[Uma versão mais extensa deste artigo, escrito por Miguel de Barros e Patrícia Godinho Gomes, foi publicada originalmente no Buala com o título Percepções e contestações: leituras a partir das narrativas sobre o narcotráfico na música Rap da Guiné-Bissau, no dia 24 de Janeiro de 2014.]
O fenómeno de narcotráfico na Guiné-Bissau tem vindo a ganhar visibilidade através da articulação entre músicos rap e as rádios. A emergência deste movimento contestatário na cidade de Bissau dá voz às denúncias da sociedade civil de uma forma inovadora usando o “narco-rap” para a construção de resistências.
No início do novo milénio, o tráfico ilegal da cocaína atingiu proporções globais, infiltrando não apenas os mercados tradicionais como o dos Estados Unidos da América e da América Latina, mas também os da Europa ocidental, da Rússia e mais recentemente alguns países da costa ocidental africana, que têm-se tornado em países de “trânsito” dos cartéis da droga.
Sendo a Guiné-Bissau um dos países mais pobres do mundo e sem capacidades de controlar o seu território, a abordagem do fenómeno do narcotráfico não é apenas uma questão da falta de desenvolvimento, mas sim, constitui um problema de segurança no país e na sub-região (ver os relatórios do Escritório das Nações Unidas sobre Droga e Crime de 2007 e 2008 [pdf], com especial menção à Guiné-Bissau).
Música “Relatório” de MC Mário, Patche di Rima e Dom Pina
Para além da mediatização da espetacularidade da intervenção pontual americana [en] contra o fenómeno do narcotráfico na Guiné-Bissau e na sub-região oeste africana, importa perceber quais os mecanismos internos de resistências que estão a ser adotados e que efeitos estão a ter no espaço nacional.
É neste sentido que os jovens “não institucionalizados” e pertencentes às camadas sociais subalternas, aparecem como protagonistas através da denúncia com a música de intervenção, Rap, em programas radiofónicos e em diretos. O “narco-rap” apresenta-se como um instrumento artístico através do qual os rappers interpretam, criticam o envolvimento de atores com responsabilidades no Estado no narcotráfico e contestam a (des)ordem social vigente, aliando a emancipação cultural ao exercício da participação política e democrática.
Registamos aqui em discurso as narrativas que todos fazem mas não dizem, em kriol (crioulo, a lingua franca da Guiné-Bissau) com a respetiva tradução para português.
Narrativa da Denúncia
Pode ouvir-se na música “Culpadus” de Torres Gémeos (2008):
droga tchiga Guiné i djumblintinu senariu/Nhu alferis ku nhu kabu/Tudu pasa sedu bida empresariu (…)
Amadu ki chefi di izersitu/Iooode/I ka fasi nin 2 dia ki tchiga la/Iooode/I mata Djokin i subi la
Ku asasinatu ku aumenta/korupson ganha forsa
I ta troka mindjer suma ropa/I tene kumbu té na Eropa
Nunde ki sai ku es manga di kusas?/no ka sibi!
A droga chegou a Guiné e baralhou-nos o cenário/Senhor Alferes e Senhor Cabo/Todos viraram empresários
Amadu é chefe do exército/Iooode/Não há dois dias que chegou lá/Iooode/Matou Joaquim e subiu até lá
Com o aumento dos assassinatos/A corrupção ganhou força
Troca de mulher como se troca de roupa/Tem dinheiro até na Europa
Onde é que arranjou aquilo tudo?/Não sabemos!
Narrativa da rota do narcotráfico
A música “Bo obi mas” (Oiçam de novo), de Baloberos (2008), percorre as geografias do narcotráfico:
Guiné-Bissau nason di trafico? Tráfico
kil ku na bin bai pa Spanha? Tráfico
kil ku ta bin di Colombia? Tráfico
Mira ermanos, la fuerza armada transportando la cocaína en quantidad
haciendo negócios com nuestros ermanos de Colombia
(…) bo obi es sistema di pesa coca: kilograma, decagrama, hectograma, graaama
Guiné-Bissau nação de tráfico? tráfico
aquele que vai para Espanha? tráfico
aquele que costuma vir da Colômbia? tráfico
vejam irmãos, as forças armadas transportando a cocaína em quantidade
fazendo negócios com os nossos irmãos de Colômbia
oiçam este sistema de pesagem da coca: kilograma, decagrama, hectograma, graaama
Narrativa do protesto
Em “Kaminhu sukuru” (Caminho escuro), de FBMJ (2008), é feito um apelo à população:
Marca di Avion 515 tisi medicamentu pa tudu duentis
i guineensis ka na duensi mas
bardadi n`fia, Guiné i terá nunde ku pekadur ta garandi ora ki misti, di manera ki misti, tudu ta dipindi
bardi n`fia, Guine i tera nunde ku po ta sibi riba di santchu mbes di santchu sibi na po
Ma i ka sigridu ku nha kabesa na ramasa i ni i ka kudadi
i sibidu kuma i ten djintis na Guine ora ku e misti pa tchuba tchubi, tchuba ta tchubi
ora ku é mista pa sol iardi, sol ta ratcha
marca de avião 515 trouxe medicamentos para todos os doentes
e os guineenses jamais adoecerão (…)
verdade eu creio, Guine é uma terra onde as pessoas são maduras quando quiserem, da forma como querem, mas tudo é relativo
verdade eu creio, Guiné é a terra onde as árvores trepam macacos ao invés destes treparem as árvores!
