Financiamento para movimentos LGBTQ+ no sul da Ásia

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Este artigo é de Deya Bhattacharya, líder de engajamento de movimentos da organização internacional sem fins lucrativos Associação para os Direitos das Mulheres e Desenvolvimento (Association for Women's Rights in Development  – AWID) e é baseado em uma série de entrevistas que a AWID realizou com parceiros do sul da Ásia em 2022.  Por uma questão de segurança, omitimos os nomes quando necessário.

Os movimentos LGBTQ+ do sul da Ásia estão se organizando corajosamente em toda a sua diversidade, seja na luta por reconhecimento legal, na realização do artivismo, na defesa da redução de danos ou no apoio comunitário em tempos de desastres.  No entanto, esses movimentos continuam extremamente subfinanciados, pois a transferência de recursos para a região tornou-se cada vez mais desafiadora, e muitos grupos dentro dos movimentos permanecem invisíveis e fora da vista dos financiadores.

“No contexto mais amplo do sul da Ásia e em escala global, dinheiro significa poder, e o que fazemos como movimentos LGBTQ+?” pergunta Priya*, uma ativista trans de Dhaka, Bangladesh.  “Bem, como ativistas LGBTQ+, nós desmantelamos e destruímos o poder. E é por isso que muitas partes interessadas querem garantir que o dinheiro não chegue até nós.”

De acordo com um grupo liderado por pessoas trans no Paquistão:

Winning grants is now no longer a reason for happiness for us. After we have written grant applications, passed technical assessments, spoken to donors about how we would like to use this amount in our work, filled up several forms, comes the biggest hurdle of it all — actually receiving the funds, while advocating with governmental agencies about the usefulness of our work. This is not sustainable!

Receber subsídios não é mais motivo de felicidade para nós. Depois de redigir pedidos de subsídios, passar por avaliações técnicas, conversar com doadores sobre como gostaríamos de usar essa quantia em nosso trabalho, preencher vários formulários, vem o maior obstáculo de todos: realmente receber os fundos, enquanto advogamos com agências governamentais sobre a utilidade do nosso trabalho. Isso não é sustentável!

Como observou um jovem organizador queer localizado no Butão:

We are ruled by a unique fear in this country. It is called the fear of revocation of registration certificates. We cannot resource our work, and yet we are always scared that as soon as funder money enters our bank accounts, our registration certificates will be pulled, that the biggest backlash will be the stoppage of our work.

Neste país somos regidos por um medo único. É o chamado medo da revogação dos certificados de registro. Não podemos adicionar recursos ao nosso trabalho, mas sempre temos medo de que, assim que o dinheiro dos financiadores entre em nossas contas bancárias, nossos certificados de registro sejam retirados, que a maior reação seja a paralisação de nosso trabalho.

Os movimentos LGBTQ+ no sul da Ásia continuam fazendo o trabalho pioneiro e crítico de desafiar os sistemas heteropatriarcais, tendo pouco ou nenhum apoio financeiro. Diariamente, esses movimentos enfrentam misoginia, homofobia e heteronormatividade, muitas vezes vivendo em contextos hostis nas intersecções de gênero, sexualidade, raça, classe, casta e deficiência. Essa marginalização e a resultante dinâmica de poder os expõem a um conjunto único de violações de direitos humanos, incluindo riscos específicos de violência e discriminação no acesso à educação, saúde, moradia e emprego.

Também são sistematicamente marginalizados nos movimentos feministas e LGBTQ+ mundiais, e nos espaços democráticos e de direitos humanos. Essa situação é exacerbada pelo contínuo encolhimento do espaço cívico no sul da Ásia, à medida que os governos usam sistemas legais e regulatórios para restringir e suprimir a dissidência. Como consequência, os direitos e questões das pessoas LGBTQ+ são gravemente mal atendidos.

Conjunto único de desafios

À medida que o declínio do espaço cívico se manifesta para movimentos LGBTQ+ e organizadores individuais no sul da Ásia, é importante também entender os efeitos desse déficit democrático em expansão contínua sobre os  fluxos de recursos e dinheiro. Os movimentos no sul da Ásia estão enfrentando restrições crescentes no acesso de recursos para seu trabalho.  Essas barreiras incluem regulamentos e processos que limitam o que pode ser recebido, sanções estatais excessivas – por quebrar regulamentos financeiros aparentemente arbitrários -, e proibições nos métodos de acesso a recursos que ignoram os regulamentos. Também há cada vez mais obstáculos para registrar suas organizações. Essa erosão do direito coletivo para acessar recursos é exacerbada por assédio, violência, discriminação e outras formas de opressão interseccional.

