A Comissão de Verdade da Gâmbia continua a enfrentar os abusos ocorridos no governo do antigo presidente

O ex-presidente da Gâmbia, Yahya Jammeh. 1º de setembro de 2003. Foto cedida pelo IIDS / Boletim de Negociações da Terra, por meio do projeto Wikimedia Commons.

A exemplo da Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul, criada após o fim do apartheid, a Gâmbia instituiu sua própria Comissão de Verdade, Reconciliação e Reparação (TRRC), com o objetivo de tratar as violações generalizadas dos direitos humanos ocorridas durante o governo de 22 anos do ex-presidente Yahya Jammeh.

A TRRC foi lançada em 15 de outubro de 2018 no Dunes Hotel, em Banjul, a capital do país. Em 7 de janeiro de 2019 as audiências começaram oficialmente, perante uma comissão constituída por 11 pessoas. O plano é ouvir depoimentos pelos próximos dois anos.

No mês passado, pessoas diretamente envolvidas nos crimes mais graves foram ouvidas pela Comissão, trazendo à tona os horrores vividos pelos gambianos sob o regime de Jammeh – incluindo as consequências de uma fracassada tentativa de golpe para destitui-lo, ocorrida em dezembro de 2014.

A plataforma on-line Law Hub Gâmbia, uma organização jurídica independente, explica que a Comissão da Verdade foi estabelecida porque os responsáveis ainda não foram levados a julgamento.

As a direct result of 22 years of authoritarian rule, human rights violations were widespread. In most cases, there was no effective investigation and perpetrators have not been brought to justice. On December 13, 2017, the Truth, Reconciliation and Reparations Commission Act was adopted by the National Assembly and assented to by the the president on January 13, 2018.

Como resultado direto de 22 anos de governo autoritário, as violações dos direitos humanos foram generalizadas. Na maioria dos casos não houve investigação efetiva, e os criminosos não foram levados a julgamento. Em 13 de dezembro de 2017, a Lei da Comissão de Verdade, Reconciliação e Reparação foi adotada pela Assembleia Nacional e posteriormente aprovada pelo presidente, em 13 de janeiro de 2018.

A organização não governamental de direitos humanos Article19.org, explica o tipo e a intensidade das violações dos direitos humanos durante o mandato do ex-presidente Jammeh, entre 1994 e 2016:

Between 1994 to 2016, under President Yahya Jammeh’s regime, Gambian citizens suffered numerous human rights violations. These included murder, extrajudicial killings, torture, enforced disappearances, physical assaults, arbitrary arrests and detention, the arbitrary closure of media outlets and the systemic intimidation and harassment of influential and critical voices who spoke out. These violations were perpetrated by the security forces and condoned by a compromised judiciary with blatant disregard for international human rights standards. There were no mechanisms for access to justice for victims of human rights violations and the perpetrators were not punished.

Entre 1994 e 2016, sob o regime do presidente Yahya Jammeh, os cidadãos da Gâmbia sofreram inúmeras violações dos direitos humanos, incluindo assassinatos, execuções extrajudiciais, tortura, desaparecimentos forçados, agressões físicas, prisões e detenções abusivas, fechamento arbitrário de meios de comunicação e intimidação sistêmica e assédio às vozes influentes e críticas que se manifestaram. Essas violações foram cometidas pelas forças de segurança e toleradas por um poder judiciário comprometido, demonstrando um flagrante desrespeito pelos padrões internacionais de direitos humanos. Não havia mecanismos de acesso à justiça para as vítimas de violações dos direitos humanos, e os responsáveis não eram punidos.

Nas eleições presidenciais de dezembro de 2016, Jammeh surpreendentemente foi derrotado pelo atual presidente, Adama Barrow, e atualmente vive exilado na Guiné Equatorial.

‘Não há limite para o que será revelado’

Em 26 de julho, o jornalista Mustapha K. Darboe escreveu sobre o “famigerado esquadrão da morte” do presidente Jammeh – Os Junglers:

There seems to be no limit to what will be revealed before Gambia’s Truth, Reconciliation and Reparations Commission. This week, the first three members of former president Yahya Jammeh’s infamous hit squad – the Junglers – testified. They claimed responsibility in a number of high-profile murders, including the execution of dozens of migrants in 2005. And they said the chain of command leads to Jammeh himself…

Parece não haver limite para o que será revelado perante a Comissão da Verdade, Reconciliação e Reparação da Gâmbia. Nesta semana, os primeiros três membros do abominável esquadrão da morte do ex-presidente Yahya Jammeh – Os Junglers – testemunharam. Eles assumiram a responsabilidade por vários assassinatos notórios, incluindo a execução de dezenas de migrantes em 2005. E afirmaram que a cadeia de comando leva ao próprio Jammeh…

“Parece não haver limite para o que será revelado perante a Comissão da Verdade, Reconciliação e Reparação da Gâmbia.” – Mustapha K. Darboe, jornalista

Alguns dos homens que testemunharam parecem não compreender a gravidade de suas ações. O brigadeiro-general Alagie Martin, um oficial sênior do exército gambiano, acusado de sérios abusos aos direitos humanos, alega ter espancado vítimas – mas nega que as tenha torturado.

