Desde sua estreia no Netflix em junho de 2019, o documentário “Democracia em vertigem“ da diretora Petra Costa vem alimentando a chama da eterna polarização em que o Brasil se encontra. As opiniões a respeito do filme tendem a cair nitidamente em linhas político-partidárias (aqueles que apreciaram a obra são esquerdistas radicais, já os que não gostaram são bolsonaristas fanáticos, apoiadores de um golpe de Estado. Esse tipo de simplificação é, a grosso modo, um resumo da realidade do debate político no Brasil em 2020.
Costa conta a história dos eventos divisores em torno do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff em 2016, ao mesmo tempo em que mergulha na história recente da jovem democracia do país, do fim da ditadura militar na década de 1980, passando pela eleição do ex-líder sindical Luiz Inácio Lula de Silva em 2002 e, por fim, a ascensão de Bolsonaro.
Os debates sobre o filme haviam sido enterrados há muito tempo pela onda diária de notícias políticas aqui, mas emergiram novamente, com força total, no mês passado, quando a Academia de Cinema e Artes Cinematográficas indicou a obra ao Oscar de melhor documentário.
Em 3 de fevereiro, o Twitter oficial da Secretaria de Comunicação de Jair Bolsonaro postou um vídeo da entrevista que Costa concedeu à emissora de televisão americana PBS em que a chamou de “militante anti-Brasil”.
In the United States, filmmaker Petra Costa took the role of an anti-Brazil militant and is defaming the country’s image abroad. But we are here to show the reality. Do not believe in fiction, believe in facts.
— SecomVc (@secomvc) February 3, 2020
Nos Estados Unidos, a cineasta Petra Costa assumiu o papel de militante anti-Brasil e está difamando a imagem do país no exterior. Mas estamos aqui para mostrar a realidade. Não acredite em ficção, acredite nos fatos.
Os especialistas ouvidos pela agência de notícia jurídica brasileira Conjur divergiram sobre o fato de o tuíte ter ou não violado alguma norma. Alguns argumentam que ele quebra o princípio de impessoalidade das instituições públicas, enquanto outros afirmam que, mesmo que isso tenha ocorrido, a postagem ainda estaria dentro dos limites da liberdade de expressão. A deputada Maria do Rosário, que tem um histórico de discordância com o presidente Bolsonaro, apresentou uma queixa no Ministério Público sobre os tuítes.
Antes disso, o próprio presidente Bolsonaro havia dito que o filme era “ficção” e “porcaria”, enquanto seu filho mais novo, o deputado Eduardo Bolsonaro, chamou Costa de “canalha”.
O Twitter oficial de Dilma Rousseff publicou um tópico de discussão defendendo a cineasta, afirmando que, hoje em dia, não há ninguém mais “anti-Brasil”, ou mais prejudicial à imagem do país no exterior, do que o próprio presidente Bolsonaro.
Se “Democracia em Vertigem” ganhar o prêmio de melhor documentário em 9 de fevereiro, será o primeiro Oscar concedido a uma produção 100% brasileira (coproduções com outros países já ganharam o prêmio anteriormente).
O pessoal é político
Sendo neta do fundador de uma das maiores construtoras do Brasil (empresa envolvida na Operação Lava Jato) e filha de esquerdistas militantes que lutaram contra a ditadura militar (1964-1985), Costa conta a história da democracia brasileira como um pano de fundo de sua vida pessoal.
A narrativa é solidária com o Partido dos Trabalhadores, que governou o país desde sua vitória nas eleições de 2002 até o impeachment de Dilma Roussef em 2016, e concorda com a ideia de que Dilma foi deposta por um golpe parlamentar, liderado pela oposição, em decorrência de acusações menores (manobras fiscais que ocultaram o tamanho de uma dívida crescente) quando comparadas a escândalos de corrupção nos quais muitos desses deputados estavam envolvidos.
Petra Costa, de fato, teve acesso aos altos escalões do partido (conseguiu filmar a mudança de Dilma da residência oficial da presidência e usou imagens exclusivas do fotógrafo pessoal de Lula).
