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Pesquisadores do mundo todo estão aprendendo com o conhecimento de comunidades indígenas. Entenda o porquê isso é importante.

Categorias: Canadá, Equador, Peru, Ciência, Indígenas, Meio Ambiente, Mídia Cidadã
Photo by Jean Polfus

Foto: Jean Polfus / Ensia.com

Este artigo, escrito por Ben Goldfarb [1], foi originalmente publicado  [2]na revista Ensia.com [3], voltada para soluções ambientais em andamento internacionalmente, e é reproduzido aqui como parte de um acordo de compartilhamento de conteúdo.

Na região inóspita de Sahtu, situada no noroeste do Canadá, um distrito tão isolado que no inverno apenas uma única estrada de gelo traiçoeira o liga ao resto do mundo, a vida gira em torno das renas. Durante milênios, tribos da etnia Dene viveram como nômades, conduzindo grandes rebanhos pela região de Sahtu e tomando conta dos animais itinerantes em troca de sua carne, pele e ossos. Embora atualmente os povos indígenas da região residam em aldeias, a caça para subsistência [4] se mantém como elemento central da sua dieta e cultura. A língua dene apresenta expressões para conceitos como “nós crescemos com sangue de rena” e “nós somos um povo com renas”.

Essa convivência próxima, contudo, nem sempre coexistiu tranquilamente com a ciência empírica. Biólogos especializados em animais selvagens estudaram as renas durante muito tempo sobrevoando-as com helicópteros, capturando-as e asfixiando-as com coleiras radiotransmissoras, métodos que alguns Dene enxergavam como desrespeitosos para com as criaturas que eles consideram como membros de sua família. Em setembro de 2012, o Conselho de Recursos Renováveis dos Sahtu aprovou deliberações recomendando [5] que toda pesquisa com a fauna silvestre envolvesse indivíduos das comunidades locais e respeitassem os valores indígenas. Os biólogos ainda poderiam identificar as renas com coleiras, mas também teriam que seguir uma diretriz para utilizarem métodos mais respeitosos e não-invasivos.

O desafio de desenvolver novas técnicas acabou ficando para um grupo de cientistas que incluía Jean Polfus, uma estudante de doutorado em Recursos Naturais da Universidade de Manitoba. O primeiro contato de Polfus com os territórios do noroeste não foi fácil – “estava completamente escuro e frio, e muitos dos encontros aconteceram na língua dene”, recorda, – mas durante as muitas conversas com os líderes das comunidades, ela e seus colaboradores locais elaboraram um projeto visionário: estudariam as populações de renas utilizando DNA extraído de suas fezes. Os caçadores e utilizadores de armadilhas dos Dene, que sempre conduziam os rebanhos durante suas viagens de trenó motorizado, coletariam as amostras – sendo que Polfus recompensava cada um que as levasse com cerca de R$70 em combustível. “Cada amostra acaba saindo muito mais barato do que identificar as renas com coleiras”, afirma Polfus.

Conquistando respeito

Embora biólogos e povos indígenas tenham trabalhado juntos durante séculos, essa contribuição em conjunto foi conturbada em algumas ocasiões. Os cientistas frequentemente buscavam auxílio no conhecimento tradicional, e esse contato por vezes resultou em consequências negativas tanto para a ciência quanto para a subsistência da população nativa. Na década de 1970, por exemplo, pesquisadores dos Estados Unidos concluíram que a população das baleias-da-groelândia estava diminuindo, obrigaram a Comissão Baleeira Internacional, organização global que lida com a conservação e com o comércio de baleias, a impor restrições à caça de comunidades indígenas que dependem dos cetáceos para subsistência. Os nativos do Alaska contestaram a decisão, alegando que apesar de os cientistas do governo terem contado apenas as baleias que vivem em mar aberto, as baleias-da-groenlândia também atravessavam grandes camadas de gelo, utilizando seus crânios enormes para quebrá-las e abrir buracos para respirar. Quando o Serviço Nacional da Pesca Marinha finalmente usou o conhecimento dos nativos para auxiliar suas pesquisas na década de 1980, a estimativa populacional das baleias praticamente quadruplicou [6].

