Simone Veil, a imortal: uma conversa com o autor Pascal Bresson sobre o legado em direitos humanos de Veil

Simone Veil no Parlamento Europeu. 23 de junho de 1984 – CC BY-SA 3.0

Desde 1 de julho de 2018, a lenda dos direitos humanos, Simone Veil, também faz parte do rol de imortais do célebre mausoléu Panthéon de Paris, junto com seu marido Antoine Veil. Uma figura essencial da história francesa moderna representante da sociedade civil, ela sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz para se tornar uma proeminente defensora dos direitos das mulheres e primeira presidente do Parlamento Europeu.

Alguns dias antes da cerimônia de reconhecimento no Panthéon, a Global Voices entrevistou Pascal Bresson, autor de histórias em quadrinhos (HQ) com mais de 40 publicações. Bresson acaba de finalizar uma HQ baseada na vida de Simone Veil. Tivemos uma conversa que explorou o significado do legado de Veil para o contexto político contemporâneo e falamos também sobre o trabalho atual do autor.

Capa da nova HQ de Pascal Bresson, Simone Veil, L'immortelle (Simone Veil, a imortal)

Global Voices (GV): Seu trabalho, Simone Veil, L'immortelle (em português, “Simone Veil, a imortal”; nota do editor: imortal aqui se refere aos membros da Academia Francesa) foi lançada em 27 de junho de 2018 pela Editions Marabulles. Poderia nos contar sobre o contexto dessa obra e suas inspirações para esse trabalho?

Pascal Bresson (PB): Com grande prazer. Essa é a primeira HQ autorizada pela família Veil. Tenho trabalhado nesse projeto há mais de três anos. Depois de visitar o Panthéon em 2014, e preciso dizer isso: desde que eu era criança, sempre tive admiração por essas pessoas maravilhosas que fizeram algo de bom pelo nosso país, vendo todos aqueles túmulos como o de Zola, Jean Jaurès, Victor Hugo, Marie Curie, Jean Moulin, Aimé Césaire etc, me perguntei quem poderia ser o próximo ali.

Imediatamente, Simone Veil pareceu óbvia para mim. Uma mulher que tinha convicções humanistas, independentes e rigorosas com espírito de luta e consciência moral. Uma pessoa forte, cujo destino foi trágico e excepcional. Além da sua imagem de retidão e honestidade, Simone Veil foi, antes de qualquer coisa, uma mulher que abraçou sua era e sua luta. Sua história pessoal estava intimamente ligada com a história coletiva: a guerra, o inferno dos campos de concentração, lei do aborto, a luta pelos direitos das mulheres e o comprometimento com a reunificação da Europa. É inegável que isso tudo é fascinante e intrigante.

Nessas 176 páginas, eu revelo o mistério que cerca a jornada exemplar pela qual ela se tornou um ícone, um símbolo para gerações de mulheres. Desenhando a partir de seus próprios testemunhos, refaço o percurso de uma menininha inteligente e rebelde, nascida em Nice, em 13 de julho de 1927, como Simone Jacob. Mostro o que se passava por trás dos bastidores de suas batalhas políticas, suas feridas e o sofrimento que matizou sua vida. Não é uma biografia de santo e nem um panfleto. Esse livro, feito para leitores dos 7 aos 77 anos (e mais velhos), foi escrito por um autor apaixonado que traz, pela primeira vez numa HQ, uma figura essencial do nosso tempo.

GV: Certamente, Simone Veil é uma figura emblemática na história francesa. Contudo, a maior parte de seu trabalho ainda é desconhecida do grande público. Se você tivesse que resumir o porquê de Simone Veil estar agora no Panthéon, o que mais gostaria de contar sobre a história dela?

PB: Seu livro mais conhecido é, definitivamente, Uma vida. O público em geral tem consciência de sua luta pelo direito das mulheres de escolher abortar, ocorrida em 1974. Mas por outro lado, ao longo de sua vida, ela sempre estava incessantemente travando outras batalhas. Como seu sucesso em conseguir que prisioneiros argelinos que haviam sido vítimas de abusos fossem transferidos para a França. Ela conseguiu asilo político para milhares de membros da FLN (Frente da Libertação Nacional da Argélia)  que estavam reclusos na França. Mas a maior luta que ela teve foi contra a Frente Nacional para terminar a batalha pela Europa. Esse fato é inseparável da nossa memória acerca da Segunda Guerra Mundial.