Na época em que o filme foi lançado, a mídia questionou a relação da mãe de Petra com a família de Lula, a qual não é totalmente revelada na obra. A Revista Piauí, publicação brasileira mensal, identificou que uma fotografia forense de 1976, usada no filme, havia sido alterada digitalmente. A foto mostra Pedro Pomar, guerrilheiro anti-ditadura e mentor dos pais de Petra, deitado em uma poça de sangue após ser morto pela polícia militar. Na versão que o filme fez para tal imagem, uma espingarda e um revolver que estavam próximos ao corpo foram apagados.
Costa declarou aos repórteres da Piauí que estava esperando alguém notar esse detalhe. Ela disse que removeu as armas de fogo, pois essas foram “plantadas” pela polícia para incriminar Pomar e outros que foram mortos. De fato, há documentação pública mais do que suficiente sustentando a alegação de que as autoridades “plantaram” as armas após os homicídios.
O documentário como experiência
Vários críticos do filme dizem que Costa é tendenciosa, enquanto muitos outros a elogiam justamente por incorporar seu ponto de vista. Em um artigo para a Folha de São Paulo, o jornalista Renato Terra, afirma que:
The good documentary, I’ve learned it, is the one that provokes an experience. The idea that a documentary has to be impartial, didactic, informing, has long been overcome. The genre that has evolved the most, the one that allows for most innovations, that values creativity the most, is the documentary.
O bom documentário, aprendi, é o que provoca uma experiência. A ideia de que um documentário tem que ser imparcial, didático, informativo já foi superada há muito tempo. O gênero que mais evoluiu, que mais permite inovações, que mais valoriza a criatividade é o documentário
O filme de Costa foi recomendado por vários artistas normalmente alinhados ao ponto de vista da esquerda. Queen Latifah, por exemplo, compartilhou o apoio que o astro brasileiro Caetano Veloso prestou ao filme.
— Queen Latifah (@IAMQUEENLATIFAH) February 3, 2020
A própria Petra Costa postou um tuíte com um vídeo em que cineastas como Jane Campion e Wim Wenders, juntamente com o ator Tim Robbins, elogiam o filme.
Here Jane Campion, Wim Wenders and Tim Robbins talk about our #TheEdgeofDemocracy and the global crisis of democracy. So much gratitude for their generosity! @timrobbins @NetflixFilm @JuliaPacetti @jojonata pic.twitter.com/sDHOGw0VjA
— Petra Costa (@petracostal) January 6, 2020
Aqui Jane Campion, Wim Wenders e Tim Robbins falam sobre o nosso “Democracia em vertigem” #TheEdgeofDemocracy e a crise global da democracia. Muita gratidão pela generosidade deles!
Dentre os críticos de Costa, está o marqueteiro do ex-presidente Michel Temer, que anunciou também estar preparando uma versão para a história do impeachment, cujo nome será “Trama contra a democracia”.
No exterior, o filme de Petra é visto como “um alerta para as democracias em todo o mundo” (CNN), como um filme poderoso que “mostra o declínio do Estado em direção ao populismo e o desgaste de seu tecido democrático” (The Guardian), como “um olhar indignado e inconsolável para o Brasil” (The NY Times) ou como um “réquiem sincero e inesquecível à democracia esfacelada do Brasil” (The New Yorker Magazine).
Sobre os ataques vindos de uma instituição oficial do governo, Costa disse:
The Brazilian government used its Secretary of Communication official account on social media to attack me calling me an anti-patriot. This is yet another step towards authoritarianism, in face of which we should not remain silent #TheEdgeofDemocracy https://t.co/4rJ9VmRNsy
— Petra Costa (@petracostal) February 4, 2020
O governo brasileiro usou a conta oficial da Secretaria de Comunicação nas redes sociais para me atacar, chamando-me de anti-patriota. Esse é mais um passo em direção ao autoritarismo, em face do qual não devemos permanecer calados.