Bolsonaro celebra independência do Brasil com coração de imperador falecido e com forças armadas

Presidente Jair Bolsonaro em um evento bicentenário pela Independência do Brasil, em Brasília, a capital do país desde 1960| Imagem: Alan Santos/Presidency of the Republic/CC 2.0

O conto da independência do Brasil vai — mais ou menos — assim: Dom Pedro I, um português da realeza que desafiou sua família e decidiu ficar na América do Sul, em vez de voltar para a Europa, proclamou “Independência ou morte”, marcando o processo que fez o país se tornar um império autônomo. Só 67 anos depois que o Brasil seria uma república.

Neste 7 de setembro, durante as comemorações bicentenárias pela independência do Brasil, o discurso do presidente Jair Bolsonaro, do Partido Liberal (PL), tratou mais de si e de seu governo do que da história do país. Ele mencionou comparações entre as primeiras-damas e sua esposa Michelle, recomendou a uma grande multidão de apoiadores que homens solteiros deveriam cuidar de princesas e liderou um canto de “imbroxável”, uma palavra que o New York Times traduziu como “jamais frouxo”, enquanto o The Guardian optou por “imperturbável“.

No meio de uma campanha presidencial, com Bolsonaro concorrendo à reeleição, o sentimento geral parece ser de que as comemorações oficiais com a presença das Forças Armadas foram sequestradas. As multidões eram compostas principalmente por partidários de Bolsonaro, enquanto nos palcos oficiais faltavam representantes de outros poderes.

O chefe do Senado brasileiro, o senador Rodrigo Pacheco, explicou sua ausência dizendo que não estava claro para ele onde as comemorações oficiais terminavam e onde começava a campanha de Bolsonaro. O presidente não compareceu à sessão do Congresso Nacional em homenagem ao bicentenário, um dia depois de participar de eventos em Brasília e no Rio de Janeiro.

A menos de duas semanas das eleições gerais, Bolsonaro ainda está atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas sondagens, por quase 16%.

O governo de Bolsonaro também vem batalhando na frente econômica. Apesar do recente crescimento do PIB, o número de pessoas com fome aumentou durante seu mandato, com aumento também da inflação – ele tem baixado os preços do gás e prometido manter a ajuda financeira como uma tentativa de reverter as pesquisas.

Alguns partidos da oposição denunciaram a confusão entre a campanha de Bolsonaro e o evento oficial à Justiça Eleitoral, e os ministros proibiram o presidente de usar as imagens do evento em sua campanha. Eles entenderam que Bolsonaro deveria estar lá como chefe de Estado, não como candidato, e que isso feriu os princípios de isonomia. Entre as multidões, os apoiadores de Bolsonaro, que concorrem ao Congresso e ao governo do estado, foram vistos fazendo campanha em várias cidades.

Presidente Jair Bolsonaro em um evento para o bicentenário da independência do Brasil, com sua esposa, Michelle Bolsonaro | Imagem: Estevam Costa/PR/CC 2.0

Medo do golpe

Com os recentes discursos de Bolsonaro atacando o STF, as urnas eletrônicas e a transparência nas eleições — ele até convidou embaixadores estrangeiros para apresentar caso (sem provas) em que as eleições poderiam ser fraudadas — as pessoas temiam que um golpe pudesse ser tentado no 7 de setembro. No ano passado, os bolsonaristas tentaram invadir o prédio do STF, o que levou a um reforço nas medidas de segurança este ano.

O resultado foi uma demonstração da força do presidente, com milhares nas ruas, inflamando sua base. Não houve golpe, mas Bolsonaro conseguiu acrescentar mais um capítulo à sua narrativa que consiste também em descreditar os números das pesquisas.

Como afirmou a revista The Economist em um número de capa deste mês intitulado “O homem que seria Trump”, muitas ações sugerem que “[Bolsonaro] parece estar lançando as bases retóricas para reclamar fraude eleitoral e negar o veredito dos eleitores”.

