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Com Bolsonaro, ataques políticos ganham legitimidade institucional no Brasil

Categorias: América Latina, Brasil, Eleições, Mídia Cidadã, Política, GV Advocacy, Brazil election 2022, Unfreedom Monitor

Imagem do sargento Johnson Barros/Força Aérea Brasileira. Direitos do Autor: Força Aérea Brasileira CC-BY-NC-SA 2.0 [1].

Em julho de 2020, o Meta (então Facebook) anunciou [2] a derrubada de uma rede de perfis, páginas e grupos ligados ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro e ao partido sob o qual foi eleito em 2018, o Partido Social Liberal (PSL), de direita.

De acordo com a gigante da internet, essa rede composta por 33 contas do Facebook, 14 páginas, um grupo e 37 contas do Instagram incluíam contas duplicadas e falsas usadas para “evitar a aplicação de políticas, criar pessoas fictícias fingindo ser repórteres, publicar conteúdo e gerenciar páginas que se passavam como veículos de notícias”.

O conteúdo publicado por essa rede girava em torno de “notícias e eventos locais, incluindo política e eleições, memes políticos, críticas à oposição política, organizações de mídia e jornalistas”, e notícias sobre a pandemia do coronavírus. Alguns dos conteúdos publicados já haviam sido removidos devido à violação das normas comunitárias do Facebook, especialmente no que se refere a discurso de ódio.

Esta não era uma rede qualquer. A investigação da Meta identificou ligações com figuras partidárias e com funcionários dos gabinetes do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o senador Flávio Bolsonaro. Em outras palavras, essa rede complexa e infratora identificada pela Meta estava sendo operada a partir dos escritórios de funcionários eleitos, incluindo o político de mais alto escalão do país: o presidente.

Quase toda a família está envolvida: Carlos Bolsonaro, vereador do Rio de Janeiro, é visto como o cérebro por trás da estratégia de redes sociais de Bolsonaro, acredita-se que ele seja o comandante-chefe [3] de uma complexa operação de ataques e campanhas de difamação.

Ainda que a Meta tenha removido a rede, o estrago já estava feito. A confirmação de que os servidores públicos produziram estes ataques contra os críticos e as instituições democráticas — o que o DFRLab do Conselho Atlântico [4], que investigou a rede a pedido do Facebook, considerou um potencial uso indevido de fundos públicos — aponta para um cenário de ataques políticos institucionalizados.

Por um lado, as investigações da polícia e do Supremo Tribunal sugerem a existência de uma rede elaborada que produz ataques nas redes sociais contra rivais políticos e instituições democráticas que exercem o seu papel na contenção de abusos autoritários. Por outro lado, essa infraestrutura já não é necessária, visto que seus apoiadores [5] sentem-se encorajados e autorizados a promover ataques sem que haja qualquer estrutura de comando.

Um novo relatório [6] publicado pela Agência Pública na véspera das eleições revelou que esta eleição teve pelo menos 75 episódios de violência eleitoral, incluindo duas vítimas e oito incidentes com armas de fogo.

O “Gabinete do ódio”

A rede derrubada pela Meta em julho de 2020 faz parte do que hoje é popularmente conhecido como Gabinete [7] do ódio [8]. Já em outubro de 2019, apenas 10 meses após a posse de Bolsonaro, um comitê de investigação do Congresso começou a investigar [9] assessores presidenciais acusados de contribuir para a propagação de notícias falsas e ataques contra rivais políticos de dentro do palácio presidencial.

Desde então, muito se soube sobre o funcionamento deste grupo. Uma investigação da Suprema Corte sobre manifestações antidemocráticas realizadas para o fechamento da Suprema Corte, do Congresso e do retorno da ditadura militar, aberta em abril de 2020, mostrou correlação [10] entre alvos investigados e funcionários públicos suspeitos de fazerem parte do Gabinete do Ódio.

Foi no âmbito dessa investigação que ex-aliados de Bolsonaro que se tornaram seus inimigos [11] revelaram mais detalhes sobre o funcionamento deste gabinete. A rede é coordenada por três aliados presidenciais, que ordenam outros assessores (a nível federal e estadual) que divulguem postagens ofensivas em páginas e grupos por eles administrados.

