circular pela cidade inteira. Muita gente diz ”ah não precisa, precisa só de educação, precisa aprender a compartilhar.” Mas a infraestrutura atrai pessoas que nunca teriam essa coragem, essa malícia essa atenção, essa presença de espírito que é necessária para se andar no trânsito, muita pessoas dizem que a ciclovia não é para quem já está andando… Não é para o esportista. É para a vovó, para a criança para um público muito mais amplo que poderia estar de fato se deslocando e não acredita no seu potencial físico de fazer esses deslocamentos, mas logo que começa a experimentar vê que é muito fácil. As pessoas são muito mais fortes do que elas pensam.