Brasil: Execução policial e voyeurismo no YouTube

Na sexta-feira, dia 04/05/2010, surgiu um vídeo no Youtube (o vídeo foi removido) em que aparece um suposto criminoso da Favela do Fallet, no Rio de Janeiro, sendo atingido por um disparo de arma-de-fogo na cabeça. Na cena, a vítima e outras duas pessoas  caminhavam por ruas do morro portando armamento longo, possivelmente fuzis.

As imagens foram captadas pelos próprios atiradores, que se encontravam em posição estratégica. Suas vozes foram captadas e é possível ouvir ao fundo pelo menos duas pessoas diferentes, das quais uma observa os alvos e orienta o atirador. Apesar de estar disponível no YouTube, preferimos postá-lo aqui a partir do Vimeo, na esperança de que sua permanência no ar seja mais duradoura:

Depois de se ouvir a confirmação feita pelos atiradores de que um dos alvos era o “Gordão” (01m08s), e que em determinada posição do local ele estaria “sem cobertura” (01m20s) – gíria policial para designar alguém desprotegido – eles iniciam uma contagem regressiva e, por fim, disparam com uma arma de longo alcance. Tiro certeiro! Os atiradores, então, confirmam “pegou um! pegou um”. A vítima cai ao chão e pede ajuda, sendo arrastado para fora da imagem por outro que estava ao seu lado.

Apesar da incontestável gravidade do conteúdo das imagens, até o momento a repercussão entre blogueiros foi, se não ausente, no mínimo tímida. Dois podem ser os motivos. A banalização da desgraça humana torna o espectador indiferente à miséria e a dor. Além disso, os personagens envolvidos pertencem a um universo de perfis historicamente desenhados: de um lado, traficantes armados em sua rotina de transgressão da lei. Do outro, policiais corajosos no cumprimento do dever. Somando-os, tem-se a receita perfeita para o esquecimento.

Na verdade, até agora nada se sabe sobre quem atirou, tampouco quem morreu. E se realmente morreu. Insere-se nossa tragédia na chamada cifra negra, aquele misterioso percentual de crimes ocorridos, mas que o estado formal e burocrático não tem o conhecimento de sua existência. A maior parte dos comentários deixados na página do vídeo no YouTube critica a polícia, porém não por causa da execução pelas costas, mas por ter errado o alvo e não ter alvejado os outros dois supostos traficantes. Outros elogiam a atuação da polícia. Usuário bolinhajack comenta:

Pelo pouco q eu conheço de armamento… foi um Fal 7.62!
A precisão (alcanse da mira) do Fal, chega no mín. 200 mt's e 600 mt's max.
Mas provavelmente o atirador tinha uma luneta de guerra ao seu poder!
EU ACHO, q deve ser um policial muito bem treinado, mas naum posso dizer com a certeza!
Se foi um policial? Ele fez o trabalho dele!

Foi no Twitter que ocorreu a maioria das manifestações. Roberto Mosca Junior, que assina como o usuário @robertomoscajr, lamentou o fato, parafraseando o ex-oficial do BOPE (grupo especializado da polícia carioca) e roteirista do filme Tropa de Elite, Rodrigo Pimentel:

Com diz o próprio Pimentel, isto aqui é uma guerra particular, a polícia mata o bandido, o bandido mata a polícia ou o outro traficante…

Já José Soares Banana, o @bananinharadio, mostrou-se desolado:

Vendo esse vídeo onde um suposto traficante é alvo de um atirador anônimo no Rio, eu me sinto na terra de ninguém http://is.gd/cJcKJ

O Policial Militar e usuário do Twitter ACM, conhecido por @PMFogger12, bradou o trabalhou dos atiradores, confirmando que os envolvidos eram policiais e traficantes. Segundo ele, o fato aconteceu em setembro do ano passado embora só agora o vídeo tenha sido divulgado:

Só Deus e algumas pessoas sabem que foram os responsáveis pelos disparos que mataram o chefe do trafico na fallet e um do seus seguranças…

lembro que na época os moradores da fallet acusaram a PM de ter matado, um morador inocente, parece que o video desmente os moradores…

só posso disser: parabéns aos atiradores “desconhecidos”! rs

Seguiu-se uma rápida notícia no site do Jornal Hoje, e no portal de notícias G1, ambos do grupo Rede Globo. Em entrevista, o mesmo ex-policial Pimentel afirma que o tiro teve origem em um Hospital Público abandonado, mas que atualmente é ocupado provisoriamente pela Polícia Militar do Rio de Janeiro:

Segundo Pimentel, o vídeo mostra a Rua Eliseu Visconti, que fica próxima aoo Hospital Quarto Centenário, de onde pode ter partido o tiro. O disparo também pode ter sido feito de um muro da Rua Almirante Alexandrino, diz Pimentel. O hospital, que foi desativado, atualmente é ocupado pela PM.

O fardo dos órgãos de segurança pública no Brasil é carregar, por séculos, interferências de agentes políticos na condução de sua estrutura administrativa. Desde muito tempo, polícia e poder executivo estão entrelaçados em uma perigosa trama, que possibilita ao chefe de governo estadual ter, a sua disposição, uma instituição legalmente autorizada a invadir a privacidade do cidadão e produzir provas processuais contra qualquer um.

Quantos aos policiais, grupos humanos mal remunerados que não pertencem sequer à classe média, resta o medíocre papel de braço armado das unidades federais da União e, ao mesmo tempo, a função de limpar as ruas da população residual, que se confunde com o próprio trabalho de segurança pública. Nas folgas, serviços extras (“bicos”) para complementar o salário.

Subtrair a vida de alguém de modo violento e calculado, como é o caso, parece ter sido justificado pela incontroversa prova visual. O cidadão voyeur, antes de reclamar a ausência do Estado em julgamentos arbitrários e criminosos como esse, parece aprová-lo com um silêncio loquaz e também criminoso.

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