Isso permitia que postagens ofensivas ou hashtags contra o Supremo Tribunal Federal e seus membros se espalhassem maciçamente em questão de minutos, explicou a deputada federal Joice Hasselman, que foi uma das aliadas mais próximas de Bolsonaro durante sua campanha. Ela acrescentou que o grupo constrói narrativas em torno dos ataques.

Em fevereiro de 2022, a Polícia Federal entregou um relatório parcial [12] ao Supremo Tribunal, no qual se detalhou ainda mais a estrutura dessas “milícias digitais” encarregadas de coordenar ataques contra políticos rivais, instituições democráticas e a disseminação de “notícias falsas”.

O relatório fazia parte de uma investigação da Suprema Corte (apelidada de “inquérito das milícias digitais”) instaurada em 2021, depois que a Procuradoria-Geral da República solicitou que outra investigação (a que investiga manifestações antidemocráticas) fosse arquivada [13].

No documento, a Polícia Federal informou ao Supremo Tribunal [12] que esta milícia digital opera através da existência de um gabinete de ódio: “um grupo que produz conteúdos e/ou promove postagens em redes sociais atacando pessoas (alvos) previamente eleitas pelos integrantes da organização, difundindo-as por múltiplos canais de comunicação nas redes sociais”.

Para Denisse Ribeiro, Comissária da Polícia Federal, responsável pela investigação, existe uma linha clara separando as ações do grupo e a liberdade de expressão, visto que o grupo se envolve em atos criminosos com o objetivo de “manipular a audiência distorcendo dados, levando o público a erro e induzindo-o a aceitar como verdade aquilo que não possui lastro na realidade”.

Ataques generalizados

O impacto dessa “legitimação dos ataques políticos” pode ser visto em todo o país e tornou-se ainda mais visível durante o período da campanha eleitoral de 2022.

A noção de que tais ataques provêm de alguns dos mais altos funcionários do país pode ter criado uma espécie de passe livre ou isenção para civis atacarem e assediarem violentamente políticos dos quais não gostam, bem como jornalistas e outros civis com os quais discordam.

Estes ataques são assimétricos, afetando as mulheres da política numa escala incomparável. Um relatório produzido pela MonitorA [14], um projeto de monitoramento de violência de gênero on-line desenvolvido pelos grupos AzMina [15], InternetLab [16] e Núcleo Jornalismo [17], identificou que duas mulheres que atualmente são candidatas à presidência receberam mais de 6,6 mil tuítes ofensivos em apenas dois dias após participação em debate presidencial televisionado.

Por duas semanas, a proeminente jornalista política Vera Magalhães tornou-se alvo de repetidos ataques de Bolsonaro e seus aliados, uma demonstração clara de como os ataques do presidente geram uma onda posterior de novos ataques.

Durante o debate presidencial de 28 de agosto, após uma pergunta [18] feita por Magalhães sobre as vacinas e a forma como o governo lidou com a pandemia, o presidente disse [19] que a jornalista “dorme pensando [nele]” e “é uma vergonha para o jornalismo”. No dia 7 de setembro, durante manifestações pró-Bolsonaro que ocorreram em todo o país no dia do Bicentenário da Independência [20], o rosto de Magalhães foi estampado em um banner [21] em uma das manifestações com a mesma frase proferida por Bolsonaro. No dia 13 de setembro, durante o debate para o governo do Estado de São Paulo, o deputado estadual Douglas Garcia [22], aliado de Bolsonaro, repetiu mais uma vez a frase enquanto a filmava. Ela teve que deixar o evento sob escolta policial.

As perspectivas são terríveis ao passo que ataques que antes eram restritos a espaços on-line começam a se traduzir em violência na vida real. Uma pesquisa [23] realizada pelo Observatório da Violência Política e Eleitoral, vinculado à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), revelou que casos de violência política [24], tais como o assassinato de um militante do PT por bolsonarista [25], cresceu 335% desde 2019, quando Bolsonaro assumiu o poder.

Resta saber se o novo governo, o qual as pesquisas de opinião sugerem que será liderado pelo ex-presidente Lula, de esquerda, será capaz de desarmar o clima de violência política generalizada e os ataques contra vozes dissidentes e a imprensa.


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