O papel das redes sociais e da blogosfera é, normalmente, visto num contexto de transparência e “responsabilidade”. Os ativistas das redes sociais ajudam a expor as falhas do Estado e garantir a prestação de contas governamental. Durante as queimadas [en] que ocorreram este verão na Rússia, contudo, o papel da mídia digital foi bem maior. Os blogueiros não apenas expuseram as falhas e omissões do governo, como também demonstraram um alto grau de solidariedade e organização na luta contra o desastre.
A atividade da comunidade digital russa não se limitou a auxiliar as vítimas das queimadas. Blogueiros criaram unidades de bombeiros voluntários, que foram a campo combater o problema. Seguindo extensas instruções de como se tornar um bombeiro, como combater diversos tipos de queimadas, e quais equipamentos os voluntários devem ter, a internet forneceu uma base de operações para coordenação e acompanhamento da situação em constante mudança 24h por dia.
O fato de que os blogueiros tiveram de tomar a questão para si foi muito mais significativo que qualquer crítica ao governo. De certo modo, os blogueiros russos preencheram as lacunas deixadas pela inação governamental. Esta situação foi surpreendente, uma vez que a blogosfera russa foi capaz de causar um efeito que, extrapolando o mundo virtual, não se resumiu ao debate.
Qual foi, então, a causa deste efeito extraordinário?
A falha do governo como estopim para a cooperação virtual.
Existem diversas explicações. Uma abordagem mais cética propõe que a principal razão para o despertar dos internautas russos foi o alto grau de risco pessoal. Ao contrário de outras questões, as queimadas afetaram toda a população de Moscou. Um usuário anônimo explicou [ru] essa perspectiva no Lenta.ru:
Когда горела Сибирь, нам было, честно говоря, пофигу. Когда пожар был в соседнем лесу, мы ковыряли в носу на даче и загорали под солнышком. Когда сгорела Выкса, мы проснулись и вскрикнули: “Власти бездействуют!” Через полчаса мы припомнили какую-то там бучу с Лесным кодексом и кинулись к компьютеру. Через час блогосфера бурлила. А на следующий день, когда Москву заволокло дымом, нам стало страшно, и мы бросились работать на благо страны.
Além do ponto de vista cínico, contudo, o alto grau de cooperação deve ser explicado a partir de dois fatores. Por um lado, a cooperação foi fortalecida por uma compreensão coletiva de que o governo havia falhado em controlar a situação e, além disso, não pretendia ser responsabilizado por isso. Por outro lado, foi a tecnologia da informação que garantiu tanto a troca de informações quanto as ferramentas para coordenar a mobilização em si.
O sentimento de desconfiança em relação ao governo foi um dos temas mais recorrentes nos debates sobre as queimadas. Anna Baskakova, uma especialista em arte que teve papel ativo no combate ao fogo, publicou uma súplica a Sergey Shoigu, ministro de situações emergenciais russo. O texto recebeu mais de 2400 comentários e se tornou o post mais popular da semana. Baskakova escreveu [ru]:
… у меня исчезли последние детские иллюзии, связанные с тем, что кто-то там, наверху, о нас заботится и нас защищает (нет, я не о Боге, я говорю о руководстве страны и о Вас в том числе). Теперь я стала взрослым человеком и рассчитываю только на себя.
Um dos pontos altos da insatisfação desta blogueira com o governo foi o momento em que o primeiro-ministro Vladimir Putin foi o co-piloto de um avião dos bombeiros [en]. Este ato ficou amplamente conhecido como uma ação positiva do primeiro-ministro. Alguns blogueiros imaginaram, porém, se ele teria o direito legal de co-pilotar. Um blogueiro perguntou [ru]:
Премьер-министр тушит пожары; Премьер-министр реанимирует 80-летних бабушек; Премьер-министр сеет пшеницу. А кто управляет страной?
Em um post sarcástico intitulado “Inovações no Combate a Incêndios”, Leonwolf listou [ru] os métodos pelos quais o governo estava lidando com as queimadas. A lista incluía:
- “Método administrativo” (dando a situação das queimadas por “encerrada” nos jornais do governo);
- Combate ao incêndio provocando a queimada da floresta antes – com o objetivo de mostrar os esforços em conter o incêndio realizados pelos ativistas russos do partido governista “Rússia Unida”.
