Habitando há séculos o território de Marãiwatsédé, no norte do estado do Mato Grosso, indígenas da etnia Xavante vem enfrentando a ocupação e ameaças por parte de fazendeiros que tentam expulsá-los de suas terras. Há 14 anos homologada, encontra-se invadida em quase sua totalidade por latifundiários e posseiros. No passado dia 6 de dezembro, após acórdão do Supremo Tribunal Federal anunciado a 17 de outubro, a Justiça em Mato Grosso deu início à entrega das intimações para a retirada dos ocupantes ilegais das terras ancestrais.
O jornalista Felipe Milanez, especializado em questões indígenas, escreveu:
O território xavante, chamado Marãiwatséde, está no centro de um eixo de escoamento de soja e gado, onde o governo federal quer asfalta a BR-158. O traçado ficaria fora da reserva, e da Ferrovia Centro-Oeste, que liga as cidades de Campinorte (GO) e Lucas do Rio Verde (MT).
A disputa por este território expõe a dificuldade do governo em controlar os conflitos fundiários na Amazônia. Os pequenos posseiros, tradicionais inimigos dos índios na região, deram lugares aos grandes ruralistas – que se negam a deixar o território. A pressão externa tem provocado divisões internas dos Xavantes, que colocam em risco a vida das principais lideranças.
Ainda segundo Milanez, os problemas começaram em 1966, com a expulsão dos índios da região que, transportados em aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) para um outro território Xavante a 400km de distância, foram vítimas de uma epidemia de sarampo que matou ao menos 150 índios, forçando o espalhamento da comunidade por outros territórios indígenas, em uma espécie de “exílio interno no país”. Com a posterior chegada de Ariosto da Riva, um empresário paulista que comprou o território de Marãiwatsédé, a região passa a ser conhecida como Suiá-Missu, um latifúndio com 1,8 milhão de hectares. A terra passou então pelas mãos de diversas empresas até a Eco-92, no Rio de Janeiro, quando a empresa italiana que então detinha posse da terra – a Agip Petrolli – decidiu devolver a terra aos índios.
Como se vê, a terra foi devolvida para ser invadida por fazendeiros e posseiros que, hoje, estão sendo expulsos por decisão judicial favorável aos indígenas. Sobre este processo, iniciado a 10 de dezembro, informa o Greenpeace:
Este é um momento crucial para a desintrusão da terra dos Xavante, processo liderado pela Funai (Fundação Nacional do Índio) e que conta com respaldo de forças policiais.
A desintrusão dos posseiros invasores não vem, porém, de forma pacífica. Bloqueios de estrada foram feitos por posseiros e há ameaça de violência, como tuitou a jornalista Andreia Fanzeres (@Andreiafanzeres):
Jornais de MT noticiam hj que invasores de #maraiwatsede bloquearam BR 158 e só vão sair “qdo a Justiça suspender a decisão de retirá-los”
A ONG REpórter Brasil escreveu um longo relatório no qual resume a situação atual, indicando que “alguns grupos decidiram não cumprir a decisão judicial e têm procurado desestabilizar o processo forçando conflitos com as tropas”, e destaca o que aconteceu nos primeiros dias da desinstrusão, em que “a Força Nacional recuou disparando balas de borracha e bombas de gás”:
Os manifestantes apareceram na Fazenda Jordão, onde a operação teve início, no momento em que as forças de segurança realizavam as primeiras abordagens. Segundo a listagem de propriedades do governo, a propriedade onde a confusão aconteceu pertence a Antonio Mamed Jordão, ex-vice-prefeito de Alto Boa Vista, que detém uma das maiores áreas invadidas dentro da Terra Indígena, um latifúndio com mais de 6 mil hectares. Em 2008, Jordão declarou patrimônio de R$ 4,5 milhões. Além dele, outros políticos donos de extensas porções da terra indígena são, ainda de acordo com as listas oficiais do governo, Mohmad Khalil Zaher, vereador em Rondonópolis (MT), Sebastião Ferreira Prado, Sebastião Ferreira Mendes, entre outros. Os latifundiários, representados pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), reclamam da desintrusão e chegam a questionar se as terras são mesmo indígenas (leia nota divulgada nesta terça-feira, 11).
Já durante a primeira tentativa de desocupação em 10 de dezembro, a Força Nacional entrou em confronto com agricultores, deixando vários feridos.
