Nove anos após terremoto no Haiti, grupo de agricultores desalojados busca caminho para subsistência 

Membros do Kolektif Peyizan Viktim Tè Chabè e alguns defensores legais do Conselho de Responsabilidade, que ajudaram os agricultores a defender seus direitos após terem sido expulsos de suas terras para acomodar um projeto de “recuperação do terremoto”. Foto: Conselho de Accountability/Usada com permissão

Em 12 de janeiro de 2019 completou nove anos desde que o devastador terremoto de magnitude 7,0 atingiu o Haiti, destruindo grande parte da infraestrutura do país, paralisando sua economia já claudicante e provocando milhares de mortes. Os haitianos perderam entes queridos, lares, seus meios de subsistência e perspectivas.

Este ano, em vez de apenas recordar a devastação, um grupo de agricultores haitianos decidiu redefinir o que o aniversário do terremoto significa para eles, assinando um acordo histórico que irá promover reparação a quase 4.000 pessoas no nordeste da ilha, desalojadas pela construção do Parque Industrial Caracol. O empreendimento foi financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pela USAID.

Promovido pelo governo haitiano como parte do esforço de reconstrução pós-terremoto, o parque tem como objetivo impulsionar a economia do país e gerar uma receita “150 vezes superior ao valor estimado de colheitas produzidas no lote de 240 hectares”, onde ele seria construído.

Em 2011, perto do primeiro aniversário do terremoto, 422 agricultores e suas famílias foram expropriados de suas terras produtivas, com um aviso de poucos dias. O parque nunca funcionou além de 10 ou 15 por cento de sua capacidade e acabou gerando menos empregos do que o estimado. Pessoas que conseguiram emprego no local recebiam como salário o equivalente a 5 dólares por dia.

O BID, porém, apresenta uma versão diferente dos fatos. Embora ambas as partes admitam que em janeiro de 2011 uma cerca foi instalada ao longo dos limites do perímetro do projeto, enquanto os agricultores dizem que uma vez colocada, eles não tiveram mais acesso à terra e suas plantações foram destruídas, o banco afirma que o acesso ficou livre até o final daquele ano. A pequena recompensa que os agricultores acabaram recebendo começou a ser paga somente em setembro de 2011. Mas a terra que foi prometida a eles nunca se materializou.

Sete membros do Kolektif Peyizan Viktim Tè Chabè e seu conselheiro comemoram após assinarem o acordo com o BID. (Milostène Castin, da AREDE, é o quinto da direita para a esquerda, e Eva Jean-Baptiste, cuja família perdeu terra, é a segunda da direita para a esquerda). Foto cedida pelo Conselho de responsabilização, usada com permissão

A história poderia ter terminado ali. No entanto, depois de terem recebido o último pagamento em dinheiro no final de 2013, e percebendo que não seria suficiente para ajudá-los a reconstruir meios sustentáveis de subsistência, os agricultores formaram uma associação comunitária – o Kolektif Peyizan Viktim Tè Chabè – para defender seus direitos. Representando os interesses de todos os agricultores deslocados, o Kolektif teve adesão formal de 415 pessoas.

Em 12 de janeiro de 2017, com a assistência de organizações da sociedade civil locais e internacionais, eles entraram com uma queixa detalhada no escritório de prestação de contas do BID. Nela, pediam, entre outras coisas, compensação financeira e não financeira justas, e suporte educacional para as famílias das vítimas.

Eles também pediam ao banco para que a definição de quem consideram “vulneráveis” fosse reavaliada. No primeiro processo de reassentamento, o banco identificou somente 35 pessoas como vulneráveis, e a maioria destas não recebeu suporte adicional para reconstruir seu meio de vida. O Kolektif argumentou que muitos de seus membros eram vulneráveis e necessitavam apoio.

Cerca de cinco meses depois, conversas entre o grupo, o BID e o Ministério da Economia e Finanças (UTE) iniciaram-se. Duraram 18 longos meses, finalmente, produziram um acordo histórico que irá garantir aos agricultores acesso a novas terras, empregos, equipamentos agrícolas modernos e oportunidades para pequenos negócios e capacitação. O acordo também prevê compensações específicas para os mais vulneráveis – muito além das 35 pessoas inicialmente identificadas – e inclui acesso a microcrédito, com ênfase especial para mulheres e pessoas com deficiência.

Os agricultores celebram a notícia do acordo. Foto cedida pelo Conselho de Accountability, usada com permissão

Com a ajuda de intérpretes, conversei por telefone com Milostène Castin, coordenador da Ação pelo Reflorestamento e pela Defesa do Meio-Ambiente (AREDE), uma das organizações que ajudou os agricultores a entrar com a reivindicação original, e Eva Jean Baptiste, uma das líderes do Kolektif. Eva, cuja família perdeu a terra para o parque Caracol, ajudou a negociar o acordo histórico.

Castin queria ajudar os agricultores a superar a exclusão social e conseguir um acordo significativo, então a AREDE começou a sensibilizá-los sobre os benefícios do engajamento comunitário. Castin os preveniu de que o progresso seria gradual, mas que o processo de exigir responsabilidade geraria frutos. O BID teria mecanismos internos para determinar se houve irregularidade. Se bem sucedida, a ação dos agricultores poderia servir como forte precedente para futuras decisões do governo.

