Regime sírio trava guerra de documentos contra seus próprios cidadãos

Embaixada da Síria em Praga, foto tirada a 12 de Abril de 2008 em Bubeneč, República Checa. Fonte: Krokodyl/Wikipedia.

Esta história foi escrita originalmente para a SyriaUntold em colaboração com a Open Democracy. Reproduz-se aqui como parte de um acordo de parceria.

Uma das mais antigas demonstrações de corrupção do governo sírio tem sido o bloqueio e a manipulação de documentos oficiais. Com demasiada frequência, dissidentes políticos veem-se privados de seus direitos cívicos, suas licenças profissionais e suas propriedades pessoais. Ainda hoje, os cidadãos são obrigados a pagar subornos a funcionários públicos ou arriscam-se a que sua documentação sofra atrasos intermináveis.

Rula trabalhava no departamento de marketing de uma das maiores empresas de vestuário da Síria quando Bashar Al-Assad chegou à presidência, em 2000. “A minha posição expôs-me à enorme escala de corrupção e fraude que controlava o país. Por exemplo, se uma empresa pagasse, digamos, 500,000 SYP [cerca de 10,000 dólares americanos nessa altura] por ano em impostos, estaria a pagar 5 milhões em subornos que acabariam nos bolsos de funcionários públicos. É esta a proporção. E pode-se fazer o que quiser. Qualquer coisa, desde que se pague”, contou Rula a SyriaUntold de Dubai, onde vive actualmente.

Nos últimos anos, em que a opressão política alcança novos níveis, incluindo crimes de guerra e a proliferação de armas proíbidas, a corrupção tem aumentado, sendo usada como ferramenta de guerra contra a oposição e como fonte de fundos gerados pela guerra, à custa da população em geral.

Vida e morte

Depois do início da revolução, em 2011, o regime começou a utilizar técnicas de chantagem mais malévolas. Inicialmente, por razões políticas, e depois para extorção financeira. Enquanto o regime abria fogo contra manifestantes, matava detidos sob tortura ou bombardeava bairros de civis, as famílias em luto deparavam-se com uma tragédia dupla: além de os civis estarem em luto pelos seus entes queridos, o regime retia informações sobre o paradeiro dos detidos, possivelmente assassinados sob sua custódia ou em hospitais. As famílias eram impedidas de terem certezas em relação à sua morte.

Mesmo quando as forças de segurança decidiram informar as famílias em relação às mortes, os cadáveres e os documentos das vítimas eram retidos até que as famílias assinassem declarações responsabilizando “grupos terroristas armados” pela morte dos seus familiares. Isto ocorreu em 2011, dois anos antes da formação do grupo militante Estado Islâmico (EI). À medida que a escala de mortes aumentava, os subornos tornavam-se procedimentos de rotina em troca de provas documentadas, criando uma indústria paralela para os oficiais de segurança que supervisionam as mortes sistemáticas.

No entanto, dado que isto ocorria extrajudicialmente em calaboços da segurança, com mediadores civis encarregues dos pagamentos dos subornos e que faziam apenas acordos orais, também havia muitos casos em que os documentos eram manipulados.

Um dos casos mais famosos foi o de Zainab al-Hosni, uma jovem de Homs. No final de julho de 2011, Zainab desapareceu e sua família acreditava que ela teria sido detida por forças de segurança. Dois meses mais tarde, a família receveu um cadáver mutilado de uma morgue do estado, e foi-lhes comunicado que seria sua filha, mas que só poderiam reclamar o corpo após assinarem a habitual acusação aos “gangues armados”. A família ficou furiosa. A oposição e os meios de comunicação internacionais foram rápidos a espalhar as notícias como provas adicionais dos crimes do regime.

Dias mais tarde, foi transmitido um vídeo na TV estatal síria de uma entrevista à jovem, indicando que esta se encontrava viva e em boas condições, com o objectivo de descredibilizar os meios de comunicação da oposição apesar das provas dadas à família. A identidade do cadáver mutilado continua desconhecida até hoje.

A manipulação de documentos tem ainda muitas implicações legais que impedem as famílias de prosseguir com as suas vidas. “Viúvas”, por exemplo, não sabem se continuam, ou não, casadas, vários anos após as detenções dos seus maridos. Não podem, legalmente, pedir o divórcio ou voltar a casar até o desaparecimento ser reconhecido pelo tribunal, um processo que pode demorar anos. Este reconhecimento oficial tende a depender da habilidade da esposa em cumprir os requisitos de juízes corruptos.

