No dia 26 de fevereiro, uma jornalista e apresentadora da emissora curdo-iraquiana Rudaw foi morta durante uma explosão, quando cobria as operações militares de recuperação da capital Mossul, atualmente em posse do Estado Islâmico (EI). A jornalista morreu enquanto entrevistava o comandante de um grupo insurgente perto de uma vala comum do EI, quando uma bomba plantada pelos militantes explodiu – matando Gardi, o comandante e outros quatro combatantes. A explosão também feriu o câmera da TV Rudaw, Younis Mustafa. De acordo com um tweet da TV Rudaw, Mustafa já teve alta do hospital e está se recuperando.
A história de Gardi não é incomum no Iraque. Grupos de direitos humanos preocupam-se com o fato de que ela não foi a última a perder a vida trabalhando como repórter, em um país onde, de acordo com a organização Committee to Protect Journalists (Comitê de Proteção dos Jornalistas), no minímo 178 jornalistas foram assassinados desde 1992. A ONG iraquiana Journalistic Freedoms Observatory (Observatório de Liberdade Jornalística, ou JFO na sigla em inglês), que promove a liberdade de imprensa no país, contabiliza que 299 jornalistas, técnicos e auxiliadores da mídia foram assassinados desde 2003. A divergência entre esses dados reflete o uso de metodologias diferentes: o CPJ somente conta casos confirmados de mortes diretamente relacionadas ao trabalho dos jornalistas e as fatalidades que ocorreram enquanto estes faziam coberturas de guerras e conflitos. Por outro lado, o relatório do JFO aparentemente inclui casos não-confirmados.
Enquanto o conflito iraquiano continua, ameaças a jornalistas e profissionais de imprensa também persistem. Por causa de suas táticas brutais, as violações da liberdade de imprensa cometidas pelo EI são cobertas extensivamente. Contudo, jornalistas no Iraque também enfrentam ameaças de grupos militantes e de autoridades do governo.
“Uma armadilha mortal”
Um relatório publicado pela JFO, em colaboração com a ONG Repórteres Sem Fronteiras, demonstra o impacto do EI na liberdade de imprensa do país. Desde que o grupo extremista tomou posse de Mossul, em junho de 2014, a cidade virou “uma armadilha mortal” para jornalistas.
Entre junho de 2014 e o começo de 2017, quando a versão atualizada do relatório foi publicada, as organizações documentaram o sequestro de 48 jornalistas, profissionais de mídia e estudantes de jornalismo pelo EI em Mossul. Treze do capturados foram assassinados, enquanto 25 foram libertados graças a várias mediações entre clãs e tribos locais. Porém, eles só saíram do cativeiro depois de serem torturados e forçados a jurar que nunca mais trabalhariam como jornalistas. O que aconteceu com os dez restantes continua um mistério.
Atiradores do EI foram responsáveis pela morte de jornalistas na linha de frente, enquanto estes cobriam a batalha iraquiana contra o grupo terrorista. No dia 22 de outubro de 2015, Ali Risan, um câmera da emissora Al-Sumaria, foi morto enquanto filmava os conflitos entre as forças armadas do Iraque e o EI, quando a bala de um atirador o atingiu no peito. Um dia antes, outro jornalista, Ahmet Haceroğlu da TV Türkmeneli, morreu enquanto cobria os combates entre os militantes curdos e o EI na cidade de Kirkuk. De acordo com a emissora e a polícia, Haceroğlu também foi atingido no peito por um atirador do EI.
“Nos útimos três anos, nós perdemos muitos jornalistas. Alguns foram executados pelo Daesh [sigla do Estado Islâmico em árabe] em regiões ocupadas pelo grupo terrorista, e vários outros morreram apenas cobrindo as batalhas”, relata Bahar Jasim, um jornalista freelancer e blogueiro iraquiano. Jasim saiu do Iraque em 2014 por receio dos perigos relacionados a sua profissão.