E agora, Simone Veil estará no Panthéon a partir de domingo, 1 de julho de 2018. Lá, ficará em companhia de seu marido Antoine Veil, que morreu em 2013. Essa é a primeira vez que um homem terá seu lugar no Panthéon como cônjuge. Nesse sentido, faço uma brincadeira sobre o assunto! Quando conheci Simone Veil e seu filho, Jean, lembro de ter comentado com ele que era importante sua mãe ir para o Panthéon. Ele caiu na gargalhada e disse: “Se algum dia minha mãe for para o Panthéon, meu pai terá que segui-la até lá”.

Simone Veil será a quinta mulher a descansar nesse lugar simbólico. Essa será uma linda forma do povo francês demonstrar uma gratidão imensa. Ela merece adentrar esse templo da República. Lembremos que, em 1974, seu marido, Antoine, afastou-se para que sua mulher se tornasse ministra da saúde. Ele é quem estava destinado a se tornar político, não ela. Ele se sacrificou por amor a ela. Não queria ofuscá-la. Eles eram um casal simbiótico. E, pelo menos, descansarão em paz eternamente e nunca mais serão separados.

O autor Pascal Bresson; usada sob permissão.

GV: Você é autor de histórias em quadrinhos há 25 anos. Já cobriu assuntos como humanismo, tolerância, segregação, racismo, injustiça e o dever de lembrarmos a história. Atualmente, o mundo está repleto de situações que parecem injustas ou até mesmo cruéis. Como você vê seu papel de autor no mundo hoje? Que situações injustas, em particular, gostaria de ver resolvidas no futuro? 

PB: Na vida, há dois sentimentos que detesto: injustiça e mediocridade. Às vezes, os dois andam juntos. Injustiça é realmente algo repugnante para mim. Nos últimos anos, me especializei em áreas como humanismo, justiça, sociedade, racismo e ecologia. Me tornei um autor engajado com nosso tempo. Não é coincidência que meu autor favorito é Victor Hugo.

A pergunta sobre qual é o papel de um escritor na sociedade hoje é mais pertinente que nunca. Gostaria de ser um mediador na sociedade, não apenas um espectador, mas com um papel ativo para descrever, criticar, analisar tudo de bom ou de ruim que esteja acontecendo em nossa sociedade.

Um autor tem a função de guardião e transmissor de memórias. Algumas observações sobre a vida são gravadas em papel para que se perpetuem através do tempo. Escrever sempre teve um valor terapêutico para mim. Escrevendo, você pode ajudar a si mesmo e a outros. Mas escrever também é uma forma de expressar seu estado de espírito e aspectos da vida que sejam engraçados, difíceis ou frívolos. Escrever  pode ser ainda uma ferramenta essencial de educação. Quero ser aquele que coleta fatos, os molda e os coloca no papel. É uma espécie de transmissão. Sou em emissário.

Temos que manter a fé na humanidade. Quando vejo a crueldade humana, é dilacerador, mas tenho que seguir em frente. Ainda estou convencido que as mulheres serão o futuro da humanidade. “O futuro do homem é a mulher”, como disse Louis Aragon. E assim como o famoso poeta, há muitos outros grandes homens que afirmaram que sem o apoio das mulheres em suas vidas, sua ascensão profissional teria sido diferente. Nossa época segue lutando para pensar em ideias de igualdade e diferença conjuntamente. É muito importante se reconectar com uma única tradição francesa de relações entre homens e mulheres que sejam tanto pacíficas quanto complementares.

Trecho da HQ Simone Veil, L'immortelle

GV: Uma de suas HQs, Plus Fort que la Haine (“Mais forte que o ódio”, em português), publicada pela Editions Glénat, recebeu o Readers’ Choice Prize for Best Work 2015 (prêmio de escolha dos leitores para a melhor obra de 2015), na categoria HQ europeia. Conta a história de Doug Wiston, um jovem trabalhador negro de Nova Orleans, em 1933, numa América açoitada por racismo e segregação. A agenda presidencial de Donald Trump nos Estados Unidos (EUA) parece ser uma reminiscência desse período obscuro de segregação. Como você explicaria esse reaparecimento do racismo nos EUA e, até certo ponto, no mundo em geral?

PB: Racismo e segregação são dois assuntos que costumo cobrir. Maneira geral, parece que o racismo hoje surge do medo e da preocupação quando nos deparamos com alguém diferente e que não podemos compreender. Voltando ao meu livro, Plus fort que la haine, pode-se dizer que as bombas ficam caindo sobre a cabeça do jovem Doug, o herói da história, que terá que aprender a controlar sua revolta, domá-la e canalizá-la.  Enquanto isso, as injustiças se acumulam para ele, sua família e outros como ele. Sua salvação vem através da intervenção de dois sábios homens: um negro, que o impede de cometer um erro irreparável; e outro branco, um vizinho, que lhe dá seu primeiro par de luvas de boxe e um bilhete para ir para a cidade. Um conto humanista numa América castigada por racismo e segregação, que prova que, não importa o que aconteça, ódio nunca é a resposta…

Trecho da HQ Simone Veil, L'immortelle

GV: Vamos voltar a falar sobre seu próximo trabalho. Você teve permissão da família de Simone Veil para escrevê-lo.  Veil, quando viva, teve que enfrentar uma enxurrada de críticas ao seu trabalho de promover os direitos das mulheres, especialmente no que concerne o direito de escolher abortar. É mais difícil, hoje em dia, avançar nas causas progressistas do que em 1974? Seria possível até mesmo retroceder no que diz respeito aos direitos das mulheres?