A parceira da Global Voices, Agência Pública, afirma que, em Brasília, tratores utilizados nas manifestações foram trazidos e pagos por empresários do setor agrícola. No Rio, os ônibus que levaram pessoas ao evento foram patrocinados por cristãos conservadores que têm feito campanha para Bolsonaro dentro das igrejas.

Com repórteres nas ruas, a Agência Pública também registrou 52 pôsteres e cartazes diferentes usados por manifestantes, 23 deles tinham mensagens que eram pró-golpe ou atacavam a segurança e a transparência do processo eleitoral. Uma das mensagens, relata a Agência Pública, dizia: “Queremos o presidente Bolsonaro no poder. Intervenção militar no Judiciário, Legislativo e uma nova Constituição criminalizando o comunismo. Já!!!”

Seus repórteres encontraram Jason Miller, ex porta-voz de Donald Trump, que estava promovendo sua plataforma de rede social Gettr durante o evento em Copacabana, no Rio. Ele negou ser apoiador de Bolsonaro, e afirmou que o Brasil é seu segundo mercado. “O Gettr não é político, é sobre liberdade de expressão, embora muitos políticos o usem”, afirmou.

Arrival of the relic with D. Pedro 1st's heart at Brasilia | Photo: Estevam Costa/Presidency of the Republic of Brazil/CC 2.0

Sequestrando o dia da Independência

Em preparação para a data, o governo de Bolsonaro trouxe o coração de Dom Pedro, que foi preservado em um frasco e mantido em uma igreja na cidade do Porto, Portugal, conforme os desejos do imperador/rei falecido. Isso lembrou algo feito durante a ditadura militar — um regime frequentemente defendido por Bolsonaro — para celebrar o 150º aniversário da independência em 1972, quando os ossos de Dom Pedro foram trazidos ao Brasil para serem enterrados aqui.

A antropóloga Lilia Schwarcz, que publicou um livro sobre o “sequestro” das imagens do Dia da Independência, disse à Deutsche Welle que a celebração parecia nostálgica de um passado nem sempre narrado com precisão e esvaziado de conteúdo relacionado aos próprios cidadãos. Ela diz:

A coincidência dos 200 anos da Independência com o período das eleições é terrível para a República, sobretudo sob o jugo, sob o mando de um governo retrógrado e pretensamente populista e nacionalista. (…) São duas datas capitais numa República: a celebração de sua formação enquanto nação soberana e o momento quando o povo pratica sua soberania diante da República.

A repórter Lola Ferreira, do noticiário UOL, capturou uma imagem que mostrava como o dia não era apenas uma celebração do governo de Bolsonaro, mas também incluía muitos que se opunham a ele.

Enquanto as pessoas de moto se dirigiam para o local onde Bolsonaro apareceria no Rio, jovens negros em um ônibus público gritavam com eles. Ferreira relatou mais tarde que o grupo foi parado e revistado pela polícia apenas dez minutos depois que ela tirou a foto. Uma pesquisa recente mostra que Lula tem uma liderança sobre Bolsonaro entre os eleitores negros.

Ao contrário da narrativa bolsonarista de que a data histórica havia sido esquecida até que ele assumiu o cargo, a data é lembrada desde 1995 em um protesto agora tradicional chamado “O Grito dos Excluídos”, que também realizou atos em todo o país, organizados por movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

Em contraste com o discurso eleitoral do presidente, no 200º aniversário da independência do Brasil, as pessoas que vivem nas ruas de São Paulo, a cidade mais populosa da América Latina, o mesmo lugar onde a independência foi declarada dois séculos antes, refletiram sobre o significado da dita independência:

Belisa de Souza, mulher de 32 anos em São Paulo, disse à BBC:

Primeiro, porque o nosso governo hoje em dia não deixa a gente independente. A gente não tem como lutar por nós mesmos. As pessoas aqui precisam de barracas para dormir, entende? Eu não tenho barraca. Eu durmo no chão. Então, como eu sou independente?

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