No útimo fim de semana o projeto RunNet esteve agitado com a sórdida história do aspirante a chefe de cozinha e dono de restaurante sem sucesso, Alexey Kabanov, que supostamente estrangulou sua esposa, Irina Cherska, e desmembrou seu corpo numa tentativa de escapar da lei. Mal passou uma semana, o homicídio de Irina foi ofuscado por duas outras mortes — o assassinato [ru] de um criminoso de grande influência da Rússia e o suicídio [ru] de um refugiado político russo nos Países Baixos. Não obstante, nos dias imediatamente após a prisão de Kabanov, os internautas russos experimentaram um período raro de introspecção, generosamente salpicado com teorias da conspiração.
O RuNet aludiu anteriormente [en] ao fato de que Kabanov e Cherska eram participantes ativos da blogosfera, integrados a uma rede social de membros da oposição. Alguns destes amigos e conhecidos se pronunciaram após a notícia da morte de Irina, esclarecendo sobre a família Kabanov. Mitya Gutrin, ex-colega de Alexey e Irina, escreveu um post [ru] descrevendo as dificuldades financeiras deles e o hábito de Kabanov emprestar quantias enormes de dinheiro dos amigos de Irina para financiar suas tentativas frustradas de abrir cafés. O dinheiro raramente era devolvido e Kabanov aparenta, de forma geral, ter sido bem charlatão. Gutrin escreveu:
Я всегда считал, что между жуликом и убийцей основательная пропасть. Теперь я знаю, что она не так велика, как мне казалось, а может ее и нет вовсе […]
Sempre pensei que há um amplo abismo entre um impostor e um assassino. Agora sei que não é tão amplo quanto pensei, e talvez sequer exista […]
Tais descrições do caráter moral de Kabanov provavelmente serão suscitadas pela acusação, se e quando este caso for a julgamento. Ekaterina Gajski, amiga de Irina, concordou com Gutrin, alegando ainda [ru] que Kabanov tinha um histórico de abusos físicos contra Irina:
Сначала он просрал ее квартиру, потом их бизнес (дважды точно), потом поссорил ее со всеми из-за долгов – он хамил кредиторам, ее друзьям, которые им ссудили денег на бизнес. Еще он явно ее бил, я в этом уверена, хотя сама Ира всегда отрицала и защищала его…
Primeiro ele sumiu com o apartamento dela, daí com os negócios do casal (duas vezes pelo menos), depois fez com que ela brigasse com todo mundo por causa dos empréstimos – era grosso com os credores, amigos dela que lhes emprestaram dinheiro para os negócios. Além disso, evidentemente batia nela, tenho certeza, apesar de Ira ter sempre negado e defendido o cara…
Tais revelações sobre pessoas que pareciam ser representantes-modelo da “classe criativa” da Rússia (termo inventado pelo sociologista Richard Florida, e posteriormente adotado pelo ideologista do Kremlin Vladislav Surkov, para descrever jovens profissionais que compõem o núcleo de protestos anti-governamentais), resultaram naturalmente em uma longa busca da parte de seus membros.
O blogueiro auto-denominado euro-socialista, Pavel Pryanikov reagiu inventando o termo “creacl“ [ru], uma palavra-valise para “classe criativa” (o neologismo parece ter decolado, já contando com mais de 6.000 acessos no motor de busca Yandex). Priyanikov publicou um artigo, fundamentado na sociologia, no qual delineou as razões para a tragédia iminente dos creacls, como exemplificado pela família Kabanov:
1)бесперспективность существования приезжих в Москве 2)свёртывание объёма интеллектуальных работ 3)отсутствие социала для креаклов-аутсайдеров.
1) falta de perspectivas para os recém-chegados a Moscow 2) redução no volume de trabalhos “intelectuais” 3) falta de bem-estar social para creacls marginalizados.
Ele referia-se ao fato de que Kabanov e Cherska, como muitos outros transferidos, não possuíam registro em Moscow e estavam alugando um apartamento. O professor de Ensino Superior de Economia, Kirill Martynov, estava na mesma página em uma publicação ríspida [ru] intitulada “O fim da classe criativa”:
[…] оказалось, что внутри уютного доброго Фейсбука, населенного любящими мужьями, на самом деле прячутся монстры. […] Что вместо высоких идеалов свободы равенства и братства нас ждут […] безденежье, […] сплетни подруг, алкоголизм и простые маленькие чувства […] И вот ты стоишь на площади с плакатом “Путин должен уйти”, а сам отключил телефон, чтобы кредиторы не могли дозвониться, думаешь про бутылку с виски, думаешь, где бы еще занять денег, а наутро изобьешь жену.
[…] verificou-se que naquele Facebook acolhedor, agradável, povoado com maridos dotados, há monstros. […] Que, em vez de ideais grandiosos de igualdade e fraternidade, enfrentamos, de […] bolsos vazios, […] amigos fofoqueiros, alcoolismo e sentimentos ordinários, egoístas […] E então você fica de pé na praça segurando um pôster “Putin tem que sair”, mas desligou seu telefone para que credores não possam encontrá-lo, está pensando sobre a garrafa de whiskey, onde mais emprestar dinheiro e, pela manhã, vai bater na esposa.
