“Pornô de revanche” leva a morte trágica de duas garotas no Brasil

Num curto espaço de tempo duas garotas cometeram suicídio após homens terem divulgado vídeos e fotos íntimas nas redes sociais. O tema do vazamento de material íntimo na rede ganhou destaque no noticiário brasileiro no mês passado com o caso #ForçaFran, em que uma jovem da cidade de Goiânia teve um vídeo compartilhado através do aplicativo WhatsApp, despertando o debate em torno do machismo e controle do corpo feminino pela sociedade. Porém desta vez as consequências foram ainda mais trágicas.

Mensagens deixadas por Júlia Rebeca no seu perfil de Twitter (@coejuju).

Mensagens deixadas por Júlia Rebeca no seu perfil de Twitter (@coejuju).

Um dos casos ocorreu na cidade de Parnaíba, no Piauí, no dia 10 de novembro. A adolescente Júlia Rebeca gravou o vídeo que a envolvia a ela, um rapaz e outra  garota, e foi posteriormente divulgado através do Whatsapp, ferramenta cada vez mais utilizada para a divulgação de vídeos íntimos. O vídeo foi se espalhando até chegar a ser compartilhado na internet. A adolescente chegou a anunciar no Twitter o próprio suicídio que acabou por cometer com o fio da prancha de alisar cabelo. Foi encontrada pela família morta em seu quarto.

A outra garota que participou do vídeo também chegou a tentar suicídio por meio de envenenamento, porém foi socorrida a tempo e sobreviveu.

O outro caso semelhante ocorreu apenas quatro dias depois, desta vez com a adolescente Giana Laura Fabi, da cidade de Veranópolis, interior do Rio Grande do Sul, que foi encontrada enforcada em sua casa pela família. A jovem mostrou os seios para um garoto numa conversa de Skype, e ele confirmou à polícia que deu um “printscreen” (comando para copiar a tela do computador) e divulgou a imagem entre amigos. Uma amiga de Giana recebeu a foto e a alertou sobre o ocorrido. A amiga da adolescente relatou à polícia que ela ficou transtornada com o que estava acontecendo.

Machismo que mata

Alguns textos refletindo sobre os episódios envolvendo o vazamento de materiais íntimos focaram no machismo e falta de caráter de homens que divulgam estes materiais, muitas vezes como  forma de  vingança ou revanche, ou simplesmente como forma de ganhar status entre seus pares.

Slut Walk (Marcha das Vadias) – Sao Paulo, 4 de junho de 2011. Num dos cartazes lê-se “Meu corpo, minhas regras”. Foto: Andre M. Chang copyright Demotix.

A blogueira Camila Pavanelli ressalta que a tragédia destes casos – tanto das meninas que cometeram suicídio, quanto de casos como da Fran, de mulheres que tiveram suas vidas devastadas – é provocada pelo machismo da sociedade:

O problema não é que ela transou. O problema não é que ela tirou foto enquanto transou. O problema não é que o ex-namorado é louco e/ou mau-caráter e ELA deveria ter arrumado homem melhor. Em suma, o problema não é que ela estava usando minissaia, como costumam dizer em caso de estupro.

O problema mesmo é o machismo.

Camila ainda reforça que as mulheres são julgadas como culpadas não importa qual seja sua atitude, relatando uma situação pela qual ela própria passou. Ela reflete:

O que as pessoas não entendem é que sempre se dá um jeito de botar a culpa na mulher. Se transou, é porque deu, então é puta; se não transou, é porque não quis dar, então é histérica. De qualquer forma, é culpada.

A blogueira Lady Rasta também problematiza o tema, questionando as recomendações para que as meninas tomem mais cuidado com suas companhias e com o que fazem:

Em uma semana, continuamos a ler e ouvir a mesma cantilena de sempre: que como os homens não mudam e a sociedade “é assim mesmo”, nós temos que ensinar as meninas a não se deixar filmar; que como “os homens (vocês sabem, esses menininhos grandes inimputáveis que não sabem o que é certo é errado, tadinhos deles) dividem mulher em pra casar e pra zoar, nós temos que ensinar nossas filhas a se comportar” (não sei bem o que é se comportar – pra mim ainda é não roubar o lanche do amiguinho, mas enfim, sou moça antiga).

Tá errado, gente. Não é assim que as coisas vão mudar.

Esta perspectiva se evidencia na medida em que os homens envolvidos nos vazamento de materiais íntimos são vistos como prodigiosos e permanecem incólumes diante da situação, enquanto as mulheres envolvidas têm suas vidas devastadas e são condenadas e responsabilizadas, mesmo pelas mais trágicas consequências.

Nas redes sociais espalharam-se comentários infelizes com forte cunho moralista e muitas vezes contraditório, muitos deles vindos de mulheres repetindo o tom “se filmou é porque quis”, ou “[o vídeo] não era de uma menina inocente. Era de uma pessoa experiente no sexo”, como se pode ler logo abaixo do artigo Caso Júlia: Localizado novo vídeo de sexo e amiga tenta suicídio com veneno.

“Pornô de revanche”

O problema do “pornô de revanche”, nome como o fenômeno ficou conhecido pelo mundo, de fato necessita de respostas rápidas da sociedade, para evitar que episódios trágicos como estes voltem a acontecer. Projetos de lei para prevenir e prever sanções legais especificamente para estes casos vem sendo discutidos em todo mundo. No Brasil, o deputado federal Romário apresentou um projeto de lei que criminaliza a divulgação indevida de material íntimo.

Porém, o debate sobre as raízes pelas quais as mulheres são colocadas nesta situação também é necessário e urgente, como ressaltou o jornalista Lino Bocchini em seu post “Quem é culpado pelo suicídio da garota de Veranópolis?”:

Vivemos numa sociedade que cobra a cada instante que você tenha sucesso. E, no caso das mulheres, por sucesso entenda-se uma cruel e impossível equação na qual você tem que ser magra, bonita e gostosa mas, por outro lado, não pode ser “fácil”, tem que “se dar o respeito”. Tem que ser bem sucedida profissionalmente. E tem que assistir o exemplo de uma mocinha da novela das oito que, aos 17 anos, usa shorts minúsculos e rebola para milhões de pessoas toda noite mas, fora das telas, assume o papel de futura esposa respeitosa do namorado jogador de futebol famoso.

As mulheres brasileiras são colocadas nesta difícil dicotomia entre a valorização da sensualidade e seu alijamento da sexualidade, e como colocou Lady Rasta, são divididas em categorias:

A mulher tem que ser precavida, se guardar, ser ciosa do seu “tesouro” (em que século estamos estamos mesmo?), que não deve ser visto a despeito de todas as câmeras existentes no mundo. Ela, ELA deve ser responsável, já que os homens, esses irresponsáveis, não entendem que todas as mulheres são iguais e “eles” decidiram que “tem mulher pra casar e mulher pra zoar”.

Num país que lida de maneira contraditória com a sexualidade e mesmo com o corpo da mulher, como refletiu a fotógrafa Camila Cornelsen, ir além de perspectivas que reforçam as desigualdades de gênero e a repressão parece ser de fundamental importância para que essa e outras formas de violência contra a mulher sejam superadas, como também destacou Camila Pavanelli em seu outro post sobre o assunto: “Precisamos falar sobre sexo”.

A causa número um de suicídio é depressão. A depressão é tratável e o suicídio é evitável. Pessoas passando por crises emocionais podem obter ajuda através de linhas de apoio confidenciais. Viste o website Befrienders.org para encontrar o disque prevenção de suicídio no seu país.

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