O bispo emérito de São Félix do Araguaia, o catalão Dom Pere Casaldàliga (conhecido como Pedro Casaldáliga), de 84 anos e sofrendo de Parkinson, foi ameaçado de morte pelo apoio que dá aos indígenas e foi forçado a ser evacuado de sua casa pela Polícia Federal a fim de garantir sua segurança. As notícias sobre as ameaças ao bispo foram largamente noticiadas pela mídia espanhola [es] e catalã [cat], encontrando, em geral, silêncio da mídia brasileira.
O jornalista Altamiro Borges explicou:
Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), um grupo de jagunços anunciou abertamente que Dom Casaldáliga “era o problema” da tensa região e que “faria uma visita para ele”. A própria Polícia Federal recomendou a imediata retirada do religioso da cidade devido à vulnerabilidade da humilde residência em que ele vivia há muitos anos. A PF alegou temer por sua segurança, já que a casa nem sequer possui muros e o bispo emérito com a sua saúde debilitada, em decorrência de sofrer do “mal de Parkinson”.
E o jornalista continuou, explicando que Casaldàliga tem longo histórico de resistência à Ditadura brasileira (1964-1985) e de apoio a grupos indígenas ameaçados e movimentos sem terra e enfrenta mais uma vez o ódio do poderosos com sua luta e coragem:
Ele sempre esteve ligado às lutas das camadas mais carentes da sociedade. Com a guinada conservadora no Vaticano a partir dos anos 1990, o bispo emérito sofreu forte pressão da cúpula da Igreja Católica. Em 2005, ele se aposentou, mas continuou residindo em São Félix do Araguaia e participando dos bons combates na região. Dedicava-se, especialmente, à defesa das comunidades indígenas, perseguidas pelos latifundiários.
Várias organizações lançaram uma nota em solidariedade a Casaldàliga.
A Terra Indígena de Marãiwatsédé foi homologada em 1998 por decreto presidencial e, desde então, diversas instâncias da justiça tem dado ganho de causa aos indígenas que, porém, não são respeitados. Cerca de 800 xavantes ocupam [en] 10% do território. Os demais 90% encontram-se ocupados por latifundiários e posseiros.
Em tom de revolta, o jornalista Felipe Milanez (@Felipedjeguaka) tuitou:
Invadem terra indigena, desmatam a Amazonia, ameaçam de morte um Bispo de 84 anos, fazendas com milhares de ha, descumprem ordem judicial!
Os Xavantes de Marãiwatsédé publicaram uma Carta Aberta, assinada pelo cacique Damião Paridzane, na qual explicam sua situação e pedem respeito (e publicamos trechos) :
Nesse território, os ancestrais, nossos bisavós viviam em cima da terra. Esse território é origem do povo de Marãiwatsédé. Nessa terra amada foi criado o povo de Marãiwatsédé.
Agora a desintrusão já começou. Os anciões esperaram muito tempo para tirar os não-índios da terra. Sofreram muito. A vida inteira sofrendo, esperando tirar os fazendeiros grandes.
Quem ocupava a terra eram nossos pais, nossos avós, nossos bisavós, que nasceram aqui, cresceram aqui, fizeram festa para adolescente. Lutaram muito, faziam ritual dentro do território de Marãiwatsédé. Nem fazendeiro e nem posseiro viviam aqui antes de 1960.Quem destruiu, foi o índio ou foi o branco? A gente sabe mesmo, foi o branco que destruiu a floresta, essa não é a nossa vida. Nossa vida é preservar a terra, a natureza, os rios, os lagos. É assim que a gente vive, nosso povo respeita nossa mãe e nossa mãe é a natureza. Esperamos tranqüilos a nossa vitória. Dormimos tranqüilos, sonhamos bonito com a vitória da nossa terra.
Antes da retirada de nossa terra, mataram muitos xavantes. Os fazendeiros daquele tempo é muito bandido. Mataram com tiro. Morreu Tseretemé, Tserenhitomo, Tsitomowê, Pa’rada, Tseredzaró, tudo morto com tiro. Não vamos trair o espírito deles.
Essa terra é nossa origem. Os Xingus também protegiam nossa terra, os antepassados dos Kalapapos eram amigos dos antepassados dos xavantes de Marãiwatsédé.Os animais não podem sofrer mais com tanta destruição da natureza. Quando a terra for devolvida para o nosso povo, a floresta vai viver novamente, vão voltar os animais e plantas. Nossa mãe vai ficar muito forte e muito bonita, como sempre foi. É assim que tem que ser.
1 comentário
sou estudante de ciencias sociais da unifesp, e tenho muito interesse nas causas indigenas, eu gostaria de acompanhar esse caso assim, quero saber se consigo ter acesso a essa carta completa (ja que aqui só e encontram trechos), é possivel? como eu consigo?