A coisa mais difícil é se sentar em uma sala com cientistas que acham que descobriram alguma coisa, mas sua descoberta científica apenas confirma o que nossa tradição oral sempre soube”, afirma William Housty, membro da Primeira Nação Heiltsuk da província da Colúmbia Britânica e diretor do programa Coastwatch, voltado para ciência e conservação. “Este foi o primeiro obstáculo que tivemos que superar: fazer com que as pessoas pensassem sobre a nossa cultura no mesmo nível que na ciência ocidental”.

Por mais difícil que essa transição tenha sido, no entanto, biólogos especializados na fauna silvestre, como Polfus, mantém uma relação mais respeitosa e participativa com os povos indígenas. Cientistas tornaram-se parceiros dos aborígenes australianos para estudar sua população de tartarugas-marinhas [7]; apoiaram-se no conhecimento dos caçadores da etnia Kaxinawá, na Amazônia, para pesquisar a abundância de espécies de caça  [8], como macacos e veados e coletaram informações dos Yupiks, no Alaska, sobre as migrações das morsas [9]. A veterinária brasileira especializada em animais selvagens Renata Leite Pitman, que estuda a fauna da América Central e da América do Sul há 25 anos, se utilizou do conhecimento local para entender a comunicação, os dejetos e o percurso dos animais ariscos da floresta que ela pesquisa. “Acho que isso é intuitivo – você só aprende a partir daquilo que os povos nativos sempre fizeram”, afirma ela.

A última pesquisa de Pitman envolve a tribo Waorani, que são nativos equatorianos cujos jovens capturam e soltam anacondas verdes, a espécie de cobras mais pesada do mundo, como parte de rituais de passagem que testam sua masculinidade. Desde 2014, Pitman inseriu radiotransmissores em seis anacondas no Equador e no Peru para estudar o deslocamento da espécie na Amazônia. Ela também treinou membros da tribo Waorani para identificar e localizar as cobras, e técnicos indígenas enviam a ela atualizações diariamente através do Skype. Pitman e seus colaboradores Waorani extraíram amostras tanto das anacondas quanto da carne de animais selvagens provinda da caça, que são testadas pelos cientistas a fim de localizar resíduos poluentes derivados da exploração de petróleo. Os répteis gigantes acabaram efetivamente por se tornar indicadores biológicos, cuja carne reflete a qualidade da terra dos Waorani.

O rastreamento de Pitman não revelou apenas os segredos dos percursos escolhidos pelas anacondas – as cobras se mostraram mais terrestres do que ela imaginava, por exemplo -, mas também acabou por fornecer informações valiosas para os Waorani, que faturam consideravelmente com o ecoturismo. “Eles querem tirar proveito levando as pessoas para verem as anacondas”, diz ela. “Esse pode ser um auxílio a longo prazo para a economia”.

O trabalho de investigação colaborativo pode render frutos ainda mais surpreendentes. Marco Hatch, membro da Nação Indiana Samish e ecologista marinho na Northwest Indian College, no estado de Washington, estuda a vegetação costeira da Costa Pacífica Canadense – extensos tapetes entremarés, cercados por paredes rochosas, nos quais povos que habitavam as regiões costeiras costumavam enterrar mariscos há milhares de anos. A pesquisa de Hatch, conduzida em parceria com os nativos, proprietários originais da vegetação, aponta que os mariscos crescem mais e são mais abundantes nesse tipo de flora do que na natureza de um modo geral, e que outras espécies comestíveis, como caranguejos e caracóis, prosperam nas paredes rochosas. “Proprietários de praias não-nativos podem administrar melhor suas terras utilizando métodos e tecnologias desenvolvidos pelos nativos”, afirma Hatch.