mas não é segredo que estou a vomitar e nem é preocupação
sabe-se que há gente na Guiné quando quiserem que se chova, acontece
quando quiserem que o sol brilhe, acontece
Narrativa do desassossego
A música “Contra”, dos Cientistas Realistas (2007), lamenta o estado do “narcoestado”:
notícia di tera obidu ate na rádios internacionais
fidjus di Guine ta ianda npinadu é ka ta ossa ianda nin alsa rostu
tera i ka purmeru, ma anos pekaduris i restu
na diaspora no ta sta tristi suma kil ku tene disgostu
pais sta desorganizadu, corupson sta generalizadu, aparelho di no stadu aos torna un sistema di corupson
dinheru ku no djunta passa na sbanjadu a toa i grande orgulho, fama(!)
Guine-Bissau i narcotráfico
djintis di stadu na pratica di negócios ilegais
e na fasi crimes organizadu ma faladu na nomi di stadu
es tudu anos i contra
narcostadu puera lanta
tudu mundo misti sai nês coba
notícias da terra foram escutadas até nas rádios internacionais
filhos da Guiné anda cabisbaixo sem coragem para levantarem a cara
o país não é priorizado, as pessoas são os últimos
na diáspora costumamos a estar tristes como quem tem desgosto
país está desorganizado, corrupção generalizado, aparelho de estado transformou-se num sistema de corrupção
o nosso dinheiro passou a ser esbanjado a toa, grande orgulho, fama!
Guiné-Bissau é narcoestado,
gente do Estado na prática de negócios ilegais
praticam crimes organizado mas diga-se em nome do Estado
isto tudo nós somos contra,
narcoestado levantou a poeira
todo o mundo quer sair deste buraco
Narrativa da ação
Na música “Kaminhus“, de As One (2012), é notória a indignação, bem como a chamada à ação:
No leis apedrejado
cheio de lacunas
li ki Guine-Bissau pa kin ku ka sibi
li ku traficantes ta dadu privilegio mas di ki pursoris di universidade
juro li te purcu ta pudu gravata i bistidu fatu
katchuris si é mata é ta dadu caru tipo incentivo
tipo se presente pa é continua mata
guineensis i sta na hora di no kunsa nota
no disa pa tras tudu ke ku na tudjinu avança…
as nossas leis foram apedrejadas
estão cheias de lacunas
aqui é que Guiné-Bissau para quem não sabe
aqui é que aos traficantes são dados privilégios mais que os professores universitários
juro que aqui os porcos usam gravatas e fatos
os cães quando matam recebem carros como incentivo
como presente para continuarem a matar
guineenses está na hora de começarmos a notar
vamos deixar para trás tudo o que não nos permite avançar…
Neste processo, as rádios foram (e são) um meio de extrema importância no quotidiano guineense. Tendo em vista ao que se chama de disseminação da palavra [fr] que pretende ser o mais livre possível, os rappers destacaram através das suas narrativas criativas aqueles que mais “tomaram a medida” usando a rádio enquanto oportunidade para denunciar, através da música, as suas várias “facetas”.
Este ímpeto sustenta a necessidade de contestação do rótulo de “narco-Estado”, na medida em que as estratégias de sobrevivência de uma larga maioria da população guineense não se baseia no negócio da droga nem tão pouco a racionalidade das famílias na forma como abordam a dura realidade guineense.
Deste modo os jovens rappers procuram abrir novas pistas de reflexão sobre a posição dos jovens, a contestação sobre a gestão da “coisa pública” e a emergência dos novos atores políticos no espaço público num Estado em construção.
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