Já há provas de que apenas 1% de todo o financiamento para a igualdade de gênero se destina aos movimentos feministas. Desde a pandemia de Covid-19, houve uma onda de doadores e financiadores dispostos a defender os movimentos LGBTQ+ com mais flexibilidade, processos de inscrição e supervisão mais flexíveis e, o mais importante, mais recursos e a promessa de apoiar grupos que operam em contextos hostis e violentos. No entanto, os grupos de mulheres do sul da Ásia não podem acessar essas flexibilidades devido à estrita supervisão regulatória do governo.  Anita*, uma organizadora trans de Calcutá que também defende a justiça de recursos, diz: “A flexibilidade não é boa o suficiente quando elas continuam vinculadas à estrutura em que os grupos precisam de muita documentação para receber inclusive pequenas quantias de apoio”.

Apesar de estarem inviabilizados pelos sistemas regulatórios, os financiadores estão dispostos a mostrar solidariedade por meio de formas criativas – trabalhando em colaboração com os movimentos para garantir que o dinheiro e o fortalecimento das capacidades cheguem até eles. Por exemplo, uma entidade financeira governada por pessoas queer dos Estados Unidos, mas com carteiras de financiamento globais, informou a criação de centros regionais para facilitar recursos e espaços para interação, intercâmbio de conhecimento e aprendizado.

Outro financiador global dedicado ao trabalho sexual encontrou maneiras de criar apoio para desenvolver capacidades por meio de parceiros regionais no sul da Ásia, e montou estruturas para que o acompanhamento – termo que os financiadores usam para descrever o apoio não monetário a seus parceiros beneficiários – seja centrado nas necessidades desses grupos. Além disso, os próprios movimentos estão fazendo progressos significativos ao operar com orçamentos limitados e encontrar formas inovadoras de autofinanciamento.

Tratamento como “agentes estrangeiros”

Os movimentos LGBTQ+ no sul da Ásia enfrentam, entre outros desafios, a violência, o estigma da discriminação e a criminalização de fato pelo Estado. Este países não punem diretamente as pessoas queer, porém seus códigos legais contêm disposições criminais como indecência, vadiagem, libertinagem, pornografia, prostituição e exposição ao HIV, que utilizam para assediar este grupo.

Além disso, os movimentos na região são levados ao limite do ecossistema de financiamento, já que muitos países da região veem o financiamento estrangeiro de doadores e financiadores como “influência estrangeira“. Por exemplo, nas Maldivas, as restrições à aceitação de fundos internacionais para o trabalho de justiça social são vagas, mas muitas vezes atraem as disposições contra a blasfêmia do Código Penal e, portanto, provavelmente provocam reações extremas. Um jovem organizador queer das Maldivas afirma que o espaço cívico “encolheu e pode-se dizer que não existirá ao longo dos anos. Agora há muita revolta e não estamos acostumados a ter nossos espaços tirados de nós tão rapidamente. Parece muito inseguro.”

Questões transversais sem financiamento adequado

O ativismo e a mobilização LGBTQ+ acontecem não apenas nos tribunais, mas também nos postos de saúde, nas escolas, na política e na comunidade, e para isso é preciso financiamento. Como diz um jovem ativista queer da Índia: “O argumento da influência estrangeira é agravado contra nós, e também nos impede arbitrariamente de acessar tanto o dinheiro como nossa própria voz contra as forças opressoras”.

No sul da Ásia, os ativistas LGBTQ+ costumam trabalhar nas intersecções de gênero, sexualidade, casta e deficiência para desafiar a opressão sistêmica, enquanto desenvolvem conhecimentos básicos sobre o cuidado comunitário e coletivo, segurança digital, artivismo, defesa legal e política e mudança de normas. A região está testemunhando movimentos LGBTQ+ que se organizam por justiça econômica, direitos dos profissionais do sexo, justiça ambiental, HIV/AIDS e redução de danos, direitos trabalhistas, justiça para pessoas com deficiência e política contra castas.

No entanto, este trabalho raramente é financiado. O relatório da Mama Cash, um fundo para mulheres na Holanda sobre o estado do financiamento para grupos LBQ intitulado “Vibrante, mas com poucos recursos”, descreve como este grupo vincula o bem-estar e os direitos de suas comunidades a uma série de questões de justiça social. Este relatório também indica que, embora 85% dos doadores pesquisados ​​“estivessem interessados ​​em financiar o ativismo em vários campos, mais da metade (57%) do financiamento específico do LBQ no mundo vem de carteiras LGBTQI”.  Isso significa que grande parte do trabalho interseccional que esses movimentos fazem no sul da Ásia é subfinanciado ou não é financiado.