Suas conclusões também desafiam a noção historicamente estabelecida de que os povos indígenas do Noroeste eram estritamente caçadores e coletores. “As vegetações costeiras nos fornecem essas modificações enormes e inegáveis nas zonas entremarés”, afirma o pesquisador. “Elas evidenciam a complexidade dos sistemas de alimentação e conhecimento indígenas”.

Olhando para o norte

Hatch e Polfus não são os únicos cientistas que se interessaram pela pesquisa colaborativa no Canadá, onde uma série de processos judiciais reconheceram o conhecimento nativo em termos de gestão dos recursos naturais. Iniciativas como essa deram origem a projetos como o que ficou conhecido por Heiltsuk’s Coastwatch, situado junto do Rio Koeye, na província da Colúmbia Britânica, onde ursos pardos pescam salmão que estão migrando nos rios da densa floresta tropical costeira. Em 2007, Housty e outros nativos Heiltsuk, auxiliados por grupos de preservação do meio ambiente e pesquisadores da Universidade de Victoria, criaram uma rede de armadilhas com arames-farpados, liberando cheiro de salmão como chamariz, que colhiam amostras de pelos dos ursos para que se pudesse analisar o DNA. O projeto de monitoramento revelou uma espécie de “estrada” dos ursos pardos ao longo do Rio Koeye, e ajudou os Heiltsuk a administrarem melhor o seu relacionamento com os ursos – levando, por exemplo, os acampamentos temporários dos mais jovens para longe das áreas mais utilizadas como rota pelos animais.

Os resultados da pesquisa se mostraram tão importantes quanto os seus princípios norteadores: as Gvi’ilas dos Heitsuk, que consistem em um conjunto de regras tradicionais que definem a ligação das Primeiras Nações com a natureza. Se por um lado os valores culturais dos dene os levaram a insistir na implementação de métodos não-invasivos ao se realizar pesquisas com as renas, as Gvi’ilas, de modo similar, exigiam métodos de monitoramento de pelos não intrusivos. “Aquele conjunto de ideias absolutamente fundamentais eram os pilares de tudo o que fazíamos”, assegura Housty. “Uma das mais importantes era o respeito. Se você lida com os ursos de uma forma respeitosa, eles te tratarão do mesmo jeito”.

Há uma linha tênue entre colaborar com os povos indígenas e explorar seu trabalho e seu conhecimento.

Esse respeito, contudo, não é sempre correspondido pelos poderosos. Segundo Housty, quando os Heiltsuk apresentaram às autoridades da cidade seu mapa dos ursos pardos, os responsáveis ignoraram os dados que não batiam com aqueles identificados pelos mapas existentes na província. “Então nós dissemos: dane-se o governo – nós vamos direto para o mercado”, lembra Houst. Os Heiltsuk então levaram seus mapas locais para as empresas madeireiras da região, que se mostraram mais interessadas do que o poder público. “Eles contribuíram um pouco, nós contribuímos um pouco, e nós pudemos mostrá-los aonde era mais viável extrair madeira”.

Se os Heiltsuuk não conseguem entrar em um acordo com as autoridades locais em relação à utilização dos seus métodos invasivos para colheita de amostras e análise de DNA – instrumentos de pesquisa científica do Ocidente -, não deveria ser uma surpresa que os conhecimentos nativos ainda são subestimados em muitos lugares. Em diversos pontos da Colúmbia Britânica, há relatos, por parte das Primeiras Nações, de ursos pardos vivendo em regiões de ilhas costeiras que foram ignorados pelo governo porque o encarregado de rastreá-los “não era biólogo”; posteriormente, análises de DNA revelaram que 10 ilhas abrigavam ursos permanentemente. Segundo uma pesquisa realizada com renas em 2008, alguns pesquisadores utilizam o conhecimento tradicional “apenas quando ele se enquadra em padrões de pensamento atuais de gestão de recursos”. Há uma linha tênue entre colaborar com os povos indígenas e explorar seu trabalho e seu conhecimento.