Enquanto alguns recorreram à sociologia, para outros membros da classe criativa “condenada” a longa busca resultou em uma dissonância cognitiva, que logo se transformou em paranoia. A prisão e a subsequente confissão de Kabanov deixaram essas pessoas hesitantes. Os sentimentos encontram-se exemplificados no seguinte comentário [ru], afixado em um dos posts do Facebook de Kabanov:
А что, если чувака просто подставили? Согласитесь, в это легче поверить, учитывая его оппозиционную деятельность, чем в то, что он убил жену, расчленил её, начал поиски, но просто держал тело в багажнике…
E se o cara simplesmente tiver caído em uma armação? Você não concordaria, considerando o envolvimento dele com a oposição, que isto é mais fácil de acreditar do que o fato de ele ter matado e desmembrado a esposa, começado a procurá-la, mas ter mantido o corpo dela no porta-malas…
Certamente, para alguns, é mais fácil acreditar que Kabanov, um manifestante ordinário da oposição, foi alvo do Kremlin, que matou sua esposa, desmembrou-a e a colocou no porta-malas para armar contra ele, do que acreditar que ele próprio poderia ter feito isso. A vidente Elina Hoffman não pensou [ru] que fosse uma conspiração do governo, mas sim local:
По моим ощущениям,его [труп] туда положили милиционеры для повышения раскрываемости.
Minha sensação é que [o corpo] foi colocado lá pela polícia, para melhorar suas estatísticas de crime.
Enquanto o blogueiro brill_poroshina demonstrou [ru] que opinião não tem que ser racional:
Ну не верю я в эту историю. Не верю, не знаю, почему конкретно [my italics, A.T.], но в целом история выглядит очень нарочитой и, главное, труп вытащили аккурат накануне марша 13-го.
Eu simplesmente não acredito nessa história. Não acredito, e não sei exatamente porquê, [itálicos do autor, A.T.] mas no geral a história parece muito falsa, e, o mais importante, o corpo foi encontrado exatamente antes da marcha do dia 13.
Outros fizeram a mesma conexão com a iminente Marcha Contra os Vilões [en], insinuando que o governo poderia estar tentando desacreditar a oposição. O blogueiro Andrei Cherepanov, da rádio Echo Moskvy pensou [ru] que a polícia poderia ter “persuadido” a confissão de Kabanov. Ele também tinha certeza de que os meios do comunicação do estado usariam a tragédia para associar Kabanov ao movimento. O usuário do LifeJournal bartang [ru] apontou as similaridades entre a história de Kabanov e as acusações de abuso infantil contra o blogueiro de oposição, Rustem Adagamov (drugoi):
Не верю, короче, что это он. Слишком вовремя, перед маршем протеста, нашли тело. […] Я предполагал, что протест будут ломать, но такого даже представить не мог. История с другим – разминка.
Resumindo, eu não acredito que seja ele. O corpo foi encontrado antes da marcha de protesto, o que é demasiado oportuno. […] Pensei que eles tentariam interromper o protesto, mas não poderia ter imaginado isso. A história com drugoi foi um aquecimento.
Ou seja, “ninguém está salvo!” [ru]
Embora seja verdade que os meios de comunicação do estado e os blogueiros pró-Kremlin tenham explorado as visões políticas de Kabanov com o fim de ridicularizar a oposição, a ideia de que Kabanov foi incriminado pelo homicídio de sua esposa por essa razão é fantástica. Crítico do governo assumido e blogueiro nacionalista, Egor Prosvirnin tem sustentado tais teorias [ru] com a inabilidade do movimento protestante em questionar seus próprios líderes:
[…] белоленточных фейсбук-граждан можно ебать в глазницы, а они в ответ будут лишь улыбаться и говорить, что все это клевета с целью опорочить хорошего человека. Если даже разделка трупа жены неспособна подорвать веру фейсбук-общественности в своего товарища, то что уж говорить о менее ярких случаях […]
[…] pode f***r os usuários do facebook que apoiam a Campanha Fita Branca, e em retorno eles apenas sorrirão e dirão que é tudo calúnia, com o fim de desacreditar uma pessoa bacana. Quando mesmo o desmembramento do corpo de uma esposa é incapaz de abalar a fé da comunidade do facebook e de seus companheiros, então por que ainda conversar sobre casos menos impressionantes […]
À medida que a situação política na Rússia se torna mais amarga, tais acusações, recriminações e teorias da conspiração de ambos os lados tendem a se tornar a regra — principalmente no ambiente impressionável do RuNet.
Parte I: Facebook russo dos horrores: A trilha do assassino
Parte II: Russian Facebook of Horrors: From Tragedy to Humor [en]