O conselheiro local Milostène Castin (segundo da esquerda para a direita) sentado com os agricultores durante intervalo das negociações. Foto cedida pelo Conselho de Accountability, usada com permissão.

Com a ajuda de Castin, os agricultores formaram o Kolektif e começaram a se organizar em comitês. Eles tinham uma estratégia clara para demandar seus meios de subsistência: tornar todas as famílias afetadas conscientes do que estava em jogo, e buscar suporte quando precisassem. A Action Aid uniu-se a eles para ajudar a compilar e analisar informações, e o Accountability Counsel tratou dos aspectos legais da apresentação da reivindicação.

Membros do Kolektif Peyizan Viktim Tè Chabé reúnem-se para discutir os detalhes do acordo final. Foto cedida pelo Conselho de Accountability, usada com permissão.

Em junho de 2017, quando o Kolektif recebeu uma resposta oficial do BID dizendo que a reivindicação havia sido aceita, foi a primeira vez no Haiti que vítimas de expropriação de terra tiveram suas vozes ouvidas num processo formal de resolução de disputa. Os agricultores finalmente tiveram seu lugar na mesa de negociação, e puderam se defender. Para Castin, esse empoderamento foi uma das maiores conquistas da jornada que compartilharam.

O acordo que os agricultores ajudaram a elaborar foi concluído em dezembro de 2018, e Castin diz que é um testemunho da solidariedade e determinação do grupo.

Ainda assim, tem sido uma montanha-russa para as famílias afetadas. Antes do terremoto de 2010, eles viviam modestamente, mas podiam se alimentar bem, pagar cuidados médicos básicos e a educação dos filhos. Depois que o trabalho no parque industrial começou, tudo isso mudou. Eva Jean Baptiste descreve como se tivessem “cortado nossas duas mãos”, e acrescenta, “foi uma espécie de morte. Estávamos desesperados. Não tínhamos outra fonte de renda”.

Eva Jean Baptiste, uma das líderes do Kolektif Peyizan Viktim Tè Chabè. Foto cedida pelo Conselho de Accountability, usada com permissão

Até hoje a realidade do dia a dia é dura, mas Eva está orgulhosa de que o Kolektif desafiou o destino. Ela chama o caso de “emblemático”. “Sabíamos que estávamos dizendo a verdade”, explica. A “estratégia de coalizão” deu a eles força para pressionar tanto o governo quanto o BID. Os agricultores sabiam que todos os protocolos de operação do banco com relação ao parque industrial não foram seguidos, incluindo as salvaguardas ambientais e políticas sobre reassentamento involuntário e equidade de gênero no desenvolvimento, e sentiram que eles poderiam provocar mudanças.

Descrevendo as mulheres da comunidade como as “primeiras testemunhas” da miséria acarretada pela perda de suas terras, Eva pinta uma imagem vívida da experiência da comunidade:

In Haiti, women spend more time at home with the children. We had nothing to fall back on, nothing to sell at the market. Some people even tried to take loans to feed their families or send their kids to school. What we suffered through the most was the loss of our dignity. We had nothing, and the women saw it all first. We were looking directly at the misery, day after day, when we couldn't feed our children or send them to school. At least the men could leave home and try to do something, even if they came back with nothing.

No Haiti, as mulheres gastam mais tempo em casa com as crianças. Não tínhamos nada para recorrer, nada para vender no mercado. Algumas pessoas até tentaram fazer empréstimos para alimentar suas famílias ou para mandar os filhos para a escola. O mais sofrido foi a perda de nossa dignidade. Não tínhamos nada, e as mulheres viram tudo primeiro. Estávamos olhando diretamente para a miséria, dia após dia, quando não podíamos alimentar nossos filhos ou mandá-los para a escola. Ao menos os homens podiam sair de casa e tentar fazer alguma coisa, ainda que voltassem sem nada.

Agora que o acordo foi assinado, Eva está satisfeita, embora o coletivo não tenha conseguido tudo o que queria. Eles tinham esperança, por exemplo, de que o BID arcaria com o custo total da educação de seus filhos, mas o banco concordou apenas em fornecer dois pacotes de material escolar e material de apoio para cada família.

Eva é otimista sobre a fase de implementação, que começou exatamente em 12 de janeiro e seguirá pelos próximos cinco anos.

Agricultores participam de uma reunião. Foto cedida pelo Conselho de Accountability, usada com permissão

“Nós temos alegria em nossas vidas agora”, diz Eva. “Isso nos ajudou a recomeçar a vida”. Aproximadamente 100 dos agricultores mais vulneráveis terão agora títulos privados da terra. Outros terão acesso a equipamento agrícola e treinamento, ou assistência para desenvolvimento de pequenos negócios.

Plantações levam tempo para crescer, então foi oferecido a membros da comunidade emprego temporário no parque para que tenham renda estável enquanto trabalham para criar meios sustentáveis de subsistência.

Quanto a Castin, ele diz que os resultados positivos o fazem seguir adiante: “É sobre criar comunidades que durem.”

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