Por exemplo, o relatório da Rede de Financiadores de Direitos Humanos (HRFN) sobre Financiamento para organizações interseccionais afirma:

…grants for LGBTQI people and persons with disabilities are among the most siloed funding streams within human rights philanthropy, with just 33% of LGBTQI grants and 37% of grants for persons with disabilities mentioning additional identities. These findings echo concerns raised by the Disability Rights Fund about funders consistently overlooking persons with disabilities in their grantmaking, despite the well-documented ways disability increases the risk of abuse for women and girls, racial and ethnic groups, and other historically oppressed communities.

…as doações para pessoas LGBTQI e pessoas com deficiência estão entre os fluxos de financiamento mais isolados dentro da filantropia de direitos humanos, com apenas 33% das doações para pessoas LGBTQI e 37% das doações para pessoas com deficiência, e mencionam identidades adicionais. Esses resultados abordam as preocupações levantadas pelo Disability Rights Fund sobre os financiadores que negligenciam sistematicamente as pessoas com deficiência em suas doações, apesar das formas bem documentadas em que a deficiência aumenta o risco de abuso para mulheres e meninas, grupos raciais e étnicos e outras comunidades historicamente oprimidas.

Um organizador de Karnataka, na Índia, cujo trabalho está na intersecção dos direitos trans, deficiência e casta, fala sobre esta oportunidade perdida.

Our work continues to be challenging because sustained collaboration across different themes and issues is basically what will ensure that our communities will live safer lives with their human rights intact. However, funders categorize our identities and issues so often certain intersectional work that we do becomes ‘un-fundable’ if it is not a priority for the funder. Ultimately, our organizing will suffer.

Nosso trabalho continua desafiador porque a colaboração sustentada em diferentes temas e questões é basicamente o que garantirá que nossas comunidades vivam vidas mais seguras com seus direitos humanos intactos. No entanto, os financiadores categorizam nossas identidades e problemas com tanta frequência que certos trabalhos interseccionais que fazemos tornam-se “não financiáveis” se não são uma prioridade para o financiador. Em última análise, nossa organização será afetada.

Anita*, a organizadora trans de Kolkata que trabalha na intersecção de direitos trans e trabalho, fala sobre uma série de questões que nunca estão nas listas de prioridades dos doadores porque estes são elementos que historicamente nunca foram significativos para o ecossistema de financiamento.  “Trabalhamos com catadores trans na periferia de Calcutá, e a múltipla marginalização da identidade e do trabalho estigmatizado torna nosso ativismo muito difícil. Este não é um problema ou um movimento popular, então os doadores provavelmente não nos procuram quando fazem suas carteiras.”

Exigências dos movimentos

O clima político no sul da Ásia se torna cada vez mais desigual com a legislação rígida em relação ao financiamento estrangeiro. Além disso, devido à imensa reação contra ativistas – que tentam arrecadar dinheiro para sua organização e organismos quase-legais que criam regulamentos arbitrários sobre como os movimentos LGBTQ+ podem acessar e utilizar o financiamento – é importante agora mais do que nunca que doadores, financiadores e aliados se reúnam em comunidade com os criadores de movimentos na região para concriar oportunidades e soluções.

Os vários movimentos LGBTQ+ apontam o caminho na avaliação dos desafios atuais, ao: (i) criar mais acessibilidade para esses movimentos, o que significa criar mais agilidade em seus processos e documentação; (ii) aumentar o financiamento direto para estes grupos; (iii) criar programas cujos recursos trabalhem nas intersecções dos direitos LGBTQ+ e outras questões; (iv) fornecer aos movimentos recursos para seu trabalho operacional e institucional sustentado e (v) aumentar os recursos não monetários para os movimentos, na forma de produção de conhecimento, pesquisa e capacitação.

Apesar do acesso a recursos muito limitados e das restrições fiscais decretadas pelos governos, os grupos LGBTQ+ no sul da Ásia estão empenhados em defender, criar comunidades e movimentos, e outras estratégias para defender a justiça para seus constituintes. Além disso, financiadores e doadores estão fazendo o possível para encontrar maneiras de apoiar esses movimentos. Há também um espaço único dentro do ecossistema para influenciar de forma colaborativa os financiadores a alocar fundos adicionais e prazos para suporte central flexível, bem como apoiar movimentos de forma criativa para se autofinanciarem.

* Todos os nomes foram alterados para proteger suas identidades.

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