Adicionalmente, segundo as leis sírias, uma mãe não pode emitir documentos oficiais, como passaportes, para seus filhos mesmo que tenha a sua custódia ou que ainda esteja casada com seu pai. Se a ausência do pai for justificada satisfatoriamente, um membro masculino da família poderá emitir este tipo de documentos. A justificação é considerada satisfatória por funcionários do governo, cuja flexibilidade está sujeita a subornos.

Ghada, de 57 anos, perdeu o seu filho nos bombardeamentos do regime durante o cerco a Homs (2012-14). Era um activista já procurado pelo regime. Como resultado, a família não pôde enterrar seu corpo no cemitério da família.

Este não era o único problema. “Só tenho mais um filho, que tinha de cumprir serviço militar se não conseguissemos o certificado de óbito do seu irmão”, explicou Ghada. De acordo com a lei, os filhos únicos estão dispensados do serviço militar obrigatório.

“Foram necessários meses e meses de trabalho até conseguirmos, finalmente, obter o seu certificado de óbito”, algo que lhe custou várias centenas de dólares em 2013. Hoje, os custos podem chegar aos milhares, dependendo da necessidade do documento e da capacidade financeira do cidadão chantageado.

Educação

Nem os estudantes foram poupados de serem utilizados como moeda de troca nesta guerra por documentos oficiais.

Embora o regime tenha continuado a pagar os salários dos professores das escolas públicas em territórios controlados pela oposição, por vezes recusa-se a reconhecer a legitimidade dos exames nacionais. Isto foi particularmente prejudicial para os estudantes do 9º e 12º ano [3º ciclo e ensino secundário], que fazem exames a nível nacional para que possam receber um certificado oficial de conclusão, permitindo a continuação dos seus estudos.

O regime defende que não foi possível verificar se os procedimentos adequados teriam sido seguidos de forma a prevenir cópia e fraude em áreas controladas pela oposição. É de notar o aumento destas práticas, mesmo em áreas controladas pelo regime, juntamente com uma procura incomum por certificados académicos falsificados, algo que levou muitos países a rejeitar qualificações académicas emitidas na Síria depois de 2011.

Em alguns casos, como resultado de negociações bem sucedidas com os partidos em controlo de cada área, os testes foram aceites ou os estudantes receberam permissão para sair dos seus bairros de forma a fazer os exames. No entanto, houve casos em que estudantes e professores tiveram de lidar com ameaças e custos extras para conseguir chegar aos territórios controlados pelo regime.

Mohammad, 32 anos, professor do 9º ano na área cercada do este de Ghouta, falou da dolorosa viagem que fez com seus alunos, no verão de 2015. “Demorámos 27 horas para passar pelos postos de verificação intermináveis, através do cerco até Damasco. Fazer esta estrada costumava demorar 20 minutos.”.

A viagem era ainda mais arriscada para o próprio Mohammad, que tinha perdido dois irmãos nos últimos quatro anos, tornando-se assim o único filho, não oficial, dos seus pais já idosos. A possibilidade de ser recrutado para cumprir serviço militar está sempre presente.

Enquanto Mohammad teve sorte, Umm Ghyath, de 50 anos, não teve. Como administradora de uma escola secundária pública da área rural de Aleppo, controlada pela oposição, teve de levar suas estudantes do 9º ano a fazer exames na cidade de Aleppo. Foi revistada na viagem de volta, e encontraram uma quantia considerável de dinheiro em sua posse.

“Expliquei que eram as pensões de reforma de outros professores que não podiam fazer uma viagem tão arriscada a Aleppo para as reclamar. Mostrei as autorizações legais dos professores para utilizar os seus cartões de crédito, mas disseram-me que estes funcionários reformados eram procurados por pertencerem ao Exército Livre da Síria [ELS]. Confiscaram o dinheiro e detiveram-me.”.

“Disse-lhes: Como podem saber se são procurados ou não? Porque é que continuam a pagar-lhes salários se são membros do ELS? São seniores reformados.” Ghyath esteve numa instalação de segurança, incomunicável, durante três semanas, sendo depois libertada sem acusações. Nunca obteve o dinheiro de volta.

Nas universidades, a situação não melhora. Ramia Shami teve de abandonar a Síria depois de terminar seus exames, mas antes do certificado de graduação estar pronto para ser emitido. Deu autorização legal à sua mãe para a representar durante o processo e abandonou o país definitivamente. Depois de nove meses a tentar, acabaram por desistir da obtenção do certificado.

