Se quer entender o Brasil, conheça os seus memes

A mulher “confusa” acima é um dos memes mais conhecidos do Brasil. Na verdade, ela é Nazaré Tedesco, personagem de uma novela de 2004 que sequestrou um bebê e matava quem ficava no seu caminho. | Imagem: Twitter/Reprodução.

Você já deve ter se deparado com um meme brasileiro durante uma pesquisa na internet e nem se deu conta disso. Sabe aquele da loira confusa, com fórmulas complicadas no fundo? É um meme brasileiro.

O Brasil é o quarto país com o maior número de usuários da internet no mundo todo. O português é a única língua oficial no país e a maioria da população não fala inglês. Apesar de a maior parte da internet ser anglófona, os brasileiros conquistaram um grande espaço na rede, ocupado por falantes de português, que o utilizam do seu próprio jeito — ou seja, abusando dos memes.

A verdade é que, para entender o país no contexto de 2017 — desde novelas a noticiários, até política e economia —, é preciso observar a sua cultura de memes.

O Brasil leva os seus memes tão a sério que deu início à Primeira Guerra Memeal contra Portugal em 2016, após descobrir que um usuário português do Twitter se apropriou de um dos memes favoritos dos brasileiros.

Por mais que seja difícil explicar para estrangeiros os memes de um país, a pesquisadora brasileira Gabriela Lunardi aceitou o desafio. Ela é uma estudante de pesquisa do QUT Digital Media Research Centre (Centro de Pesquisa de Mídia Digital QUT) na Austrália e, atualmente, trabalha num projeto que, segundo ela, “procura entender por que os memes brasileiros são diferentes de outros países, expressam aspectos específicos da cultura do país e têm tanta importância”.

“O Brasil é muito ativo na internet, não só pelo número de usuários, mas também por ter um comportamento bem particular online. […] Os brasileiros não ligam se você não entender a sua língua e as piadas internas; mesmo assim vão falar com você — ou a Katy Perry e a Nicki Minaj — como se você fosse um deles”, Gabriela afirmou em um ensaio sobre a ex-cantora e dançarina brasileira Gretchen, conhecida como a rainha dos memes no Brasil e que, recentemente, estrelou em um clipe da Katy Perry, Swish, swish.

Nós conversamos com Gabriela para entender “por que os memes do Brasil são importantes”.

Global Voices: Por que você escolheu os memes como objeto de estudo da sua dissertação?

Gabriela: Meu TCC na graduação foi sobre o canal de YouTube “Porta dos Fundos”. Eu amei estudar sobre a internet brasileira, então quis investigar mais a fundo a relação entre humor e cultura brasileira online. Sempre achei os memes brasileiros maravilhosos. Eles dizem muito sobre o Brasil, e isso ficou ainda mais claro quando vim para a Austrália e vi que os australianos tinham um humor completamente diferente do nosso e não entendiam nossos memes.

GV: Em que os memes brasileiros diferem dos outros países?

Gabriela: Cada país ou região tem memes diferentes, que refletem suas culturas. Os memes brasileiros retratam quem é o brasileiro e como ele lida com a cultura popular, a política e a realidade social. Eles são incrivelmente difíceis de entender para quem vê de fora porque temos esse aspecto único que é falar dos nossos problemas através do humor. Uma frase que eu gosto muito de falar para quem não é brasileiro é que “nós rimos pra não chorar”, porque acho que ela descreve perfeitamente esse nosso jeito singular de fazer humor.

Eu tive que logar de novo nessa conta porque senti que estava falando comigo mesma na outra.

A Cuca é uma vilã com aparência de jacaré antropomórfico, do programa de TV infantil brasileiro “Sítio do Picapau Amarelo. Em 2017, quando GIFs da personagem circularam no Twitter, alguns disseram que ela havia substituído o Babadook como o novo “ícone gay”.

GV: Como você descreve essa linguagem única brasileira? 

Gabriela: Auto-ironia. Ao mesmo tempo que criticamos os nossos problemas como país e o nosso comportamento como sociedade, fazemos humor, como se rir fosse a única alternativa diante daquela realidade. Os nossos memes se apresentam como genuinamente brasileiros porque são paradoxais e complexos, como a nossa cultura. Quando rimos do Brasil é como se, ao mesmo tempo, a gente sentisse vergonha e orgulho de ser brasileiro.

GV: Quais são os desafios de traduzir os memes brasileiros para outros contextos?