- Combater o incêndio rezando por chuva;
- Combate pelo Photoshop [en];
- Combate via “Rynda” (uma pequena sineta utilizada para avisar as populações em caso de incêndio na antiga Rússia comunista. O termo ficou famoso como uma piada contra o governo de Putin devido uma discussão online [en] do primeiro-ministro com um blogueiro) etc.
Uma das mais afiadas respostas à ação do governo foi proferida por Yulia Latynina, uma jornalista do Echo Moskvy. Ela alegou [ru] que o Estado havia atingido um novo grau de fracasso quando mesmo a presença de Putin não era capaz de fazer nenhuma diferença:
Мы видим, что система по-прежнему не функционирует. Над Москвой стоит смог, московские морги переполнены. Лужков даже не вернулся из отпуска. Система продолжает выделять 9 млрд. рублей на чистую воду, переименовывать милицию в полицию. Здорово, ребята, давайте лучше не милицию в полицию переименуем, а сразу, как кто-то пошутил в блогах, ВАЗ переименуем в БМВ, те же самые три буквы. И тремя буквами всё это накроется.
A tecnologia ajuda comunidades online a substituir o governo
As queimadas mostraram que, com a ajuda da tecnologia, as comunidades online podem substituir tanto as funções quanto as estruturas governamentais.
Um dos sinais mais significativos da falha governamental foi o fato de que os blogueiros tiveram de comprar equipamentos – incluindo mangueiras de incêndio – para unidades oficiais de bombeiros profissionais. Igor Cherskiy, um dos líderes dos voluntários online, escritor e blogueiro, procurou [ru] Shoigu não para pedir ajuda, mas pedindo instruções sobre qual modelo de mangueiras deveriam ser compradas:
Назовите, пожалуйста, адреса, где вы прячете эти сокровища. Мы приедем и даже купим их у вас же, чтоб вам же привезти, чтобы вы потушили пожар. <…> Понимаете? Наши женщины не боятся покупать пожарные рукава для ваших героических войск. Они только боятся “купить ненужное”.
Shoigu não respondeu para Cherskiy, mas outro blogueiro – o usuário do LJ fort_i_ko, bombeiro aposentado, explicou detalhadamente quais mangueiras deveriam ser compradas. Cherskiy concluiu [ru]:
Ура! Теперь любая кухарка сможет управлять МЧС. Ибо очень доходчиво всё изложено.
A famosa frase de Vladimir Lenin “todo cozinheiro deve aprender como se governa um Estado” evidentemente não se aplicou nesta situação. Foi a auto-organização de blogueiros que provocou a emergência de vários líderes de operações de resgate e consequentemente a separação de tarefas. A usuária do LJ _alisa, depois de uma de suas idas a uma área devastada pelas queimadas, escreveu [ru]:
вчера мы ездили в Кулебаки чтобы отвезти им все это – необходимые пожарным инструменты, продукты, средства защиты были приобретены на деньги блоггеров, организовал наш десант по заброске всего этого в «горячую точку» i_cherski , который как известно на общественных началах замещает временно недееспособное руководство МЧС.
Se i_cherski tomou o lugar do ministro de situações emergenciais, o papel do ministro da saúde foi interpretado por Elizaveta Glinka, também conhecida como doctor-liza. Seu apartamento se tornou, ao mesmo tempo, o quartel-general das missões de auxílio e armazém de suprimentos.
Com a ajuda da comunidade do LJ pozar_ru, Cherskiy e Glinka se tornaram os líderes do movimento de cooperação voluntária. Apesar de seu sucesso, ações coletivas deste tipo geralmente falham em sua capacidade de coordenação. Um número esmagador de ofertas de ajuda somado a uma sobrecarga de informações, são em conjunto um grande desafio a uma coordenação eficiente. Além disso, muitas organizações que tomaram iniciativa nas missões de resgate não tinham qualquer representação na internet. Um papel importante, por exemplo, foi realizado pelo setor de caridade da Igreja Ortodoxa Russa [ru].