Martin supostamente torturou Sana Sabally – então vice-presidente das Forças Armadas – juntamente com outros soldados, entre meados dos anos 1990 e início dos anos 2000.

O jornalista Lamin Njie relata como Martin respondeu às perguntas de Essa Faal, principal advogado da Comissão:

…[Sana Sabally] was ‘beaten, butt-stroked slapped, all those things have been done to him because he refused to talk.’ When Faal [asked] him if he was satisfied to call it ‘beaten’ but would not call it ‘torture,’ the top general shook his head and said: ‘No. No. It’s not torture.’

… [Sana Sabally] foi ‘espancado, levou coronhadas, todas essas coisas foram feitas porque ele se recusou a falar’. Quando Faal [perguntou] se ele estava satisfeito em chamar isso de ‘espancamento’, mas não de ‘tortura’, o general balançou a cabeça e disse: ‘Não. Não. Isso não é tortura.’

Jallow confessed that he participated in the extrajudicial killing of dozens of Ghanaians and other nationals who were reportedly arrested while attempting to go to Europe through the so-called back-way. He also confessed to torturing Imam Baba Leigh, Imam Bakawsu Fofana, another person he couldn’t remember and the December 30 [2014] alleged coup plotters.

Jallow confessou que participou do assassinato extrajudicial de dezenas de ganenses e outros cidadãos, que teriam sido presos enquanto tentavam ir para a Europa através da chamada “porta dos fundos”. Ele também confessou ter torturado o imã Baba Leigh, o imã Bakawsu Fofana, outra pessoa de quem não conseguia se lembrar e os supostos golpistas de 30 de dezembro de 2014.

O passado trará consequências desagradáveis ao presente?

A procuradora do Tribunal Penal Internacional (TPI), Fatou Bom Bensouda, serviu ao lado do presidente Jammeh por muitos anos, o que fez com que durante a TRRC da Gâmbia os críticos se perguntassem se o passado a perseguirá.

Bensouda é conhecida por “caçar tiranos” em seu papel como promotora do TPI. No entanto, Darboe e seu colega jornalista Thierry Cruvellier observam que, em 1995, Bensouda atuou como diretora adjunta de processos judiciais e foi promovida a assessora jurídica por Jammeh. Em 1998, assumiu o cargo de advogada-geral e secretária jurídica de Jammeh, subordinada diretamente a ele, e posteriormente foi nomeada procuradora-geral e ministra da justiça – cargo que ocuparia por dois anos:

…During the first six years of the dictatorship, Fatou Bensouda enjoyed a meteoric and remarkable career to reach the highest national judicial and political positions in the field of justice, under a regime in which the judicial system was marked by multiple and serious violations of the law, the systematic practice of torture, the fabrication of evidence, illegal detentions, enforced disappearances and deaths in custody.

… Durante os primeiros seis anos da ditadura, Fatou Bensouda desfrutou de uma carreira meteórica e notável, alcançando as mais altas posições judiciais e políticas nacionais no campo da justiça, sob um regime em que o sistema judicial era marcado por múltiplas e sérias violações da lei, prática sistemática de tortura, fabricação de provas, detenções ilegais, desaparecimentos forçados e mortes sob custódia.

Didier Gbery, representante da Gâmbia no Centro Internacional de Justiça de Transição, detalha o papel e o propósito de instituições como a TRRC:

Truth-telling is not a sport for victors and losers. The public hearings should be a safe space where victims can finally share their stories, not one granted to the perpetrators, or to a public that is impatient only to hear perpetrators speak. Countries grappling with cycles of violence and repression have placed victims at the center of a truth-telling exercise; this is so that the nation can acknowledge, heal, learn from their suffering and restore their dignity.

Otherwise, the TRRC could become a platform for perpetrators to be lionized and victims to once again be relegated to second place.

Dizer a verdade não é um esporte para vencedores e perdedores. As audiências públicas devem ser um ambiente seguro no qual as vítimas possam finalmente compartilhar suas histórias, e não um espaço concedido aos agressores ou a um público impaciente para ouvir apenas o que eles têm a dizer. Os países que enfrentam ciclos de violência e repressão colocaram as vítimas no centro desse exercício de dizer a verdade. O objetivo é que o país possa reconhecer o sofrimento, curá-lo, aprender com ele e restaurar a dignidade dos afetados.
Caso contrário, a TRRC pode se tornar um palanque para que os criminosos sejam tratados como celebridades, deixando as vítimas novamente relegadas a segundo plano.

Internautas, como o ativista de direitos humanos Pasamba Jow, concordam:

@TRRC_Gambia em total solidariedade com esta importante instituição. Nenhuma artimanha pode fazer com que as pessoas da TRCC caiam em descrédito. Justiça para as vítimas
#trrcthepeoplescommission # NeverAgain

Extensas violações de direitos humanos no governo de Yahya Jammeh deixaram os gambianos com inúmeros casos a serem processados. Fazer ao menos uma pequena diferença nesses casos custará dinheiro e aumentará o sofrimento humano – mas os sobreviventes e as famílias das vítimas estão contando com isso.

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