PB: Em 40 anos, os cidadãos franceses claramente mudaram de opinião quanto ao status legal do aborto. 75% deles afirmam aprovar a inexistência de restrições ao aborto, contra apenas 48% em 1974, que foi o ano da “Lei Veil” (lei que legalizou o aborto na França). Poderíamos acrescentar o Chile ao rol de nações que estão finalmente flexibilizando suas leis sobre o aborto. Na América Latina e na África, alguns países proíbem o aborto, enquanto outros o permitem somente sob condições bastante restritas. Mulheres na Europa e América do Norte são as que se beneficiam das leis mais lenientes. Na prática, o aborto é ainda estritamente limitado em alguns países. Na verdade, médicos podem alegar “objeção de consciência”, o que permite que não sejam obrigados a praticar qualquer ato contrário a suas convicções éticas, morais ou religiosas.

Isso não é um retorno repentino de ondas reacionárias, é mais um estado de espírito, uma abertura da mente. Um número significativo de países continuam a permitir o aborto sob condições restritas. Isso vale especialmente para hipóteses de risco à vida da mãe. Por outro lado, para muitos que se opõem, o problema que surge é: quem vai decidir e com base em quais critérios? Quem vai decidir quando há vida humana ou quando não há nada ou quase nada?

Mulheres têm o direito de dispor de seus corpos como quiserem. “Eu não imaginei o ódio que eu iria gerar”, afirmou Simone Veil, em 26 de novembro de 1974. Desde então, a opinião do povo francês sobre o aborto mudou de uma forma bastante significativa. Podemos ver que, na França atual, não há questão de gênero ou idade no que diz respeito às condições de interrupção voluntária da gravidez. Na realidade, homens e mulheres são igualmente favoráveis à autorização abrangente do aborto.

GV: Você é apaixonado pela justiça e pelo oceano. Não poderia deixar de mencionar o trágico episódio do Aquarius (navio naufragado) e dos refugiados no Mar Mediterrâneo. Qual é sua opinião sobre a situação atual de refugiados que atravessam o Mar Mediterrâneo? Como essa situação pode ser melhorada? 

PB: Se Simone Veil ainda estivesse viva e bem, posso garantir que estaria socando a mesa! É uma vergonha. Essa grande dama, uma verdadeira europeia, jamais teria permitido que a triste situação que estamos vivendo chegasse a esse ponto. É uma vergonha absoluta para a Europa.

Obviamente, estou apenas reagindo como um ser humano, como cidadão, e talvez seja fácil demais dizer isso de onde estou. Mas temos que reconhecer que existe uma desordem total — uma visível incoerência — na ausência de regras comuns. É terrível. Cada país faz o que quer, aceita ou rejeita quem quiser, ainda que isso signifique enviar alguém para a morte. Isso já tinha começado com a chegada dos sírios. Enquanto cada país europeu tinha se comprometido a receber uma cota mínima daqueles que fugiram do Daesh (também conhecido como Estado Islâmico), a maioria desses países não respeitou o acordo, especialmente a França. O número de pessoas morrendo no Mediterrâneo é considerado um desastre humanitário e, ainda assim, a Europa não conseguiu acabar com essa situação.

Tudo isso é muito assustador para o futuro, principalmente o de nossas crianças. Como podemos lhes mostrar um bom exemplo de cooperação? Isso mostra o quanto a Europa perdeu de compaixão moral na situação do Mediterrâneo. Esses homens, mulheres e crianças fugiram da pobreza e da guerra. Tenho que admitir que fico consternado com esse comportamento. Como a situação se desenvolverá? Me atrevo a esperar que as mentalidades evoluirão, mas também tenho uma certa tendência a pensar que a humanidade talvez esteja regredindo.

Porque ser humano é ser digno e respeitoso, pensar com inteligência, compartilhar. Ser humano significa ser livre no meio de uma sociedade civilizada… Mas tudo o que falei para caracterizar a humanidade está regredindo hoje em dia. Para o futuro, tenho muita esperança.

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