As declarações de Vladimir Putin e de seus assessores próximos sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia incluem uma expressão-chave: “Русский Мир” (Russkiy Mir). Essa expressão significa, literalmente, “mundo russo”, mas também pode ser interpretada como “paz russa”, devido ao duplo sentido da palavra “mir“, em russo.
O termo é usado para justificar o ataque à Ucrânia, que, nas palavras de Putin, é chamado de “operações militares na Ucrânia”. Com essa denominação, o Kremlin se intitula um defensor e detentor de tudo o que afirma estar dentro da esfera da cultura russa.
Segundo uma pesquisa pública de 2012, do site da Russkiy Mir Foundation, uma organização criada em 2007 pelo presidente Vladimir Putin para “popularizar a língua russa”, o mundo russo é entendido como aquele que se refere aos territórios habitados por pessoas das etnias russas, que falam russo, ou associados à cultura russa. Isso inclui a Rússia, propriamente dita, e se estende a locais como o norte do Cazaquistão, a Bielorrússia, regiões de Donetsk e Luhansk, leste da Ucrânia, a região de Transnístria, na Moldova, a Ossétia do Sul e Abkhazia, na Geórgia, além da Sérvia e de Israel.
O mesmo site também vincula o conceito de “Russkiy Mir” à crença ortodoxa russa:
Согласно патриарху, ядром Русского мира являются Россия, Украина, Белоруссия. В основе его лежит православная вера, которую мы обрели в общей Киевской купели крещения. Русская культура не умещается в границах одного этноса и не связана с интересами одного государства.
Segundo o patriarca (líder da igreja russa ortodoxa), o núcleo do Russkiy Mir inclui a Rússia, Ucrânia e Bielorrússia. Tem como base a fé ortodoxa, que encontramos em comum na fonte batismal da Rússia de Kiev. A cultura russa não está limitada por fronteiras de uma etnia e não está ligada aos interesses de um Estado.
O termo foi primeiramente encontrado no século 21, em textos religiosos. Obviamente, a definição do patriarca descreve diversos elementos do que, às vezes, é retratado como poder de influência russo. Inclui o aspecto geopolítico, que aponta as três nações eslavas como intrinsecamente unidas, uma continuidade histórica da Rússia de Kiev, a civilização que se desenvolveu, desde o século 9, desde a Kiev atual, e incluiu boa parte da Ucrânia, da Bielorrússia e da Rússia.
Em 1996, a Rússia e a Bielorrússia anunciaram a criação da União da Rússia e Bielorrússia, que já ressaltava a ambição de Moscou de expandir seu território sobre aqueles que surgiram da Rússia de Kiev.
A Rússia ampliou o uso do termo “mundo russo” em 2014, quando anexou a Crimeia e pediu apoio às regiões separatistas de Donetsk e Luhansk, no leste ucraniano. O argumento do Kremlin é de que o governo de Kiev impôs uma ucranização forçada, proibindo a utilização da língua russa e agindo com discriminação contra falantes de russo, atacando, deste modo, o imaginado território do mundo russo. As alegações russas servem como justificativa para o seu controle de grandes populações e territórios, que entende como essenciais para conceber sua “identidade russa”.
Tais alegações trazem consequências de longo prazo para outras regiões do antigo espaço soviético, frequentemente descrito, na língua de Moscou, como o “Ближнее зарубежье“, ou o Exterior Próximo, onde vive uma comunidade russa considerável e a língua russa continua relevante.
A mesma alegação de 2014 está sendo utilizada por Moscou, novamente, para justificar os ataques a Kiev: uma Ucrânia pró-Ocidente está sendo retratada como renunciando sua identidade do mundo russo para adotar “valores estrangeiros”, como o feminismo, os direitos da comunidade LGBTQI, e recusando o russo como língua oficial. Canais midiáticos tradicionais e redes sociais pró-Kremlin frequentemente empregam o termo “Гейропа” (“Gayropa”, uma fusão das palavras “gay” e “Europa”) para condenar o que consideram como decadência do mundo Ocidental e uma ameaça direta ao mundo russo.
Antes de invadir a Ucrânia, Putin fez um discurso histórico, em 21 de fevereiro, no qual utilizou mais da metade do tempo para dar a sua própria interpretação da história antiga e moderna dos territórios ucranianos, russos e entidades estatais, e declarou que a Ucrânia pertence ao mundo russo.
Com essa fala ofensiva e manipuladora, o ataque à Ucrânia tornou-se a “libertação da Ucrânia“. Em nome do mundo russo.