Na Turquia, federação de futebol entra em lista de instituições com poderes para censurar conteúdo on-line

Foto original por Alex Rosario em Unsplash. Imagem de Ameya Nagarajan. Usada sob licença Unsplash.

Em dezembro de 2021, um artigo adicionado à lei nº 5894 (Lei sobre o Estabelecimento e Deveres da Federação Turca de Futebol) concedeu à Federação Turca de Futebol autoridade para bloquear o acesso as transmissões e URLs caso a federação determine que as transmissões são ilegais. Por outra ótica, pode parecer uma decisão legítima: a federação de futebol tentando impedir a transmissão ilegal de jogos. Mas olhando de perto e analisando através do prisma do ambiente generalizado de censura na Turquia no momento, conceder a uma federação de futebol o direito de censurar conteúdos na ausência de uma ordem judicial é mais um sinal de um ambiente restritivo às liberdades. Os críticos descreveram a medida como “censura indiscutível” e “inconstitucional”. Hoje, cerca de vinte entidades receberam poderes para censurar conteúdo on-line, incluindo a Agência de Regulação e Supervisão Bancária, a Diretoria de Assuntos Religiosos, o Conselho do Mercado de Capitais, a Administração Nacional da Loteria entre outras.

Como funciona

De acordo com o novo regulamento, se for determinado que as transmissões relacionadas a jogos de futebol dentro das fronteiras da República da Turquia sejam disponibilizadas na internet, o Conselho de Administração (da federação) pode decidir bloquear o acesso (na forma de URL) transmitindo sua decisão à Associação de Provedores de Acesso. A associação então bloqueia o site. Caso o conteúdo solicitado não possa ser bloqueado, o Conselho de Administração da Federação Turca de Futebol (FTF) pode decidir bloquear o acesso a um site inteiro (na ausência de aprovação judicial).

A decisão de bloqueio pode ser objeto de recurso no Tribunal Penal da Paz no prazo de uma semana a contar da data de bloqueio. As pessoas da unidade estabelecida na FTF para implementar a decisão de proibição de acesso também podem autorizar o bloqueio, se solicitado. Em fevereiro de 2022, a federação bloqueou com sucesso o acesso a mais de 800 sites. A censura se aplica ao conteúdo de vídeo, incluindo resumos de jogos, imagens de pontuação dos jogos e sites inteiros devido a essas transmissões.

Segundo o advogado Kerem Altiparmak, do ponto de vista jurídico, a autoridade conferida ao FTF é inconstitucional e abre espaço para a censura. Altiparmak salienta que o maior problema com a autoridade atribuída ao FTF é o prazo de sete dias para recorrer da decisão de bloqueio. “Há um problema de cálculo aqui. Por que sete dias? A Autoridade de Tecnologia de Informação (BTK] toma uma decisão sobre o bloqueio de acesso em questões relacionadas com a ordem pública e a segurança nacional, mas esta decisão é submetida à aprovação do juiz no prazo de 24 horas. Em circunstâncias normais, se tal autorização for concedida, é necessário ser submetida à aprovação do juiz no prazo de 24 horas e apresentada uma condição para a revogação.

Os Tribunais Penais da Paz são frequentemente utilizados como mecanismos de censura em casos de conteúdo bloqueado. Criados em 2014, os Tribunais Penais da Paz são os primeiros a decretar as decisões de bloqueio. Eles também carecem de imparcialidade. De acordo com um sistema interno de recursos, um juiz de paz pode apelar para outro juiz de paz, tornando o processo contrário ao estado de direito. Na maioria dos casos documentados até agora, os apelos feitos a um tribunal penal da paz com base na decisão de outro tribunal penal da paz foram rejeitados. Este sistema horizontal de apelos foi criticado pela Comissão de Veneza do Conselho da Europa, pelo Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, pelo Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e pelo Relator Especial das Nações Unidas sobre liberdade de opinião e expressão.

Esses tribunais são frequentemente usados ​​por funcionários do estado, membros do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) e outros aliados do estado para bloquear o acesso ao conteúdo de redes sociais, itens de notícias on-line individuais e sites inteiros, muitas vezes críticos desses atores, bem como alegações de corrupção envolvendo esses atores sob o argumento de que seus direitos pessoais estão sendo violados. Mesmo as empresas afiliadas ou que fizeram negócios com o estado podem contar com esses tribunais para bloquear materiais on-line quando estiverem comprometidas.

Outro exemplo inclui o ex-advogado do presidente Recep Tayyip Erdoğan, que conseguiu bloquear o acesso a mais de 170 notícias que mencionavam o envolvimento do advogado em um processo judicial obscuro envolvendo a Tefal e uma empresa turca. O advogado solicitou duas vezes ao 9º Tribunal Penal da Paz de Istambul o bloqueio de acesso a todas as notícias que mencionavam seu nome, na primeira vez conseguindo que o tribunal bloqueasse cerca de 130 artigos e na segunda vez outros 40 artigos.

A lista de notícias on-line bloqueadas por ordem dos tribunais penais da paz é longa e continua a crescer. Alguns desses sites enfrentam bloqueios de forma consistente. A Agência de Notícias Etkin (ETHA) foi bloqueada mais de 40 vezes de acordo com a Plataforma Internet Livre Turquia. O bloqueio também se estendeu à conta do Twitter da ETHA com base em um pedido do governo apoiado por uma decisão do Tribunal Penal da Paz de Diyarbakir. A conta do Facebook da ETHA está bloqueada desde 2018, também por ordem judicial. Em 12 de setembro, o tribunal decidiu bloquear o site pela 47ª vez.

Em julho de 2022, a pedido da primeira-dama Emine Erdoğan, o 2º Tribunal Penal de Paz em Istambul decidiu a favor de seu pedido de bloqueio de acesso a notícias mencionando sua conexão com uma agência ambiental que recentemente recebeu licitações na região costeira turca. Este foi um exemplo sem igual de dupla censura na Turquia. A primeira proibição bloqueou o acesso às notícias sobre a Lei do Meio Ambiente e as mudanças feitas na lei que autoriza a agência ambiental a realizar licitações para olhais e boias ao longo de toda a costa da Turquia. A segunda proibição de acesso dizia respeito às notícias sobre o primeiro bloqueio. Mas esta não foi a primeira vez que a família de Erdoğan teve sucesso em bloquear notícias mencionando seus nomes ou nomes de outros membros do partido no poder. Em 2021, a Internet Livre Turquia publicou um relatório no qual o órgão de fiscalização independente documentou o bloqueio de 1.910 URLs por meio de 150 decisões judiciais mencionando o presidente Erdoğan, seus familiares, outros membros do AKP ou o estado em geral. Mais recentemente, em agosto de 2022, notícias que utilizaram imagens do cartunista brasileiro Latuff sobre o presidente Erdoğan foram censuradas na Turquia por meio de decisão do 1º Tribunal Penal da Paz de Istambul, de Anatólia, com base em violações de direitos pessoais.

Captura absoluta dos meios de comunicação

Uma investigação publicada pela Reuters em agosto de 2022 revelou como a mídia na Turquia “se tornou uma cadeia rígida de comando de manchetes, primeiras páginas e tópicos de debate na TV aprovados pelo governo”. Com base em entrevistas com os meios de comunicação, autoridades estaduais e reguladores, o relatório é uma visão geral e preocupante da extensão dos mecanismos de captura e controle da mídia que foram introduzidos ao longo dos anos em um país que já teve um ambiente de mídia próspero. A censura tem sido recorrente e normalizada em todas as vias, incluindo a internet e as plataformas de redes sociais que foram forçadas a cumprir as leis nacionais.

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