Gabriela: Um dos meus maiores desafios foi tentar “traduzir” nossos memes culturalmente. A grande dificuldade é que existem memes que só fazem sentido se você é brasileiro — e esses eram os que mais me interessavam. Então na minha tese eu resgatei um pouco da história do Brasil e tentei explicar um pouco da nossa cultura, antes mesmo de tentar explicar nossos memes. Eu também tentei achar comparações com a cultura australiana e optei por descartar aqueles que eram muito culturalmente específicos.

GV: Como começou a cultura do meme no Brasil?

Gabriela: Não há registros oficiais sobre “o primeiro meme de internet no Brasil”. Na verdade, não há um consenso na Academia sobre quando a palavra “meme” começou a ser efetivamente usada na internet, de modo geral. Originalmente, essa palavra vem da teoria do biólogo Richard Dawkins, de 1976, onde ele define “meme” como a transferência de ideias de pessoa para pessoa através da repetição. Na internet, um meme seria uma ideia, frase, imagem ou vídeo que vai se repetindo e se transformando. Por isso, muito antes da internet o Brasil já produzia memes, como cantigas de roda que foram se transformando através do tempo, ou bordões de novelas que foram usados em outros contextos, por exemplo. Um dos primeiros memes brasileiros na internet de grande sucesso foi o vídeo “Tapa na Pantera”, de 2006, que ganhou paródias, versão em funk, e trechos do vídeo viraram bordões.

GV: Como os memes influenciam a cultura brasileira?

Gabriela: Os memes estão nos ajudando a construir a nossa identidade cultural, que é extremamente complexa e abstrata. Os memes que ironizam os escândalos políticos dos últimos anos, por exemplo, ilustram a forma como o brasileiro encara os problemas do país e suas visões políticas. Quando “rimos da desgraça” estamos nos expressando de uma forma extremamente brasileira. Esse jeito de encarar os problemas pode não ser de hoje, mas a comunicação em rede consegue transformá-lo em um retrato da cultura brasileira, como se determinada linguagem, uso do humor e comportamento determinassem o que é ser brasileiro na internet. Isso faz com que os internautas brasileiros se vejam como pertencentes a uma mesma cultura, por mais que seja composta por diferentes visões políticas e sociais.

GV: No seu artigo sobre a Gretchen, você disse que algumas estrelas do pop internacional aderiram à onda dos memes brasileiros. É comum acontecer o mesmo com os memes de outros países ou os brasileiros dominam a internet, em termos de piadas internas?

Gabriela: O Brasil está ganhando espaço na internet, sim. Hoje, somos o quarto país com maior presença online e, mais do que ter um alto número de usuários, nós somos MUITO ativos online, principalmente nas redes sociais. Há, inegavelmente, um orgulho dos memes nacionais por parte dos internautas brasileiros, que fazem questão de compartilhá-los com os “gringos”, atitude que também faz parte da construção da identidade cultural que citei anteriormente. Cada vez mais os brasileiros estão sendo vistos como parte de uma internet intensamente dominada pelos EUA. Isso acontece principalmente quando memes brasileiros são “validados” pela cultura norte-americana, como foi o caso da presença da Gretchen no videoclipe da Katy Perry.

quando os mouros afrodescendentes apresentaram o conceito de banho para os europeus pela primeira vez pic.twitter.com/KFdN37ZNM1

Esta é uma cena da novela “Mulheres Apaixonadas”, do começo dos anos 2000, em que a atriz Vera Holtz interpretou uma professora alcoólatra. As personagens de novela da atriz são uma fonte inesgotável de memes no Brasil e ela se tornou uma figura cult na internet, pelas fotos surrealistas/sem sentido nas redes sociais.

GV: Se você pudesse definir o Brasil em um meme, qual escolheria?

Gabriela: Missão impossível! Acho que nem se eu fizesse um catálogo de memes eu conseguiria definir esse país tão único e complexo. Mas existe um comentário (não um meme, especificamente) que eu acho que diz muito sobre como usamos o humor para criticar os problemas brasileiros ao mesmo tempo em que construímos nossa identidade cultural. Acho que ele representa muito bem esse paradoxo de termos vergonha e orgulho do Brasil ao mesmo tempo, algo que está no DNA dos nossos memes. Estou falando da resposta de uma internauta à cantora Azealia Banks que, incomodada com o bombardeio de comentários em português recebidos após criticar o Brasil, disse: “eu não sabia que tinha internet na favela”. A resposta da Débora não poderia ser mais brasileira, e por isso gosto muito dessa imagem:

A cantora Azaelia Banks se envolveu em uma briga com os brasileiros após se referir a eles como “aberrações do terceiro mundo”. Acima, tuíte da cantora: “Eu não sabia que tinha internet na favela”. Imagem: captura de tela

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