Uma plataforma de gerenciamento que fez o sistema de ajuda cooperativa mais efetivo foi o “mapa da ajuda” [ru] – o primeiro site russo baseado no sistema Ushahidi [en], que reuniu informações a partir de todas as fontes possíveis e as organizaram de acordo com categorias, localização geográfica e horário. O caráter coletivo das informações do “mapa da ajuda” ampliou a quantidade de pessoas que poderia disseminar informações para além dos blogs e usuários da internet. O “mapa da ajuda” criou um banco de dados e criou um centro de organização com a função de conectar aqueles que necessitavam de ajuda com aqueles que estavam oferecendo ajuda, tendo por base as informações enviadas ao mapa. O blogueiro ottenki-serogo, que visitou o centro de coordenação em Moscou, descreveu [ru] o papel do mapa:
Карта Помощи – без сомнения проект года. Возможно, его даже наградят, посмертно, когда пожаров в стране, наконец, не станет. Скорее всего это будет какая-нибудь интернет-премия, но никак не признание заслуг государством. Впервые (вы можете вспомнить что-нибудь подобное?) интернет добровольцы не только объединились в желании помочь, но и создали сайт, колл-центр, систему мониторинга и обмена информацией. […] Они не связаны ни с какими организациями и политическими партиями, они сами по себе, они тихо растворятся среди нас, когда беда отступит, и соберутся снова чтобы помогать, если, не дай бог, случится. Система создана, обкатана и готова к повторению.
O “mapa da ajuda” não só enviou a mensagem de que o governo é incapaz de cuidar de seus próprios cidadãos, mas também representou um novo mecanismo de prestação de contas que está emergindo entre a população. Ushahidi se tornou uma instituição da sociedade civil. Estes são os primeiros passos a uma realidade onde o público tem capacidade de formar instituições e mecanismos alternativos para preencher o vácuo deixado pelas estruturas governamentais.
A união de uma comunidade virtual dedicada sobre uma plataforma comum, diversos líderes e um centro de operações apoiados em um mapa Ushahidi, criou um novo modelo de cooperação que pode garantir respostas eficientes e ágeis. O blogueiro grey-wolk resume [ru] o modelo desenvolvido:
Люди без указаний, без поощрений и жажды славы просто начали сами исполнять функции государства. […] Выяснилось, что сочетание активных людей, новейших технологий распределенной работы, отсутствие формальных ограничений и неограниченного источника знаний в виде сетевых ресурсов Интернета приводит к тому, что данный “виртуальный” коллектив весьма небольшой численности может проводить операции, реально влияющие на огромное пространство – несколько областей России.
Descrito como um exemplo do fenômeno de “governança sem governo” (termo cunhado em 1992 por James Rosenau and Ernst-Otto Czempiel [PT]).“Governança sem governo” se tornou relativamente eficiente e sustentável devido ao papel das tecnologias da informação. Além disso, estas tecnologias ajudaram na criação de plataformas que inspiraram o desenvolvimento de instituições não-virtuais (por exemplo, o centro de operações que foi criado como extensão física do “mapa da ajuda”).
Alguns blogueiros russos preveem o caso do combate às queimadas como o início de um novo modelo político na Rússia, onde cidadãos armados com tecnologia assumem a governança para si. O blogueiro grey-wolk desenvolveu esta ideia em um artigo intitulado “Queimadas enquanto catalisadoras para auto-governança na Rússia” [ru]:
При всех ошибках и несколько хаотической форме создания “виртуальной организации” можно выделить несколько главных положений:
- в России существуют люди, способные самоорганизовываться и осуществлять существенные макроскопические воздействия
– “виртуальный коллектив” такого уровня может быть создан практически в любое время и способен осуществлять серьезную деятельность через 2 -3 недели после старта проекта.Таким образом, после июля – августа 2010 года в России наконец то появился зачаток позитивного движения, и не считаться с его наличием формальные власти уже не в состоянии. Данное движение пока затрагивает в основном сферу деятельности МЧС. Что на очереди?
- Existem, na Rússia, pessoas aptas a se auto-organizar e atingir impactos significativos.
– Um “grupo de trabalho virtual” deste tipo pode ser criado a qualquer momento e seria capaz de manter atividades sérias passadas 3 ou 4 semanas do início do projeto.
Consequentemente, passados os meses de julho e agosto de 2010, nós podemos finalmente ver os primeiros sinais positivos do movimento, e o governo não tem mais capacidade de ignorá-lo. Até agora, este movimento afeta apenas as atividades do Ministério de Situações Emergenciais. O que virá em seguida?
“Governança sem governo”: desafios e obstáculos
Uma cooperação bem sucedida não pode funcionar sem um alto grau de confiança entre as pessoas envolvidas. John Clippinger, em seu livro “A multidão de um só: o futuro da identidade digital” [en], argumenta que o grau de cooperação online depende da habilidade de avaliação da reputação e da credibilidade dos membros das comunidades virtuais.