A linguagem técnica da gestão de recursos naturais também pode impedir uma cooperação real entre as partes. Em um texto de 2004, o antropólogo Marc Stevenson descreveu como palavras aparentemente comuns como “safra” e “cota” podem ser frequentemente utilizadas negociações bilaterais para o gerenciamento e excluir os povos nativos das tomadas de decisões. Quando Steve foi a um conselho de gestão ambiental de baleias na região oriental do Canadá, ele observou que os caçadores indígenas inuítes se recusavam a usar a palavra “mercadoria” para se referirem às baleias-brancas – o conceito não existia na língua inuktitut. Essa terminologia utilitária, alerta Stevenson, pode não ser “apenas desconhecida, estrangeira, mas antiética em relação aos valores, conceitos e perspectivas aborígenes”.

 

Histórias da “moça das amostras de fezes”

Apesar das adversidades, esse tipo de pesquisa colaborativa está em ascensão, e o projeto de Polfus com as amostras de fezes das renas é um exemplo estimulante. Embora seu empenho tenha sido difícil de compreender no início – como Polfus salienta, “Quando o termômetro marca menos 40 graus lá fora e você está no seu esqui, quem quer parar para colher fezes de rena?” -, a notícia se espalhou com o tempo. Em dois anos, Polfus, que ficou conhecida na região como a “moça das amostras de fezes”, recebeu milhares de amostras de dejetos; seu exército de caçadores de recompensas incluía todos, de idosos a garotinhas de 12 anos.

Os testes de DNA de Polfus revelaram três subespécies geneticamente diferentes de renas – rena da floresta boreal, rena da Groelândia e rena das montanhas. Embora essas três subespécies vivam em habitats diferentes, muitas vezes elas podem ser encontradas no interior das florestas boreais, surpreendendo biólogos especializados em fauna silvestre, que não estão certos em relação a exatamente onde começa e onde termina as delimitações de cada uma. Tal incerteza não existe entre os dene, cuja língua possui palavras distintas para os três tipos. Os caçadores dene sabem fazer uma distinção entre as subespécies de renas baseados em sua morfologia, em suas trilhas e até mesmo por meio do seu comportamento – a rena da floresta, por exemplo, fará o caminho de volta caminhando sobre o próprio rastro para despistar predadores.

De acordo com Polfus, o fato de os dene terem desenvolvido diferentes modos e táticas de caça para cada espécie indica que as renas se diferenciaram entre si um passado distante. Ou seja, debruçar-se sobre a língua dos nativos faz com que os a ciência avance na compreensão da história evolutiva e ajuda os pesquisadores a identificarem diferenças sutis, mas fundamentais, entre as subespécies. E as autoridades, por sua vez, já estão prestando atenção nisso: como fruto da pesquisa de Polfus, o Conselho de Recursos Renováveis dos Sahtú se comprometeu a utilizar a palavra tǫdzı, que na língua dos dene designa as renas da floresta boreal, em todas as ocasiões oficiais.

No extremo norte, estudar a ecologia das renas não é um trabalho acadêmico. A extração óleo de xisto não tardará a chegar nos Territórios do Noroeste, e uma melhor compreensão da ecologia e dinâmica populacional das renas deverá auxiliar biólogos e caçadores nativos a administrarem tanto o mercado quanto a fauna e flora selvagens.

Quando você apoia o conhecimento de pessoas que se preocupam em conservar as renas pensando em seus filhos”, afirma Polfus, “é quando sucesso da preservação pode ocorrer verdadeiramente”.


Ben Goldfarb [1] é jornalista ambiental freelancer, e seu trabalho normalmente se concentra na área da gestão da pesca, fauna e flora selvagens. Tem artigos publicados no The Guardian, Scientific American, Earth Island Journal, OnEarth Magazine e High Country News, e mantém a conta @ben_a_goldfarb [10] no twitter.