“Não podia pedir-lhe que continuasse com este jogo inútil e cansativo”, disse Ramia. Explicou que foi pedido à sua mãe que apresentasse o diploma do ensino secundário para que pudessem emitir o diploma de licenciatura, embora o tivesse apresentado há quatro anos, durante a candidatura à faculdade.

Embora sua mãe tenha explicado aos funcionários da Universidade de Damasco que o diploma original tinha sido deixado na casa de Ramia, agora numa zona inacessível, controlada por rebeldes, estes recusaram-se a emitir o certificado de licenciatura. A situação podia ter sido resolvida com subornos, mas Ramia e sua mãe não quiseram pagar. “Quatro anos de estudo gastos desta forma”, lamenta Ramia.

Autorizações legais

Dado que quase um terço dos sírios abandonou o país, as autorizações legais dos cidadãos residentes no estrangeiro, que permitem aos seus representantes agirem em seu nome, tornaram-se uma forma essencial para processar documentos e assuntos no país.

Como resultado, a corrupção do regime aproveitou-se desta oportunidade. Foi introduzida uma nova autorização de segurança como pré-requisito à emissão de vários documentos legais, incluindo autorizações legais promulgadas por embaixadas sírias. Estas privam os sírios dos seus direitos como cidadãos residentes no estrangeiro, se forem considerados politicamente indesejados ou se não possuírem meios para (ou não quiserem) pagar subornos.

Nada, de 36 anos, estudante de Doutoramento na Europa há três anos, falou sobre a luta da sua mãe para salvar sua casa em Homs. Nada inscreveu-se num projecto de alojamento público há mais de dez anos, e desde então tem pago rendas mensais. Em 2016, após um atraso de vários anos, a casa ficou finalmente pronta.

Contudo, Nada estava activamente envolvida em discursos públicos sobre as atrocidades do regime. “A minha mãe apoia o regime e por isso não me fala há quase dois anos”. Ironicamente, sua mãe viu-se obrigada a enfrentar corrupção e desfalques do regime ao ser impedida de receber a casa em nome de Nada, devido à rejeição da autorização de segurança da filha.

“Queríamos apenas dar-lhe bom uso”, explicou a candidata a Doutoramento. “Há muitos sem-abrigo em Homs que precisam da casa. Agora não posso alugá-la, nem vendê-la, ou fazer o que quer que seja com ela”. Nada teme que a falta de segurança resulte na apreensão da casa e sua utilização própria por afiliados do regime.

Cidadania e mobilidade

Para o resto do mundo, o aspecto mais preocupante deste despotismo burocrático está relacionado com passaportes. Os passaportes têm sido usados pelo regime como forma de controlar a mobilidade global. Controlar passaportes era sinónimo de controlo sobre quem saía do país e como, de quem pode ou não viajar para o estrangeiro, de quem é obrigado a pedir asilo e de quem perde mesmo sua cidadania e se torna apátrida.

Grande parte dos sírios que se mudou para países vizinhos, como a Turquia, Jordânia ou Líbano, fê-lo sem passaporte ou outra forma de identificação. Viram-se forçados a abandonar suas casas, atingidas por bombardeamentos, sendo a destruição dos seus documentos muito provável.

Isto significa que estes sírios estavam limitados a países que os aceitassem, estando impedidos de abandonar essas nações de forma legal. Uma situação que se revelou muito lucrativa para traficantes, que se tornaram a única opção destas pessoas para deixarem o seu país de acolhimento.

A emissão de novos passaportes nas embaixadas sírias em países de acolhimento a refugiados não foi possível durante vários anos. Entre 2011 e 2012, as embaixadas do regime na Jordânia, na Turquia e em muitos outros países não funcionavam normalmente. Adicionalmente, desde 2013, o regime aumentou os requisitos de segurança para a emissão de passaportes, implementando medidas para verificar se os requerentes não eram “acusados” de dissidência ou pedindo a entrega do passaporte antigo, muitas vezes perdido.

Durante este período, muitos sírios viram-se obrigados a pedir asilo nos seus países de residência, não por questões financeiras ou autorizações de residência, mas sim porque a falta de documentos de identificação válidos tornava impossível sua residência legal nestes países.