Por um lado, as queimadas mostraram que os membros de comunidades virtuais são mais confiáveis que o governo. Anna Baskakova escreveu [ru]:
[…] я поверила в человеческую доброту. Потому что мне отовсюду под честное слово шлют вещи, деньги и продукты, чтобы я потратила все это на тушение пожаров. Даже совсем незнакомые люди из-за океана говорят, что мне доверяют, и переводят суммы на мою карточку. Вам не шлют, Сергей Кожугетович? Странно. Отчего они не хотят вам помогать??
Por outro lado, as atividades seguem sendo acompanhadas com mútua desconfiança e incidentes, especialmente por que a internet na Rússia é conhecida como um espaço com uma grande quantidade de blogs que apoiam o governo.
Seria possível sugerir que uma situação de emergência como esta, consequentemente, amplie o grau de confiança nos indivíduos de modo a fazer a cooperação mais estável. A estabilidade, contudo, é extremamente frágil. Uma vez reduzida a emergência da situação, as suspeitas recíprocas se ampliarão.
Mais estabilidade requer mais formas de avaliar quem são seus parceiros e qual sua reputação. O fato de que os líderes do movimento tem boa reputação não deve ser uma surpresa. Clippinger argumenta que o desenvolvimento de uma confiança online pela via da formação de uma identidade virtual poderia criar uma nova realidade social com níveis mais avançados de cooperação e autogoverno. O caso das queimadas russas é apenas mais uma prova de que “governança sem governo” demanda um alto grau de confiança recíproca. Ele também dá esperança, uma vez que os membros das comunidades virtuais têm uma oportunidade de estudar os caminhos tomados por seus companheiros. Isto significa que a cooperação online não apenas exige o desenvolvimento de uma identidade virtual, mas é, também, parte do desenvolvimento desta identidade. Consequentemente, na próxima vez que a cooperação for necessária, ela poderá ser sustentada pela confiança anteriormente conquistada.
Certos obstáculos da cooperação virtual, contudo, devem ser mencionados. Um deles é a “lei de ferro da oligarquização” [en]. Sugerida em 1911 pelo sociólogo Robert Michels, a “lei” diz que qualquer forma de organização gera competição pela liderança e acaba por criar sua própria “oligarquia”. Em um ambiente virtual, a concentração da informação pode se tornar a fonte desta oligarquização. Se isto ocorre, a concentração da informação converte a cooperação em rivalidade, ameaçando a eficiência da rede de ações.
Outro problema é a audiência. Os blogs e comunidades do LiveJournal se endereçam basicamente a internautas ativos. O “mapa da ajuda” buscou expandir seu público com a inclusão de um sistema de mensagens SMS, mas ainda assim a informação do site é majoritariamente distribuída na internet. Ao mesmo tempo, as mídias de massa convencionais (sobretudo a TV) são controladas pelo governo e estão sendo instruídas [ru] a “evitar exageros e dramaticidade” sobre o tema das queimadas. Por consequência, o público disponível à cooperação é deveras limitado.
Conclusão
No verão de 2010, a blogosfera russa se tornou um exemplo de “governança sem governo” que emergiu sobre a falha governamental em conter um desastre. A partir de uma mistura de blogs, comunidades virtuais e mapas sobre a plataforma Ushahidi, em conjunto com a formação de instituições reais para apoiar esta estrutura, formou-se uma estrutura de relativa eficiência e organização.
A Rússia não é o único exemplo deste fenômeno. Em seu recente e ainda não publicado relatório – “Telefonia móvel e governanças em áreas de Estado fracassado/ausente” – Steven Livingston [en] da George Washington University demonstrou que as tecnologias de informação e comunicação podem ser catalisadores de novas formas de governo em regiões com ausência de governo ou em Estados fracassados. O relatório demonstra como telefones móveis podem “criar novas formas de instituições que permitem às pessoas lidarem com seus afazeres (como serviço bancário, informações de negócio, etc.) de forma mais efetiva” mesmo sem o envolvimento governamental. Isto significa que a cooperação mediada pela tecnologia gradativamente vem se tornando uma alternativa significativa de governança pelo governo e outras estruturas de prestação de serviços em várias partes do mundo. Neste caso, a resposta russa às queimadas serve como um exemplo perfeito.
Os problemas de confiança e relacionamento, assim como a habilidade ainda limitada da internet de atingir uma parcela mais ampla da população, ainda permanecem em questão. Vale complementar a possibilidade de que, uma vez percebidas pelo governo como potencial ameaça, as redes sociais podem correr risco de sofrer medidas visando restringir seu potencial cooperativo.