Jasim espera que o fim da guerra com o EI poderá “pelo menos acabar com os assassínios de jornalistas pelo grupo” e que os jornalistas “não precisarão mais cobrir conflitos, nem colocar suas vidas em risco”. Mesmo que as forças armadas iraquianas estejam progredindo nas últimas semanas, uma conclusão para a batalha ainda não está prevista, como também não está claro se essas medidas reduzirão as ameaças terroristas no país. Crucialmente, os riscos enfrentados por jornalistas no Iraque não acabarão com a derrota do EI, pois eles também estão a mercê dos insurgentes armados.
O perigo dos militantes
Renad Mansour, pesquisador acadêmico especializado na situação do Iraque, anteriormente afiliado ao Carnegie Middle East Center em Beirute, estima que há entre 60 e 70 grupos armados no Iraque, cada um com cerca de 90.000 e 100.000 membros. Dados do governo estimam que há 140.000 militantes no país. Alguns dos insurgentes são afiliados a partidos políticos: por exemplo, o parlamento iraquiano contém membros da Organização Badr; enquanto outros têm laços fortes com o governo.
A história dos militantes no Iraque começa durante a era de Saddam Hussein, quando alguns grupos se formaram para contra-atacar o regime. Outros, como o Sarayat al-Salaam (outrora conhecido como Exército Mahdi) foram criados em oposição a invasão americana no Iraque em 2003.
Com ou sem associações governamentais, o impacto dos insurgentes no trabalho jornalístico é o mesmo. De acordo com Jasim, “o topo da pirâmide desses grupos e das forças armadas não devem ser tocados.”
Os militantes “põem a vida dos jornalistas em risco, pois restringem a liberdade de expressão no país”, disse Mustafa Saadoon, jornalista iraquiano e diretor do Observatório Iraquiano para os Direitos Humanos, numa entrevista por email ao Global Voices. Ele acrescentou que:
You find Iraqi journalists trying their best not to address anything that could harm the interests of those armed groups or powerful people who were complacent in abusing any journalist covering them to reveal their [involvement] in corruption or human rights violations.
Você encontrará jornalistas iraquianos tentando fazer o possível para evitar qualquer coisa que possa danificar os interesses desses grupos armados ou de pessoas poderosas que foram complacentes aos abusos de qualquer jornalista que tentasse expor suas participações em corrupção e em violações de direitos humanos.
Hoje em dia, os insurgentes são considerados a “chave” da luta contra o EI, grupo militante fundamentalista que em 2014 capturou territórios sírios e iraquianos, incluindo a cidade de Mossul. Entretanto, os grupos também foram acusados de violações dos direitos humanos, descritos pela organização Human Rights Watch como “possíveis crimes de guerra”. Por exemplo, em 2016 membros de dois grupos militantes xiitas raptaram e mataram “um monte” de cidadãos sunitas em uma cidade na região central do Iraque e também destruíram e saquearam várias residências.
“Enquanto a guerra se intensifica, e o número e a influência de grupos armados cresce, a pressão sobre os jornalistas iraquianos aumenta também,” Saadoon conta ao Global Voices. “Quanto mais grupos aparecem, mais abusos de direitos humanos e atos ilegais vão acontecer.”.
A continuação dos ataques e dos conflitos significa que os insurgentes podem aumentar suas medidas para silenciar seus críticos, inclusive os jornalistas que expõem suas práticas abusivas e violações de direitos humanos.
Afrah Shawqi foi uma das jornalistas atacadas pelos militantes. No dia 26 de dezembro, oito homens armados vestindo roupas comuns, que se identificaram como membros das forças de segurança, abduziram Shawqi de sua casa, libertando-a nove dias depois. Em cativeiro, ela foi interrogada sobre o seu trabalho como jornalista. No dia anterior, Shawqi tinha publicado um artigo que fazia crítica à impunidade dos grupos armados. Ela também foi interrogada sobre uma reportagem falsa publicada no jornal saudita Al-Sharq Al-Awsat, que menciona um suposto aumento em gravidezes pré-matrimoniais durante um evento religioso xiita na cidade iraquiana de Karbala. A reportagem foi usada como justificativa para apreender Shawqi, mesmo com a jornalista tendo deixado de trabalhar para o jornal Al-Sharq Al-Awsat vários meses antes de sua publicação em novembro do ano passado.