Mercados negros para passaportes falsos ou roubados começaram a emergir, como resultado, muitas vezes envolvendo funcionários do regime corruptos. Para complicar mais a situação, estes mercados expandiram-se para além das necessidades dos sírios a quem o regime tinha negado passaportes legítimos e passaram a incluir requerentes de asilo de outros países que procuravam beneficiar-se do asilo humanitário oferecido aos cidadãos sírios.

Na Alemanha, por exemplo, Nader, de 42 anos, falou-nos da sua experiência como intérprete voluntário num centro de refugiados durante o verão de 2015: “Visto que muitos chegavam sem documentos ou com documentos falsificados, alguns dos nossos colegas alemães pediam-nos para usar palavras de dialectos de forma a perceber se a pessoa era, de facto, síria”. Nader não ficou feliz com esta tarefa. “O sotaque dos sírios de Dayr al-Zawr é muito semelhante ao dos iraquianos”, explicou. Era uma tarefa difícil, mas também um desafio ético para Nader, visto que pessoas de ambos os lados da fronteira sírio-iraquiana podiam estar a fugir da opressão do Estado Islâmico ou dos bombardeamentos aéreos conduzidos pela coligação liderada pelos EUA.

Finalmente, sob pressão internacional e com necessidade financeira de moeda estrangeira, o regime cedeu em 2015 e voltou a emitir passaportes para cidadãos sírios, incluindo os procurados por activismo ou recrutamento. O custo da emissão de documentos oficiais duplicou e passou a ser cobrado em dólares americanos, se fossem pedidos a partir do estrangeiro. Durante a semana de 31 de março voltaram a duplicar, altura em que uma emissão rápida chegava aos $800, em contraste com uma importância inferior a $100 antes de 2011.

No entanto, este não foi o fim da chantagem a activistas. Verificações de segurança continuam a complicar, aleatoriamente, o processo a nível individual, chegando a causar atrasos de vários meses. Muitas vezes, pede-se aos requerentes que entreguem seus passaportes antigos antes de receberem os novos, deixando-os à mercê do regime e forçando-os a pagar eventuais subornos exigidos para além dos custos oficiais.

Conformidade internacional

Recentemente, o regime tem utilizado um novo método, relacionado com a conformidade internacional: desacreditar passaportes como roubados ou simplesmente cancelados. Este foi o caso de Zaina Erhaim, uma activista e jornalista premiada a quem as autoridades inglesas confiscaram o passaporte, à chegada ao aeroporto de Londres em setembro de 2016.

Ao pedir uma justificação, presa no aeroporto com sua bebé recém-nascida, os funcionários do Ministério do Interior mencionaram, vagamente, que o seu passaporte tinha “uma denúncia de roubo”, oferecendo pouca explicação sobre a natureza desta “denúncia”.

A resposta surpreendeu a jornalista, pois nunca lhe perguntaram se era mesmo Zaina Erhaim. As autoridades inglesas tinham aceitado a acusação de que tinha roubado seu próprio passaporte. Ao comentar este episódio, um representante do Ministério do Interior disse ao The Guardian: “Se um passaporte é denunciado como perdido ou roubado por um governo estrangeiro, não temos escolha se não confiscá-lo.”.

As autoridades americanas parecem também conformar-se com o controlo do regime sobre documentos, como no caso de Khaled al-Khatib, o director de fotografia do documentário vencedor de um Óscarpelo documentário “Os Capacetes Brancos“. Al-Khalib obteve um visa de visita aos Estados Unidos para participar da cerimónia de premiação. No entanto, foi impedido de embarcar no avião na Turquia no passado mês de fevereiro. Foi-lhe comunicado pelas autoridades turcas que o seu visto teria sido “cancelado.”.

As autoridades americanas tinham a opção de renunciar aos requisitos do passaporte, permitindo o seu embarque no voo, mas escolheram não o fazer, mesmo estando informados sobre os antecedentes do regime na perseguição de dissidentes.

A explicação oficial do Departamento de Segurança Nacional para o impedimento ao embarque de Al-Khalib foi a recepção de “informações pejorativas“, um termo vago que pode incluir irregularidades no passaporte bem como preocupações de segurança. Quando foram solicitadas clarificações, um funcionário responsável pela Síria do Departamento de Estado norte-americano, disse à SyriaUntold que “para viajar para os Estados Unidos, os viajantes sírios devem ter passaporte e visa válidos”. Esta resposta automática foi a única oferecida pelas autoridades norte-americanas aos meios de comunicação.

Foram utilizados pseudónimos por motivos de segurança, com excepção de Zaina Erhaim e Khalib al-Khatib.

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