In July if not earlier, Shawqi was said to be on a militia “black list” of hostile journalists & received threats: https://t.co/t4eqfNTBsz
— Nathaniel Rabkin (@NateRabkin) December 28, 2016
Em julho, se não antes, Shawqi foi alegadamente incluída numa “lista negra” de jornalistas adversos e foi ameaçada pelos militantes.
Some say Shawqi kidnapped because of recent article on police abuse. But might be b/c of her past work with al-Sharq al-Awsat newspaper
— Nathaniel Rabkin (@NateRabkin) December 28, 2016
Alguns dizem que Shawqi foi raptada por causa de um artigo sobre o abuso policial. Mas talvez seja por causa de seu trabalho antecedente com o jornal al-Sharq al-Awsat.
No evidence that Shawqi had anything to do with that bogus a-Sharq al-Awsat article, but could still be an excuse for militias to kidnap her
— Nathaniel Rabkin (@NateRabkin) December 28, 2016
Não há evidências que Shawqi teve qualquer envolvimento com aquele artigo falso do al-Sharq al-Awsat, o que ainda foi usado como justificativa para capturá-la.
A impunidade e falta de ação governamental
Afrah Shawqi não pôde identificar seus sequestradores, mas disse que eles pareciam ser de “um grupo armado desordenado”. Mesmo que o governo iraquiano tenha promtetido punir os raptores, a justiça parece improvável. A impunidade pelos crimes cometidos contra jornalistas no Iraque é muito grande. O país lidera a lista do CPJ de assassinatos impunes, com 110 casos não-resolvidos desde 1992.
Esses casos continuam a preocupar jornalistas e entidades de direitos humanos. Saadoon diz que o governo e as instituições judicais iraquianas não se posicionam quando jornalistas são sujeitos a abusos.
As autoridades iraquianas não são apenas acusadas de impunidade: também são culpadas por ataques contra a imprensa. O JFO documentou vários casos de seguranças atacando jornalistas. No dia 2 de janeiro, a polícia dispersou um protesto em apoio a Afrah Shawqi, que ainda estava em cativeiro, de uma forma violenta. Eles dispararam balas no ar e bateram em sete jornalistas durante o incidente. Em outra ocasião, no dia 14 de fevereiro, um policial na cidade de Karbala apontou sua arma para o jornalista da NRT TV Haidar Hadi, insultando-o, ameaçando assassiná-lo e impedindo sua entrada no edifício do governador para cobrir a visita do embaixador da Alemanha.
Todas as autoridades governamentais envolvidas “não estão fazendo seus deveres”, especialmente quando se trata da proteção dos direitos de imprensa e de liberdade em geral, relata Jasim ao Global Voices. Ele dá o exemplo da Comissão de Comunicações e Mídia, criada em 2003 por ordem da Autoridade Provisória da Coalizão para agir como “uma instituição administrativa independente e sem fins lucrativos” que monitora as telecomunicações e a imprensa local de acordo com o Artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que garante o direito da livre expressão de opiniões. Entretanto, a comissão é constantemente “ativa na perseguição de programas de TV contrariantes”, diz Jasim. Em abril de 2016, o órgão ordenou a suspensão de um talk show satírico da Alsumaria TV, o Albasheer Show, por desrespeitar o código de conduta profissional e pela sua “linguagem e conotações ofensivas.”.
Nos últimos dias, as forças iraquianas estão avançando para tomar posse de Mossul, o último bastião do poder do EI no Iraque. Se conseguirem tirar o EI do país, os jornalistas talvez possam respirar com mais calma. Porém, as pressões e ameaças que eles enfrentam não param por aí. Por um lado, eles continuarão em risco de ataques pelos militantes armados, que não toleram críticas e reportagens independentes sobre seus atos violentos. Por outro lado, também enfrentarão abusos constantes de policiais e a inatividade do governo na punição dos perpetradores de violações da liberdade de imprensa e da mídia.